Ilustração: Presidencia Perú. Crédito: Flickr/E-IR

Em 19 de julho, Castillo foi declarado vencedor das eleições gerais peruanas de 2021 pelo Júri Eleitoral Nacional, órgão responsável pelo processo eleitoral do país. O país teve um período pós-eleitoral turbulento, durante as quais sua oponente, Keiko Fujimori, usou a estratégia já consagrada entre os candidatos de extrema direita, de contestar os resultados eleitorais. Apesar de finalmente reconhecer sua derrota, a história política e o estilo de Fujimori mostram que ela usará táticas agressivas para prejudicar as condições de Castillo para governar.

Além disso, Castillo enfrentará obstáculos para governar de diferentes lados. Em primeiro lugar, a oposição controlará o Congresso, já que María del Carmen Alva, do Acción Popular, foi eleita presidente com o apoio da Fuerza Popular de Fujimori. Apesar da tradição do partido presidencial de chefiar o Legislativo, o Perú Libre não formou uma coalizão vitoriosa por causa da divisão interna e da fragmentação do Congresso. O principal obstáculo provavelmente foi a promessa eleitoral de Castillo de reescrever a constituição por meio de uma Assembleia Constituinte, que enfrenta resistência no Congresso, que teme uma dissolução.

Existem preocupações em relação aos primeiros passos de Castillo como titular e a como outros atores políticos estão respondendo. Ele nomeou Guido Bellido como seu primeiro-ministro e chefe de seu gabinete, um congressista da facção mais radical do Perú Libre. A grande mídia imediatamente se alinhou com a direita. Além disso, os militares se recusaram a reconhecer simbolicamente Castillo como Comandante-em-chefe até que ele nomeie o novo chefe das Forças Armadas. Além disso, seu mandato popular (e, portanto, popularidade) depende de promover reformas para agradar a seus apoiadores das áreas rurais peruanas. Essas reformas devem desagradar a elite de Lima, que provavelmente reagirá negativamente a seus planos de nacionalizar o setor estratégico. Por fim, ele está politicamente próximo ao Sendero Luminoso e alegou que pretende reformar a Constituição.

Apesar de todas essas preocupações serem legítimas, ao longo deste texto argumentarei que, em vez de nos centrarmos no comportamento do presidente, em sua formação social e política, precisamos ter em mente que a recente instabilidade política no Peru é um problema sistêmico. Para apresentar meu argumento, primeiro reviso estudos sobre rupturas presidenciais e erosão democrática, especialmente aqueles que se dedicam a explicar a instabilidade dos sistemas presidencialistas multipartidários na América Latina. Em segundo lugar, uso essas lentes para analisar os primeiros passos de Castillo no cargo e apresentar as perspectivas para a democracia peruana. Concluo com alguns comentários breves.

Como as lentes da Política Comparada podem nos ajudar?

A primeira consideração a ser feita é que um golpe é virtualmente impossível, tanto porque Castillo não conta com o apoio dos militares, quanto porque o colapso por golpes militares atualmente é raro. Desde o início da terceira onda de democratização (iniciada no final da década de 1970), as rupturas presidenciais (interrupção das presidências sem colapso do regime) substituíram os golpes. Hochstetler e Edwards (2009) apontam que elas são comuns na América Latina, especialmente na América do Sul. Conforme demonstram Pérez-Líñan e Polga-Hecimovich (2016), em termos gerais, elas têm uma função principal equivalente aos golpes, pois ambos visam livrar-se de presidentes indesejados. Causalmente, o mau desempenho econômico, os protestos amplos e a radicalização dos atores políticos aumentam suas chances de ocorrência. Quando os presidentes perdem seu escudo legislativo (maioria no Congresso) e seu apoio popular, correm o risco de sofrer um impeachment ou de serem forçados a renunciar.

Essa é uma característica essencial a ser considerada, já que três dos antecessores de Castillo tiveram suas presidências interrompidas. O presidente eleito, Pedro Pablo Kuczynski (PPK), renunciou após um escândalo de corrupção. Seu vice, Martín Vizcarra, se distanciou do presidente durante a crise, ao mesmo tempo em que adotou uma retórica anticorrupção para obter o apoio popular. Posteriormente, ele foi impedido por uma declaração de “incapacidade moral” com o apoio de 105 votos do Congresso (sendo 87 de 130 o mínimo exigido). Essa foi a segunda tentativa do Congresso de impedir o presidente após uma primeira vitória, quando Vizcarra endureceu o tom contra o Congresso, alegando que congressistas manipularam áudios para acusá-lo falsamente de corrupção e encenar um golpe contra ele. Vizcarra sofreu impeachment apesar das reações públicas contra o legislativo, considerado pela opinião pública como uma instituição corrupta que impede iniciativas anticorrupção. Seu sucessor, um deputado (Manuel Merino), enfrentou forte pressão das ruas e renunciou após alguns dias no cargo.

