Os 365 dias de 2015 foram movimentados, repletos de fatos inusitados, de tragédias localizadas e da reiteração de tendências conhecidas. O sistema capitalista global, movido a mercado intensivo e a finanças exacerbadas, deixou suas pegadas por todos os cantos, mostrando ao mundo o porquê de sua prevalência. Foi um ano que deixou claro que o século XX é história e que vivemos, para o bem e para o mal, em uma nova época, ainda mal conhecida e pouco assimilada.

Foram muitos os esforços de interpretação e as análises se sucederam com a mesma rapidez que as mudanças de cenário. Sabe-se mais a respeito do mundo, dos diferentes países e das regiões em que se divide o mundo. Sabe-se muito mais sobre os movimentos que abalam as sociedades e o sistema internacional. Mas não se tem, à disposição, uma teoria pronta e acabada para dar conta da situação. Aumentou também a dificuldade de previsão. Hoje sabe-se somente que não há como prever o que acontecerá ou delinear com clareza as próximas tendências. Sabe-se que algo acontecerá, e nada mais.

Três acontecimentos principais podem ser privilegiados para se tipificar 2015, que ora se encerra.

O primeiro deles foram os atentados de Paris em novembro, antecedidos pelo ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo, em janeiro. A violência perpetrada indiscriminadamente por grupos de jihadistas vinculados ao Estado Islâmico (EI) chocou o mundo. Centenas de mortos e feridos, jovens na maioria, foram contabilizados como vítimas inocentes de uma estratégia político-militar insana, estranha à lógica da contestação mas conduzida com habilidade, capacidade de planejamento e destemor por um “exército” dotado de um fanatismo que o faz funcionar como uma máquina. O Estado Islâmico se converteu assim em um dos grandes protagonistas do que 2015 teve de pior, marcando-o com o vermelho do sangue e a fé cega de uma interpretação religiosa obscurantista, que se remete ao Islã mas o renega como fonte de sabedoria. Agindo mediante estruturas de guerrilha, com fontes de financiamento derivadas do contrabando de petróleo e de investimentos rentáveis no sistema financeiro internacional, impulsionado pelo armamento fácil e pelo uso de tecnologias de informação e comunicação, o EI tornou-se um ator difícil de ser controlado. Além do mais, opera mediante a captura de militantes já inseridos nos países ocidentais, imigrantes ou não. Consta que milhares de jovens ocidentais integram suas forças ou estão fortemente atraídos por sua proposta, fato que mostra outra face do problema, a do desencanto de parte da juventude com as fontes utópicas e culturais do mundo ocidental.

O EI é produto da inexistência de uma ordem democrática no mundo, um “centro” com capacidade de coordenação. Vem sendo impulsionado por visões geopolíticas sedentas de controle sobre o petróleo e algumas regiões estratégicas, instigado pela volúpia “universalista” da luta por direitos humanos e pela dificuldade dos povos árabes de dialogar com uma lógica ética e jurídica distinta da sua. Recebe oxigênio extraordinário das estratégias que vêm prevalecendo em muitos países do Ocidente, que provocam devastações inaceitáveis em muitos países árabes e fomentam a criminalização do estrangeiro.

O primeiro acontecimento se liga ao segundo: a onda imigratória em direção à Europa, que expressa uma tragédia de vastas proporções e também ajuda a alimentar o jihadismo, especialmente em decorrência da falta de estratégias inteligentes de administração. Mais de um milhão de imigrantes chegaram à Europa durante o ano. A cifra é cinco vezes maior que a de 2014 e constitui a maior movimentação de pessoas no continente desde a Segunda Guerra. A resposta predominante foi a repressão e a contenção espacial, algo que se pode até aceitar como primeira resposta, mas que não ajuda nem a bloquear a entrada de imigrantes, nem muito menos a fornecer-lhes alguma perspectiva. A crise síria, ao se prolongar, funciona como uma espécie de usina impulsionadora.

Foi pungente a imagem do garoto sírio-curdo de três anos estirado numa praia depois de uma tentativa de passar da Turquia para a Grécia. Converteu-se sem dificuldade em símbolo não de um “problema imigratório”, mas de uma crise humanitária que é ao mesmo tempo uma tragédia humana e uma crise política e institucional, que repercute intensamente sobre os compromissos integracionistas da União Europeia. Há esforços localizados de acolhimento dos refugiados, mediante a fixação de cotas de distribuição entre os países, mas muros e cercas continuam a ser empregados para garantir a “segurança fronteiriça” e a “ordem social”. E diversos países se opõem à recepção dos imigrantes.

O problema não é novo. Confunde-se com a história da Europa, dos Estados Unidos e de vários outros países. Mas nunca foi vivido com tanta intensidade e de modo tão corrosivo. Mostra a falta que faz uma efetiva política de concertação em escala global e a dificuldade de tradução prática da ideia de universalização dos direitos humanos.

Um terceiro acontecimento foi o reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, rompidas desde 1961. Tratou-se de uma clara imposição da nova realidade que se tem no mundo e particularmente no continente americano. Abriram-se perspectivas efetivas de avanço e reaproximação, incluindo uma próxima suspensão do embargo comercial à ilha, vital para os cubanos. Tornou-se evidente que políticas de bloqueio e isolamento ficaram para trás. O mundo mudou e a hora é da diplomacia e da negociação.

