A saída dos Estados Unidos da OMS

O presidente Donald Trump anunciou no dia 30 de maio a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) sob o argumento de que a organização estaria sendo controlada pelo Governo da China. Apesar do significativo simbolismo, ainda não se sabe se Trump tem autoridade para tomar tal decisão unilateralmente, tendo em vista que a Constituição da OMS é um tratado, ao qual os Estados Unidos aderiram e ratificaram. O Congresso norte-americano é, portanto, uma variável a ser considerada nessa decisão.

A entrada dos Estados Unidos na OMS foi aprovada por uma resolução conjunta da Câmara e do Senado. Como a Constituição da OMS não possui cláusula de retirada, a resolução conjunta aprovada pelo Congresso Americano inclui uma disposição específica sobre saída: “Ao adotar esta resolução conjunta, o Congresso o faz com o entendimento de que, na ausência de qualquer disposição da Constituição da Organização Mundial da Saúde para se retirar da Organização, os Estados Unidos se reservam o direito de se retirar mediante aviso prévio de um ano. Desde que, no entanto, as obrigações financeiras dos Estados Unidos para com a Organização sejam cumpridas integralmente no ano fiscal atual da organização(Department of State Publication 8424, 1968). Além do aviso prévio de um ano, a resolução conjunta deixa claro a obrigação do país em cumprir suas contribuições financeiras. Trump, que já havia anunciado a suspensão temporária do financiamento, não estaria legalmente amparado em sua ameaça de retirada, tendo em vista que não é juridicamente possível fazer as duas coisas.

Apesar de a ameaça de Donald Trump ser mais um discurso inflamado em busca por culpados, é importante analisarmos primeiramente um contexto mais amplo. Ou seja, a histórica relação entre os Estados Unidos e a OMS e o comportamento de Trump em relação a organizações multilaterais para, assim, compreendermos o cenário específico que levou ao rompimento unilateral: a pandemia de COVID-19.

Estudiosos da Saúde Global – como Marcos Cueto (2005), Theodore M. Brown (2005), Nitsan Chorev (2012), entre outros – apontam o comportamento contraditório dos Estados Unidos como essencial para entender tanto a história quanto os percalços da OMS. Acredita-se que, se, por um lado, os Estados Unidos apoiavam os objetivos da Organização e do sistema das Nações Unidas como um todo; por outro, via-se o multilateralismo como um empecilho para as recorrentes ações unilaterais do país.

Neste sentido, vale mencionar que o imperialismo estadunidense na América Central no século XX se baseou especialmente na intervenção econômica, muitas vezes justificado pelo controle de doenças infecciosas, promovido pela Divisão Sanitária Internacional da Fundação Rockfeller. Isso porque tais  doenças eram vistas como impedimentos à produtividade do trabalho, ao investimento e ao desenvolvimento econômico. Essas intervenções não resultaram, porém, no fortalecimento da infraestrutura de saúde para um aumento dos serviços de saúde pública e da atenção primária. No que tange a saúde, os Estados Unidos sempre agiram visando implantar um modelo internacional de controle de doenças amparado no interesse nacional e em em argumentos macroeconômicos. Samuel Huntington (1999) cunhou esse comportamento de “unilateralismo global”, ou seja, o envolvimento global seria definido e guiado pelo interesse particular dos Estados Unidos.

Desde a campanha eleitoral, a narrativa de Donald Trump foi construída sob um discurso nacionalista e populista, menosprezando instituições e foros multilaterais. No início de seu governo, o presidente editou uma ordem executiva, visando a reduzir em 40% o apoio norte-americano às Nações Unidas. Tanto em 2018 quanto em 2019, na Assembleia Geral das Nações Unidas, Trump criticou o “globalismo” e afirmou que o futuro pertencia aos patriotas. A ideologia globalista é um termo adotado pela direita populista no mundo, que acusa o multilateralismo e a governança global de serem uma “ameaça à soberania”.

Ernesto Laclau (2005) alerta que não há populismo sem a construção discursiva de um inimigo. E Trump já elegeu os seus: a China, como inimigo externo, e os democratas e jornalistas, como inimigos internos. Os inimigos têm a função de dar legitimidade e justificativa para ações potencialmente impopulares, como a construção do muro na fronteira com o México e, mais recentemente, a retirada dos Estados Unidos da OMS. O presidente norte-americano busca culpados para não assumir, em ano eleitoral, sua fracassada resposta à pandemia. A maioria dos cuidados de saúde nos Estados Unidos é fornecida pelo setor privado, e divídas de saúde estão entre as principais causas de falência pessoal no país. Assim, apesar da ausência de um sistema universal de saúde e dos custos exorbitantes de consultas e tratamentos serem variáveis importantes, merecem atenção exclusiva. O comportamento de Donald Trump, portanto, é o objeto de análise.