Como esta recente turbulência no Peru, casos de repetidos colapsos ocorreram em diferentes países sul-americanos. No Equador, quatro presidentes foram destituídos de 1997 a 2005, durante um período de mau funcionamento institucional. De acordo com Mejía Acosta e Polga-Hecimovich (2010), as reformas originalmente concebidas para fortalecer as habilidades de formulação de políticas dos presidentes e reduzir os incentivos à corrupção, na prática, bloquearam a formação de coalizões políticas, abrindo caminho para a instabilidade. Na Argentina, durante a crise de conversibilidade, três presidentes não concluíram seus mandatos. Fernando de la Rúa e Rodríguez renunciaram, enquanto Eduardo Duhalde concordou em avançar as eleições para evitar mais turbulências políticas. Finalmente, na Bolívia, entre 2003 e 2006, Sánchez Lozada, Carlos Mesa e Rodríguez Veltzé renunciaram durante um período de alta intensidade e protestos generalizados em relação à política de nacionalização do gás.

Em todos esses países, as consequências foram semelhantes. Os presidentes enfrentaram polarização e oposição agressiva desde sua posse. O contexto político anterior instável, que impedia outros presidentes de terminar seus mandatos, influenciou suas decisões de controlar outros poderes. Esses casos guardam algumas diferenças, especialmente na Argentina onde, apesar das interferências no Banco Central, Poder Judiciário e na Mídia por parte dos Kirchners, as instituições ficaram relativamente ilesas. Apesar disso, todas as estratégias utilizadas frequentemente estão presentes durante a terceira onda de autocratização em curso (iniciada em 1994). De acordo com autores como Levitsky e Ziblatt (2018) ou Coppedge (2017), eles podem ser classificados como líderes hegemônicos que ameaçaram as democracias de dentro ao concentrar o poder no executivo em detrimento dos tribunais e do legislativo, levando à erosão da responsabilidade horizontal. Nas palavras de Lührmann e Lindberg (2019, p. 1105),  esses “governantes acessam legalmente o poder e, em seguida, gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas”.

Como na América Latina, o comportamento unilateral dos presidentes para mudar constituições para estender o controle sobre outros ramos é um risco particular para a democracia, esta é uma preocupação válida em relação a Castillo. Alguns grupos políticos interpretaram a designação de Bellido como parte de um plano para provocar o Congresso a negar ao primeiro-ministro um voto de confiança. Isso forçaria o presidente a nomear um novo gabinete e a abrir as condições para a dissolução do Congresso (permitida pela Constituição peruana após dois votos de censura do Congresso ao gabinete ministerial proposto pelo presidente).

Como Castillo não tem maioria no Congresso e, portanto, um escudo legislativo, devemos esperar que ele precise contar com o apoio popular para se manter no cargo. Não foi o caso dos Kirchners e Evo Morales, mas para Rafael Correa. O presidente equatoriano também não teve maioria no Congresso. Portanto, em vez de confiar nas estratégias fracassadas de seus predecessores de formar “coalizões fantasmas”, ele não permitiu que nenhum dos membros de seu partido concorresse ao Congresso, calculando que nunca alcançaria uma posição majoritária. Alternativamente, ele usou suas altas taxas de aprovação para minar a legitimidade do Congresso (muito impopular na época) e levar adiante sua proposta de realizar um referendo sobre a eleição de uma Assembleia Constituinte. De acordo com Bermeo (2016), o principal objetivo de Correa ao aumentar seus poderes presidenciais seria evitar o mesmo destino de seus antecessores. Nas palavras de Helmke (2017, p. 123-124) “a decisão de Correa de convocar uma Assembleia Constituinte e dissolver a legislatura controlada pela oposição surgiu, em boa parte, pelo medo de ser destituído” já que “o presidente não tinha representantes no Congresso, as relações executivo-legislativo rapidamente se deterioraram em uma luta por qual ramo sobreviveria”, ele usou essa estratégia para fortalecer seu poder presidencial e assegurar o cargo. Isso reduziu os incentivos de cooperação para legisladores, desmobilizou a oposição legislativa e, consequentemente, prejudicou a democracia equatoriana.

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Embora os impeachments sirvam para remover presidentes corruptos ou hegemônicos (por exemplo, Alberto Fujimori), quando as oposições os usam por razões políticas, eles podem prejudicar democracias e aprofundar a polarização. O uso de tais instrumentos só deve ter um impacto institucional positivo quando legalmente motivado e processado. Embora a remoção de presidentes que violam os princípios democráticos deva trazer fortalecimento institucional, o comportamento não democrático da oposição pode perturbar as regras do jogo, tornando um impeachment mais perigoso do que manter o presidente. Como casos anteriores mostraram, derrubar presidentes deliberadamente pode diminuir o nível de satisfação dos cidadãos com a democracia, criando as condições para a ascensão de líderes hegemônicos (como o passado recente brasileiro tem mostrado).

Devemos nos preocupar especialmente porque o Peru está passando por um período de polarização. Svolik (2019) nos mostra que durante tal período, os interesses partidários podem prevalecer sobre os princípios democráticos, com pessoas comuns sendo concessores tácitos (e às vezes explícitos) de líderes autocráticos. Os relatórios do Instituto V-Dem nos mostram que, na verdade, o retrocesso democrático recente deriva da polarização, já que resulta do uso crescente do discurso da raiva e de ideologias nacionalistas (o último presente no segundo turno das eleições peruanas).