A reaproximação será certamente lenta. A agenda é complexa e inclui pontos de difícil equacionamento: direitos humanos, Guantánamo e pedidos recíprocos de indenização, além da suspensão do embargo. Na abertura oficial da embaixada dos EUA em Havana, no dia 14 de agosto, os discursos oscilaram entre a moderação diplomática, o interesse sincero e a divergência contida. Os norte-americanos, porém, sustentaram que o diálogo atual entre os dois países é uma exigência das novas circunstâncias: como a “Guerra Fria terminou há muito tempo”, é hora de o diálogo prevalecer sobre as rivalidades.

O reatamento mostrou, também, por vias transversas, que o comunismo não foi o bicho papão cantado em verso e prosa pela cultura política dos Estados Unidos. Garantiu educação, saúde e igualdade aos cubanos. Manteve viva uma utopia. Mas não promoveu o acesso dos cubanos a importantes bens de consumo e os afastou do convívio com o mundo. Contribuiu de algum modo para que Cuba permanecesse parada no tempo. A revolução foi hostil à diversidade, ao pluralismo e à democracia, um preço que está sendo cobrado hoje. As decisões norte-americanas contribuíram para que a pequena ilha não saísse do lugar, prejudicando-a ainda mais.

As decisões de Obama representaram uma autocrítica em relação à política norte-americana para Cuba. Se forem mantidas, ampliadas e executadas, terão grande impacto tanto no que diz respeito à melhoria das relações entre os dois países, quanto para que se complete a plena inserção de Cuba no hemisfério latino-americano. Por extensão, poderão ajudar a que melhorem as relações dos EUA com outros países latino-americanos, como a Venezuela. Para Obama, tratou-se de um movimento de política externa dedicado a oxigenar o mundo e a ampliar as chances de uma estabilidade global.

Ao lado destes três acontecimentos, outros fatos serão certamente lembrados pelos balanços que se farão, como sempre, na virada do ano.

A COP-21 será um deles. A reunião da ONU sobre meio ambiente, realizada em Paris em dezembro, mostrou, por exemplo, que vivemos em um planeta complicado, quase em estado terminal. As mais altas temperaturas da história anunciaram que as emissões de Co2 precisam ser drástica e rapidamente reduzidas. Se continuar a esquentar, o planeta ficará inabitável: longe de ser um prognóstico da melhor science fiction, a hipótese passou a ser levada a sério. O acordo alcançado pelos 200 países participantes da cúpula, que se comprometeram a reduzir suas emissões, pode não ter garantido nada, mas foram um sinal de que a luz amarela passou a piscar com mais força.

O esfriamento relativo da economia chinesa, por sua vez, terá impacto importante na situação mundial e na economia de diversos países, entre os quais o Brasil, como vem acontecendo há alguns anos. Em 2015, a economia chinesa continuou a decrescer. Não se sabe bem o que isso significa, se há ou não números maquiados, se se trata ou não de uma mudança de paradigma, se ficou mais evidente ou não que o gigante asiático tem alguns pés de barro. A diminuição da demanda de matérias-primas pela China e uma inesperada abundância de petróleo provocaram queda de 34% nos preços das commodities este ano. O petróleo custa agora US$ 30 o barril, frente aos quase US$ 100 de dois anos atrás, com impactos fáceis de se imaginar sobre os países cujas economias estão atreladas à venda de matérias-primas.

Também se deve fazer referência ao que parece ser o início de uma reacomodação política no interior da América do Sul, com a perda de poder e influência de governos mais “à esquerda”. A vitória de Macri na Argentina mostrou que uma nova tendência poderá ganhar corpo na região, impulsionada pelo desgaste de Dilma Rousseff no Brasil e pela demonstração de força das oposições venezuelanas nas eleições legislativas de dezembro.

As redes sociais continuaram a mostrar sua força, seja como fator de circulação e ampliação de informações, seja como plataforma para a fixação de debates democráticos, seja enfim como veículo propagador de novas atitudes e ideias, bem como de novas aproximações entre povos e pessoas.

2015 foi um ano em que as misérias humanas ficaram expostas a céu aberto, em que a violência se ampliou, em que o modo de vida e de produção balizado pelo capitalismo mostrou sua real incapacidade de prover condições existenciais decentes e adequadas para a humanidade. Nele, também se evidenciou que o mundo está carente de forças alternativas: as contradições explodem, a indignação cresce, os protestos se sucedem, mas não surge nenhum vetor claro para agregar a insatisfação e traduzi-la em termos políticos.

A direita fanática e chauvinista exibiu alguma força na Europa, Donald Trump se projetou com um discurso racista e retrógrado, o EI prosseguiu em ascensão, mas tais fatos mostraram mais a fraqueza das forças políticas tradicionais e as dificuldades da democracia do que o vigor de um retrocesso. A esquerda, por sua vez, permaneceu marcando passo, mastigando suas dificuldades, envolta na incapacidade de propor um projeto para o futuro e paralisada por suas divisões internas e por seu “conservadorismo” em termos organizacionais e discursivos.

Aguardemos 2016.


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