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Um exemplo desastroso para a saúde global

Com um comportamento que inspirou o negacionismo do  presidente Jair Bolsonaro, Trump por meses minimizou o novo coronavírus (SARS-CoV-2), culpou os estrangeiros e o governo de Barack Obama e afirmou que os democratas estavam politizando o vírus. O presidente, ainda, contribuiu com fake news e teorias conspiratórias, de que todo o “alarme internacional” seria para a Johnson & Johnson criar uma vacina, e afirmou diversas vezes que a situação estava melhorando para tentar animar os investidores do mercado de ações. Sem qualquer comprovação científica, Trump afirmou que o clima quente poderia matar o vírus e, assim, com a chegada da primavera, ele iria “milagrosamente desaparecer”. Enquanto todos os indicadores disponíveis apontavam que a crise de COVID-19 estava piorando rapidamente, Trump insistia em que o coronavírus era um pequeno problema, menos grave do que uma gripe. A falta de testes acabaria mostrando que, na realidade, o país não tinha dimensão da gravidade do problema. O presidente Trump, no entanto, afirmava que possuía uma “habilidade natural” de ter tanto conhecimento quanto cientistas, chegando a sugerir uma “injeção de desinfetante” como tratamento.

Em 24 de abril, o Editorial do The British Medical Journal (BMJ)[1] afirmou que a “incompetência surpreendente” de Donald Trump era o determinante político da COVID-19. Com quase dois milhões de casos confirmados e mais de 100 mil mortes, os Estados Unidos foram o país mais atingido do mundo. Ainda assim, Trump declarou que não assumia qualquer responsabilidade pela crise. Alguém precisaria ser culpabilizado, então, a OMS se torna o novo inimigo. A mesma OMS que Trump elogiou em fevereiro por “trabalhar duro e com muita inteligência” e que não possui mecanismos de fiscalização e de coerção para que um país aja em conformidade com suas recomendações. O diretor-deral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, salientou a discricionariedade dos países de adotarem, ou não, as medidas recomendadas pela Organização. Trump, então, passou a usar agressivamente a alta contribuição financeira do país para chantagear esta agência do sistema ONU. Ironicamente, o país que busca exportar a democracia para o mundo passou a exigir – unilateralmente – mudanças em uma Organização que engloba 194 Estados-Membros e em que todas as decisões são tomadas por votação. A OMS não aceitou a pressão, e Trump, depois de suspender o financiamento, declarou o rompimento das relações.

Dr. Tedros tem ressaltado a importância de uma resposta coordenada da comunidade internacional para impedir a propagação e para o desenvolvimento de um tratamento eficaz contra a doença, ao invés de especular sobre o que a China fez, ou não fez, nos primeiros dias do surto. Liderada pela União Europeia e adotada por consenso na Assembleia Mundial da Saúde, a Resolução WHA73.1[2] estabelece a necessidade de uma avaliação imparcial, independente e abrangente para revisar a resposta internacional ao coronavírus. É consensual a necessidade de uma revisão, mas é uma responsabilidade conjunta. A OMS precisa garantir sua integridade e independência e resistir à pressão individual de governos, quaisquer que sejam.

Uma eventual saída dos Estados Unidos da OMS, provavelmente diminuirá a influência americana e aumentará o papel da China e da União Europeia na diplomacia da saúde global, mas ambos terão que arcar com os custos financeiros deste maior protagonismo. Um aumento das contribuções obrigatórias do Estados-Membros não somente amenizaria o vácuo financeiro deixado pelos Estados Unidos, como também aliviaria a distorção “donor-driven”, um dos maiores desafios da OMS. A Organização Mundial da Saúde é maior do que os Estados Unidos, que constantemente pressionam em prol de interesses própriosem detrimento dos interesses de saúde pública. A decisão de Trump é uma grande oportunidade para debater o sistema multilateral para que o mesmo não fique a mercê dos desejos de alguns países ricos.


[1] Donald Trump: a political determinant of covid-19. Disponível em: https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1643

[2] COVID-19 response. Disponível em: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA73/A73_R1-en.pdf


Referências

BROWN TM, CUETO M, FEE E. The World Health Organization and the transition from “international” to “global” public health. Am J Public Health. 2006;96(1):62‐72. doi:10.2105/AJPH.2004.050831.

CHOREV, N. The World Health Organization between North and South, 2012, Cornell University.

HUNTINGTON, S.P. The Lonely Superpower – Foreign Affairs ( Mar/Apr 1999 ): 35–49 .

LACLAU, Ernesto. On populist reason, 2005, London: Verso.