Pessoas se reúnem fora do Congresso depois que o presidente interino do Peru, Manuel Merino, anunciou sua renúncia, em Lima, Peru, em 15 de novembro de 2020. Crédito: REUTERS / Angela Ponce

Durante o intervalo de uma semana, o Peru passou por duas rupturas de mandatos presidenciais: Martín Vizcarra e Manuel Merino. Somadas as três peruanas que ocorreram dentro de um mesmo mandato presidencial (a outra foi de Pedro Pablo Kuczynski (PPK), 2018), são 26 na América Latina desde o início da terceira onda de democratização (1978), 22 apenas na América do Sul. Nos últimos dez anos, além destas três, tivemos Fernando Lugo (Paraguai, 2012), Pérez Molina (Guatemala, 2015), Dilma Rousseff (Brasil, 2016), e Evo Morales (Bolívia, 2019). Outros vários balançaram, mas não caíram, como Sebastián Piñera no Chile, alvo de protestos, contornados pela convocação da Constituinte.

Como a literatura pode nos ajudar?

Pérez-Líñan em “Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America” (2007) iniciou o debate sobre ruptura de mandato presidencial (presidential breakdown/rupture/fall/removal). Outros autores, como Kathryn Hochstetler, Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet trouxeram aportes a este debate. Em geral, são considerados casos que cumprem dois critérios: (1) um mandato presidencial (constitucionalmente estabelecido para ter duração fixa) termina antes do tempo previsto; e (2) há continuidade do regime democrático. Em geral, inclui-se renúncias, impeachments (assim como outros tipos de remoção, tais como declarações de incapacidade mental/moral) e intervenções militares (desde que cumprido o critério 2).

Parecem ser critérios claros, mas há muito debate em torno de quais casos incluir e sobre como classificá-los. Por isto, um grupo de autores latino-americanos, tais como Lorena Soler, Matheus Araújo e Fabiano Santos, têm preferido conceituar tais episódios por golpes com adjetivos, tais como golpe parlamentar, palaciano, brando, ou neo-golpismo. O primeiro grupo considera que tais episódios não podem ser classificados como golpes porque há continuidade do regime democrático e os processos ocorrem de acordo com os ritos democráticos, ainda que para isto sejam feitas “leituras criativas” das constituições. No cerne desta disputa, está o fato de várias destas destituições não ocorrerem devido a crimes dos mandatários, conforme exigido na maioria das constituições latino-americanas, mas como saídas para crises políticas, ou devido a conflitos extremos entre Legislativo e Executivo. Esses embates levam os parlamentos a formarem maiorias alternativas que permitem aos legisladores destituírem o presidente e iniciar um novo governo.

Trazendo como exemplos simples e ilustrativos, comparemos o impedimento de Dilma e a continuidade do governo Jair Bolsonaro.
Enquanto a classificação das “pedaladas fiscais” da primeira como crime de responsabilidade foi altamente questionada, o segundo cometeu vários crimes de responsabilidade e se mantém no cargo. Estes casos demonstram que o crime de responsabilidade não é elemento essencial para a derrubada de um presidente, mas o que a literatura chama de “escudo legislativo”. Recentemente, este foi garantido por Bolsonaro a partir de sua aliança com o “centrão”, essencial para lhe garantir estabilidade em um momento de baixa popularidade.

Ainda assim, a classificação proposta pela literatura de política comparada, permite, com base nos critérios propostos, comparar diversos episódios que guardam semelhanças e compreender o que determina as rupturas de mandatos presidenciais. Em um dossiê do periódico América Latina Hoy, Pérez-Líñan (2008) e Kathryn Hochstetler (2008) apontam que as rupturas são explicadas pela combinação de quatro variáveis: crises econômicas; escândalos de corrupção (envolvendo o presidente e/ou assessores próximos/familiares); protestos amplos e sistêmicos; e perda de maioria legislativa.

As três primeiras variáveis são consideradas exógenas, eventos/condições que podem levar à queda da popularidade presidencial e pressionar o Legislativo a sacar o presidente. A quarta é institucional e se refere ao “escudo legislativo”, elemento essencial para o presidente se manter no poder, já que o Legislativo é quem decide por destituir (ou não) o mandatário.

O que a história nos conta?

Tivemos outros casos de mandatos curtos na história da América Latina. Adolfo Rodríguez Saá governou a Argentina entre 23 e 31/12/2001. Ele foi escolhido pelo Congresso (ante a “lei de acefalia”) por ser um governador de província e membro do Partido Justicialista (Peronista), que detinha maioria na Casa. Ficou encarregado de comandar o país durante a transição até a eleição seguinte, dado o fracasso do governo da União Cívica Radical em assegurar governabilidade e tirar a Argentina da crise econômica e política. Rodríguez teve de renunciar após declarar, unilateralmente, a moratória da dívida externa argentina, o que gerou protestos com mortes e o isolou politicamente. Ele foi substituído pelo senador peronista Eduardo Duhalde, que também não conseguiu completar o mandato e teve de antecipar o final de seu governo em seis meses, devido a manifestações em massa.

Outros dois casos guardam semelhanças por terem governado menos de uma semana: Gustavo Espina, que sucedeu a Jorge Serrano na Guatemala (1991); e Rosalía Arteaga, que substituiu Abdalá Bucaram no Equador (1996). Ambos eram vice-presidentes próximos ao presidente e, portanto, “caíram junto”. Já sabiam que não teriam condições de governar, pois enfrentariam as mesmas condições do presidente destituído. No primeiro caso, o Congresso teve de eleger um sucessor e, no segundo, o próprio presidente do Legislativo assumiu a cadeira de presidente.