As primeiras etapas podem definir o restante do mandato

Como Castillo não tem maioria legislativa, ele precisará contar com o apoio popular para permanecer no cargo. Embora isso possa significar empurrar sua agenda reformista, ele não precisa necessariamente fazer isso passando por cima do Congresso. A polarização destaca que uma parte do eleitorado votou apenas em Castillo em rejeição a Fujimori. Este eleitorado poderia se contentar com reformas moderadas.

O próprio presidente garantiu que a nacionalização de setores estratégicos respeitaria os investimentos privados. Ele nomeou Pedro Francke para chefiar o Ministério da Economia, que se reuniu com bancos de investimento para assegurar o compromisso do governo com a estabilidade econômica. Além disso, Julio Velarde, chefe do Banco Central peruano, no cargo desde 2006 e considerado fiador da estabilidade financeira do país, aceitou o convite de Castillo para permanecer no cargo.

Inicialmente, o Congresso respondeu moderadamente à indicação do primeiro-ministro por Castillo, convidando Bellido para discutir, em vez de rejeitá-lo imediatamente. Essa reação moderada provavelmente se deve à recente dissolução da legislatura por Vizcarra e sinaliza uma relutância inicial do Congresso em confrontar o presidente e prejudicar ainda mais sua imagem perante a opinião pública. O desejo das elites políticas de abandonar a recente turbulência política e de evitar o fortalecimento do forasteiro, pode ajudar a estabilizar o país.

Além disso, as decisões de Castillo em relação aos seus indicados para a equipe econômica mostram que ele está preocupado em garantir o apoio das elites econômicas para aumentar sua governabilidade, assim como fez Lula no Brasil. Além disso, o presidente eleito esperou pacientemente por sua nomeação, atrasada devido à indisposição de sua oponente em aceitar a derrota.

Por outro lado, Keiko Fujimori, que provavelmente liderará a oposição ao governo Castillo, mostrou um comportamento mais antidemocrático ao alegar fraude nas eleições (descartada pelas autoridades eleitorais). Ela também estava por trás do escândalo político que motivou o julgamento de impeachment contra PPK, não aprovado no Congresso, mas que motivou sua renúncia. Como líder da oposição durante a crise política quando vários presidentes caíram, ela usou manobras políticas controversas para dificultar a governabilidade dos antecessores de Castillo.

Se a polarização aumentará e se a crise política persistirá, isso dependerá dos próximos passos do presidente e da oposição, principalmente de Fujimori. Por um lado, a recente turbulência política com repetidas rupturas presidenciais, os processos em curso de erosão democrática e outros exemplos da América Latina, indicam que a principal preocupação deve ser Castillo. Por outro lado, uma oposição agressiva das elites políticas e econômicas e dos conglomerados de mídia também pode ser um risco para a democracia, como ocorreu nos impeachments de Dilma no Brasil e de Lugo no Paraguai.

O presidente parece ter deixado sua retórica eleitoral para trás, mas ainda existem dúvidas. Sua intenção de nacionalizar setores estratégicos foi uma política que ganhou nas urnas. É, portanto, legítima. Sua indicação para o gabinete enviou sinais contraditórios, e o presidente de seu partido reforçou seu interesse de enfrentar possíveis resistências para a ir longe para criar a Assembleia Constitucional.

Castillo detém o poder, portanto, é quem mais pode causar danos institucionais mais significativo, mas, até agora, tem o benefício da dúvida. Alternativamente, Keiko é o ator político com o comportamento mais antidemocrático no passado recente. Ela não tem o benefício da dúvida. Apesar de aceitar a derrota, prometeu mobilizar seus apoiadores contra Castillo e considerou as eleições ilegítimas.

De olho em Fujimori

Em vez de apontar o dedo prematuramente para Castillo, devemos nos preocupar com Keiko Fujimori. A candidata favorita da elite peruana e da grande mídia tem um passado problemático. Além de exaltar o legado de seu pai e de estar envolvida em vários escândalos de corrupção, ela minou governos anteriores.

Enquanto Castillo tem um incentivo para deixar as eleições para trás e se concentrar em alcançar as condições políticas para governar, Fujimori não tem mais nada de interessante em sua agenda política, além de atacar seu adversário. Seus próximos passos precisam ser observados de perto. Em suma, devemos esperar que nenhum deles prefira subir o tom em vez de buscar consenso, algo improvável considerando a polarização em curso.


* Este artigo foi publicado anteriormente em inglês pelo E-International Relations (E-IR)

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)

***Tradução: Italo Beltrão Sposito

****Revisão: Stella Bonifácio da Silva Azeredo

Autor(a)

  • Professor Adjunto no Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), mestre e doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP). Desenvolve pesquisa na subárea de Análise de Política Externa. É autor do livro “Continuidade e Mudança na Política Externa dos Países da América Latina e Caribe” (2020), Editora Appris, e publicou artigos nos periódicos DADOS – Revista de Ciências Sociais, Revista de Ciencia Política (Santiago), Brazilian Political Science Review, dentre outros.