Após ser ameaçado de homicídios, Sergei Furgal, atual governador do krai [1]de Khabarovsk, Rússia, foi levado por agentes das forças especiais do Kremlin até Moscou, onde foi condenado e permanece em prisão. O ocorrido foi o estopim para o início de protestos que tomaram Khabarovsk, cidade localizada no extremo oriente russo próxima à fronteira com a China. A despeito das restrições impostas pela pandemia da Covid-19, dezenas de milhares de habitantes tomaram as ruas no sábado, 17 de julho de 2020, em reação ao episódio. Convencidos de se tratar de uma manobra política desenhada no seio do centralismo político do presidente Vladimir Putin, os manifestantes marcharam embalados por brados que condenavam a arbitrariedade do evento e denunciavam o descaso de Moscou para com a região.

Membro do Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR), Furgal logrou seu posto como governador em 2018, após derrotar o então candidato da Rússia Unida, maior partido político russo da atualidade e ao qual é filiado o presidente Vladimir Putin, Vyacheslav Shport. A vitória impôs uma grande derrota ao Kremlin, que não conseguira eleger seu representante na região, e deu início a um mandato de caráter populista apoiado no discurso anticorrupção à época invocado pelo slogan “Chega de mentiras”, disseminado pelo então candidato do LDPR.

Conflito de interesses

Ainda que o cenário político russo seja marcado por uma tímida oposição ao governo, fato que se agrava ainda mais em regiões afastadas da capital russa, Furgal foi capaz de conduzir um mandato popular. O aumento dos índices de aceitação do governador por parte da população local se deu, contudo, simultâneo à baixa da popularidade de Putin, que demonstrou uma queda de 21 pontos percentuais entre abril de 2018 e 2020. Neste contexto político, que se agrava face à pandemia da Covid-19, a manutenção de um governo bem quisto não alinhado ao Kremlin parece contrariar os interesses da Rússia Unida e, sobretudo, de Putin, cujas recentes manobras constitucionais sugerem uma tentativa de se manter no poder.

Para além das desavenças partidárias que se colocam no cenário dos recentes protestos no extremo oriente russo, outra questão tem incitado a revolta contra o governo central. Apesar de  a região de Khabarovsk dispor de recursos naturais caros à economia, como metais preciosos e madeira, a população sofre com uma média salarial mais baixa que a nacional, altos custos de energia e uma carga tributária desproporcional em relação ao ganho per capita. Altas taxas de emigração do local ilustram a disparidade encontrada entre a disponibilidade de recursos e o bem-estar da população. Segundo o cientista político Yevgueni Chadayev, nos últimos 15 anos, um em cada quatro habitantes deixam o local. Para além do caráter predatório com que empresas exploram a região, contudo, estes dados denunciam o desinteresse do Kremlin em relação ao krai, o que incita os manifestantes que, canalizando apoio a Furgal, protestam contra o descaso.

Em resposta aos desdobramentos da prisão do governador, Putin nomeou o político Mikhail Degtyarev, também filiado ao LDPR, ao cargo no dia 20 de julho de 2020. Ainda que a escolha de um nome vindo do mesmo partido de Furgal pareça buscar arrefecer os ânimos da população, os protestos não têm demonstrado indícios de enfraquecimento. A insatisfação da população relação à deliberada escolha do presidente pode ser compreendida a partir de dois pontos principais: (i) Degtyarev é oriundo da região de Samara, e, portanto, não tem relações com a região de Khabarovsk; (ii) o recém-nomeado governador iniciou sua carreira na Rússia Unida, o que poderia indicar maior abertura a uma ingerência completa de Putin.

Estado Russo: centralismo e continuidade

A prisão de Furgal, a nomeação de Degtyarev, a reação  gerada por ambos acontecimentos, as razões que motivam os habitantes a tomarem as ruas não são mero fruto de acontecimentos recentes, nem podem ser de fato compreendidos sem que se entenda aquilo que se encontra no cerne destes desdobramentos. Em uma concepção mais generalista, os atuais eventos, remontam à constituição do Estado Russo e à centralidade política arraigada na região. Desde o chamado Estado kievano, que data do século IX e finda no século XIII com a invasão mongol, uma característica fundamental daquilo que viria a se conhecer como Rússia é sua imensa proporção territorial e sua pluralidade étnica. Desta maneira, seja em pleno Estado moscovita, seja em plena União Soviética (URSS), codificar todas essas dimensões geográfica e cultural foi um fator imprescindível para a formação e a sustentação estatal ao longo da História.

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Enquanto a porção oeste da Europa se baseou em um processo de formação estatal que obedece a uma cronologia que, via de regra, prevê o nascimento da nação, do povo, para então haver a institucionalização do Estado, a Rússia se formou, de certa maneira, pela via oposta. Em resposta à diversidade expressiva de povos, foi preciso primeiro criar um forte e centralizado Estado para, então, forjar uma população que com ele se identificasse a despeito das diferenças observadas entre os muitos grupos que a formavam. Portanto, podemos dizer que a constituição política desta região não obedeceu de modo regrado àquilo que tipicamente nos é apresentado como um processo padrão pelos livros de História, que evocam em especial nomes como França e Reino Unido como exemplos de formação estatal.

Construiu-se, assim, um conceito de Estado que não se alinha necessariamente aos valores democrático-liberais, sobretudo, por não se tratar de um Estado-nação aos moldes difundidos pelo Ocidente. As consequências disso se distribuem ao longo da História, do czarismo até os dias atuais. O presente governo russo é um claro exemplo dos desdobramentos de séculos de centralismo. Ao subir ao poder no início dos anos 2000, Putin assumiu uma Rússia devastada pelas inúmeras crises que devastaram o país no decorrer dos anos 1990 e prometeu salvá-la, partindo de um retorno à típica centralidade.

Com o fim da URSS, o então presidente Boris Yeltsin (1991-1999) optara por uma abordagem que aproximasse o país do Ocidente como forma de resgatar uma participação na política e economia mundiais, presença que fora ameaçada com a queda do bloco socialista. Nesse ínterim, houve uma experiência de relativa descentralização do poder que, somada aos inúmeros conflitos territoriais e aos parcos resultados econômicos, cristalizou ainda mais o apreço pelo centralismo no ideário nacional. Com efeito, Putin se elegeu justamente com um discurso de retorno à grandeza invariavelmente atrelada à recentralização política do país. Os bons resultados apresentados logo nos primeiros anos de mandato, decorrentes também da bonança econômica ocasionada pelo aumento do preço do petróleo, alavancaram a popularidade não somente de Putin, mas, também, da dinâmica de governo por ele empreendida: o retorno à centralização típica do Estado Russo.

Os recentes protestos em Khabarovsk representam, portanto, não somente uma insatisfação pontual da população local, mas também uma reação a uma estrutura política secular. Na esteira dessa afirmação, podemos encarar a prisão de Furgal e a nomeação de Degtyarev como símbolo da ingerência do Kremlin em assuntos locais e uma forma de garantir a Putin e à sua Rússia Unida controle pleno sobre a nação. Não nos cabe, aqui, fazer juízos de valor a respeito dos benefícios e malefícios da histórica centralidade política russa e das atuais decisões tomadas pelo governo central, contudo, é indispensável que não se perca de vista a historicidade por trás dos recentes eventos que se desdobram na Rússia em pleno século XXI.


[1] Termo utilizado para designar as unidades administrativas do Estado Russo, as quais somam, no total 85 regiões.


* Revisão: Marcel Artioli e Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”