A Argentina foi uns dos primeiros países a protagonizar aquela que alguns analistas chamaram de a “era dourada” da esquerda latino-americana, referenciada por figuras como Néstor Kirchner, Lula da Silva e Hugo Chávez. Os anos da primeira década do século XXI foram de bonança e expansão econômica, cenário muito distinto do que se vive atualmente na região.

Em 25 de outubro de 2015, os argentinos foram às urnas para eleger o próximo Presidente e Vice, além de 130 deputados nacionais, 24 senadores  e 24 representantes ao Parlamento do Mercosul (Parlasur). Os resultados foram uma grande surpresa: contra a maioria dos prognósticos, pela primeira vez em sua história a Argentina terá um segundo turno entre os dois candidatos mais bem votados. Ele ocorrerá no próximo 22 de novembro e terá a participação do governista Daniel Scioli e do opositor Mauricio Macri. Os resultados oficiais indicaram 36,9% dos votos para Scioli (da Frente para la Victoria-FpV), 34,3% para Macri (da coalizão Cambiemos) e 21,3% a Sergio Massa (Frente Renovador-FR).

A presidente Cristina Fernández de Kirchner deixará a Casa Rosada com aproximadamente 60% de aprovação a seu governo, fato que não se refletiu nas eleições. A apertada vitória da FpV significou um duro golpe para Scioli e o legado kirchnerista. Neste cenário, Macri converteu-se no favorito no balotage para chegar à Presidência, o que levaria a um giro radical depois de 12 anos de kirchnerismo.

Caracterizado por suas principais figuras como a “Década Ganhada”, os governos da Era K. marcaram a história do país vizinho, beneficiados por um período de preços recordes das matérias-primas, principalmente a soja. A administração de Néstor Kirchner (2003-2007) logrou tirar o país de um dos seus piores momentos  depois do colapso econômico de 2001-2002. Em 2007, o Presidente foi sucedido por sua esposa, a senadora Cristina Fernández, começando assim uma fase muito diferente do kirchnerismo, marcado por conflitos com alguns setores da sociedade civil, da agricultura, da imprensa e do sindicalismo.

No âmbito regional não foi muito diferente, se lembramos o conflito com o seu vizinho o Uruguai pela instalação das plantas de celulose nesse país, conflito que acabou por aprofundar as assimetrias dentro do Mercosul no que diz respeito à cooperação comercial. Mesmo assim, foi inegável a relevância da Argentina no processo de integração regional dos últimos anos, principalmente na construção da União das Nações Sul-Americanas, a Unasul, que teve o ex-presidente Néstor Kirchner como seu primeiro Secretário-Geral. A Unasul é um ambicioso projeto de coordenação política na América do Sul. Diferentemente do Mercosul, apresenta-se como um foro de mediação e resolução de controvérsias na região que privilegia a manutenção  da democracia e do Estado de Direito.

Com vistas ao segundo turno, se olharmos para as propostas eleitorais da coalizão “Cambiemos” liderada por Mauricio Macri, não encontraremos  referências à Unasul nem aos novos mecanismos de cooperação na América Latina como a CELAC. Somente se faz menção ao Mercosul como “meio de potencializar o desenvolvimento da região”.  No item “Relações Internacional e Defesa” desta plataforma, destaca-se que a atuação da Argentina em organizações de caráter global como a OMC e ONU deve ser aprofundada pela diplomacia argentina. Também são enfatizados temas como “desenvolvimento sustentável, luta contra o terrorismo, não proliferação nuclear, questões humanitárias e direitos humanos”, que integram hoje a agenda da maioria dos países latino-americanos. Ainda que referende um consenso sobre a relevância destes temas na comunidade internacional, a plataforma de Macri não se aprofunda em nenhum deles. Seu eixo é a retomada das relações bilaterais com os países desenvolvidos: “Nuestro gobierno no verá al mundo exterior como un enemigo, sino como una oportunidad para el desarrollo del potencial argentino”.

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Segundo o professor Gustavo Insaurralde da Universidad Nacional de Rosario (UNR), o modelo de inserção internacional proposto por Macri enquadra-se como de uma “nova relação especial”. Esta caracterização está baseada nos tipos históricos apresentados pelos cientistas políticos Roberto Russell e Juan Gabriel Tokatlian em 2011 (Ver Russell e Tokatlián). Segundo estes autores  ao longo da sua historia, a Argentina tem seguido três padrões de inserção internacional: o modelo da relação especial com a Inglaterra, o paradigma globalista e a estratégia de eqüidistância pragmática. O modelo da relação especial faz referência à dependência a uma potencia hegemônica na formulação da estratégia de inserção internacional, vinculada à produção agroexportadora. Historicamente, este modelo encontrou no pacifismo e no europeísmo as suas vertentes naturais, devido à indexação de seus interesses nacionais a uma potência estrangeira.

Por outro lado, entre as propostas do candidato governista Scioli o capitulo dedicado à Política Externa é chamado de “Desenvolvimento Regional e Mundial”. Nele, pode-se ver que “o eixo da estratégia internacional deverá ser a constituição de uma política exterior pragmática construída mediante um acordo coletivo e democrático com visão de futuro”. No documento, também se afirma a necessidade de continuar cumprindo com compromissos assumidos a partir de 2003, entre eles o aprofundamento dos mecanismos de integração regional.

De acordo com Juan Tokatlián, professor da Universidade Torcuato Di Tella, “se Scioli ganhar, é provável que haja uma reorientação de alguns aspectos da política exterior, sem que isso implique uma reestruturação completa. Com Macri, a propensão a sugerir uma refundação é mais previsível”.

As diferenças com a agenda externa kirchnerista ficam visíveis especificamente no que diz respeito ao Mercosul, já que a diretriz anunciada por Scioli destaca que o bloco deve funcionar como um mecanismo que aumente os processos de complementação produtiva, especialmente com foco na indústria automobilística. Para atingir os objetivos iniciais da organização regional (a implementação de uma união aduaneira e posterior formação de um mercado comum) destaca-se a importância de estreitar laços com o Corredor do Pacífico, através da conformação de uma estratégia de inserção internacional conjunta.

Os candidatos que participarão no segundo turno das eleições demonstram que pretendem propor novos caminhos em termos de política externa. Em maior ou menor medida, a reestruturação da política exterior constitui fator comum a ambos os candidatos. Seja quem vier a ser o novo presidente argentino, tudo indica que haverá grandes mudanças na relação do país com mundo e especialmente com a região.