O primeiro exemplo mostra um episódio de sucessão para outro grupo político, enquanto os últimos, de sucessão para políticos da mesma coalizão. Os últimos casos não são necessariamente o padrão na América Latina, já que muitas chapas presidenciais são mistas, formas encontradas pelos partidos em sistemas multipartidários fragmentados para aumentar as chances de eleição e de formação de coalizões majoritárias se eleitos. Por isto, conforme mostrado por Marsteintredet, em artigo conjunto com Fredrik Uggla (2019), no Journal of Latin American Studies, é comum que vice-presidentes se distanciem de presidentes com baixa popularidade (resultado de problemas nas variáveis exógenas) e articulem a construção de coalizões alternativas no Congresso como saída de crises políticas e para alçar-se ao posto de presidente.

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Os brasileiros acompanharam o processo que se encaixa neste padrão, quando Temer foi um dos principais articuladores políticos do impedimento de Dilma em um momento em que a presidente enfrentava amplos protestos e baixa popularidade. Pedro Feliu (2018), em publicação na Revista de Ciencia Política, mostrou como, mesmo com baixa aprovação, o sucessor conseguiu dividir ministérios e verba parlamentar de modo a garantir um escudo legislativo forte, conseguindo governar apesar de vários escândalos e baixa popularidade.

O caso peruano

Vizcarra, então vice-presidente, adotou estratégia semelhante ao se distanciar de PPK. O segundo renunciou em 2018 após pressão devido a um escândalo de corrupção, enquanto o primeiro aproveitou para adotar a bandeira de combate a corrupção como objetivo de governo. Merino, por sua vez, assumiu o poder por ser líder do Parlamento, mas renunciou após poucos dias no cargo devido a amplos protestos, que inclusive resultaram em mortes. Ele havia substituído Vizcarra após processo de impeachment (por “incapacidade moral”), cuja aprovação teve 105 votos favoráveis no Congresso (sendo 87 de 130, o mínimo exigido). Já Francisco Sagasti, que acaba de assumir a Presidência, teve seu nome negociado com base em uma lista do Parlamento, já que não havia outro na linha sucessória.

O afastamento de Vizcarra já havia sido votado no parlamento em setembro, mas a oposição não alcançou os votos necessários. Após o episódio, o presidente se sentiu fortalecido e endureceu o tom contra o Congresso, defendendo-se das acusações e questionando a legalidade dos áudios utilizados pela oposição como argumento para sua destituição. A rapidez do processo de julgamento, que totalizou oito dias, também engrossou a argumentação do presidente de um golpismo da oposição contra ele.

Soma-se o fato de o processo de afastamento ter gerado reação popular contrária, já que Vizcarra tinha alta popularidade (parte dos embates com o Congresso se devem à proposta do governo de avançar com uma reforma política). Todo este retrospecto gerou forte pressão sobre seu sucessor após o Congresso destituir o presidente em sua segunda tentativa. Merino, membro de uma Casa com baixa popularidade por escândalos correntes de corrupção, foi considerado pela opinião pública como um articulador da derrubada de Vizcarra.

As duas quedas consecutivas mostram a importância da combinação dos dois grupos de variáveis para gerar a interrupção de mandatos presidenciais na América Latina: institucional (a perda do “escudo legislativo” do presidente) e exógenas (protestos, crises e outros fatores relacionados à popularidade do presidente).

Por um lado, a postura conflituosa de Vizcarra contra um Congresso taxado de corrupto, apostando seu cargo apenas ancorado em sua popularidade lastreada pela luta contra a corrupção, mostrou-se falha. Assim como a queda de Dilma e a continuidade de Temer, Vizcarra ilustra a essencialidade do escudo legislativo para o presidente se manter no poder. Por outro, Merino não assegurou o segundo grupo. A forma como articulou a queda de um antecessor com alta popularidade gerou revolta da população, que se mobilizou em protestos contínuos durante toda a semana em que governou. Em um cenário de forte instabilidade política, o presidente interino não suportou a pressão por sua baixa legitimidade/popularidade e pela responsabilização da morte de protestantes em conflitos com forças de segurança. Hochstetler e Edwards (2009), em artigo no Journal of Politics in Latin America, já apontaram que a variável mais consistentemente associada com quedas presidenciais foi a ocorrência de mortes de protestantes contra o presidente, evento que apareceu em todas as quedas analisadas na pesquisa dos autores. Este tipo de ocorrido gerou forte pressão sobre os presidentes para renunciar, ou sobre os congressos para afastarem os presidentes.

Estes casos trazem mais material empírico para se compreender as rupturas de mandatos presidenciais na América Latina. No geral, seguiram as previsões teóricas e alertam os presidentes a atentarem para a necessidade de manter maiorias legislativas – principalmente em períodos de baixa popularidade –, assim como de atenderem às demandas populares, para que não peçam suas cabeças aos parlamentos. Outro ponto importante é a necessidade de definição clara dos critérios para processos de destituição do presidente. Nos próximos dias, o Tribunal Constitucional peruano deve se pronunciar sobre em quais circunstâncias o critério de “incapacidade moral” pode ser usado contra um presidente. No Brasil, ante os consecutivos crimes de responsabilidade praticados pelo presidente Bolsonaro, tal critério para abertura de processo de impeachment se mostra adaptável aos interesses da elite parlamentar, o que gera instabilidade política. Cabe aos poderes judiciários e legislativos latino-americanos atuar para manter os mandatos de presidentes eleitos democraticamente, detentores da legitimidade oriunda da vontade popular.


*Revisão: Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”