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O debate sobre as transformações da política externa brasileira (PEB) desde a redemocratização consolidou a perspectiva de analisá-la como uma política pública. A nova abordagem ganhou força tanto pela adoção de novas molduras teóricas influenciadas pela literatura de Análise de Política Externa, quanto pelas transformações na forma como esta política se desenvolve no Brasil.

A análise por meio de tais lentes levantou debates sobre sua horizontalização, pluralização e ‘presidencialização’. O primeiro se refere à crescente dinâmica inter-burocrática no desenvolvimento da política externa, resultante da criação de comissões interministeriais e do intercâmbio de recursos humanos entre ministérios para lidar com os novos temas emergidos com o final da Guerra Fria (Ex: meio ambiente, direitos humanos, migrações etc.). A interlocução destes temas com as Relações Internacionais gerou a demanda de diplomatas em outros ministérios e levou o Itamaraty a abrir o diálogo com burocracias responsáveis por estas áreas. O segundo trata, além da maior participação de outros atores estatais (como outras burocracias e o poder legislativo), do aumento do interesse e da influência de atores não estatais na política externa (p. ex.: grupos de interesse, opinião pública e organizações da sociedade civil), resultado dos impactos crescentemente distributivos da PEB devido ao processo de abertura econômica. Por fim, a ‘presidencialização’ trata da participação direta dos mandatários na formulação e condução da PEB, aproximando-a ou atrelando-a aos objetivos do governo, do partido e/ou do presidente. Temas de política externa em destaque na agenda política ou de debate público podem atrair o interesse do mandatário na política externa, já que os resultados de política acertadas podem gerar visibilidade e votos.

Estes fenômenos têm origens comuns – aberturas política e econômica ocorridas no Brasil, e emergência de novas agendas globais – e desenvolvimentos interconectados. Eles enfraqueceram a percepção da PEB como uma política de estado e conduzida essencialmente pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), justificando a necessidade de investigá-la como as demais políticas públicas, sujeitas às influências da política doméstica, ainda que com seu intrínseco diferencial da implementação ocorrer fora das fronteiras nacionais.

Mais recentemente, o impacto da política doméstica sobre a externa parece ter sido exacerbado. Além dos processos acima mencionados, é possível notar uma crescente politização, em termos amplos, e da influência do sistema político brasileiro (e das relações Executivo-Legislativo) sobre a política externa, mais especificamente.

Isto parece ter se originado com o processo de exacerbação da política no debate público nacional, iniciado em 2013. O movimento emergido no período que, dentre várias pautas, tinha uma plataforma anticorrupção, incluiu um componente fortemente antipetista, levantando críticas às relações dos Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) com governos autoritários  de esquerda (e seu suposto financiamento). Ainda que a proximidade ideológica e pessoal com determinadas lideranças, principalmente na América Latina, tenha sido instrumentalizada para aprofundar parcerias, mantiveram-se no período as linhas tradicionais da PEB, consolidadas na Constituição de 1988.

Frente este cenário, desde o início de seu segundo governo (2015-2016), Dilma Rousseff teve dificuldade para governar. Sem conseguir consolidar sua coalização com 10 partidos em um legislativo altamente fragmentado, a presidente buscou atrair apoio político e econômico redistribuindo ministérios e trazendo um ministro da fazenda do “mercado” – Joaquim Levy. Em matéria de política externa, além de buscar uma aproximação à OCDE e aos Estados Unidos, fez maiores concessões nas negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia, e diminuiu o protagonismo global brasileiro.

Como sabemos, as iniciativas não foram suficientes e, sem contar nem com aprovação popular, nem com apoio no Congresso, Dilma caiu. Seu impeachment resultou mais da incompatibilidade ideológica e de objetivos políticos entre os poderes executivo e legislativo do que a crimes de responsabilidade. O acordo entre as elites políticas e econômicas que viabilizou a derrubada da presidente teve impactos significativos na política externa. Como um dos apoiadores do impeachment, 0 PSDB recebeu o comando do Itamaraty na nova divisão de poder. José Serra e Aloysio Nunes, dois senadores com passagem pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, usaram o posto para ecoar sua narrativa de que os governos do PT haviam “ideologizado” a política externa, justificando a implementação de mudanças significativas. Além de um giro ao Norte, pormenorizaram a tradição multilateralista da PEB em busca de tratados de livre comércio bilaterais e distanciaram o Brasil de países vizinhos pela sua proximidade com a gestão anterior.

Na esteira desse processo, a maior mudança ocorreu com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência, em 2019. A candidatura, fenômeno originado tanto dos desdobramentos de 2013, quanto do próprio impeachment, desfrutou de sua narrativa de outsider, anti-establishment e de sua alta popularidade para implementar uma agenda que destruiu a imagem internacional brasileira e isolou o Brasil no cenário internacional. Inicialmente, para manter essa narrativa usou suas prerrogativas executivas para governar, evitando distribuir cargos ministeriais em linhas partidárias e buscando apoio ad hoc para aprovar pautas de interesse mútuo do executivo e do legislativo. Resultado, o presidente emitiu mais despachos provisórios que seus quatro antecessores. Ainda assim, devido a seu estilo autoritário e má gestão na articulação política, aprovou apenas 42% deles. Na política externa, também centralizou a condução em seu círculo de confiança, distanciando-a das tradições nacionais, e vinculando-a a sua ideologia, de seus principais apoiadores e de outros governos de extrema direita no mundo. Ernesto Araújo, juntamente com outros nomes que se tornaram influentes na área, como Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins, foi o responsável pela ideologização da PEB, com total alinhamento à agenda de Trump e constante confronto retórico com a China, a principal parceira comercial do Brasil.

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No entanto, na medida em que a popularidade de Bolsonaro começou a cair e cresceu a pressão por seu impeachment, ele teve que buscar apoio político de grupos dominantes no Congresso, construindo uma coalizão com o chamado “centrão”, em uma lógica semelhante a governos anteriores, mas substituindo, pelo menos parcialmente, a divisão de ministérios pela distribuição de ementas parlamentares por meio do que ficou conhecimento como o “orçamento secreto”.

A condução desastrosa da política externa, que seguiu uma estratégia de super politização, foi alvo de críticas tanto da oposição quanto destes novos grupos que passaram a integrar o governo, tornando a permanência de Araújo (dentre outros motivos, pela postura agressiva em relação à China, pela gestão da compra de vacinas e pelo erro na estratégia de alinhamento a Trump) e Ricardo Salles (devido ao impacto da gestão ambiental sobre a imagem internacional no Brasil) insustentáveis. Membros da coalizão de Bolsonaro, incluindo os presidentes da Câmara e do Senado, e parlamentares/grupos vinculados ao agronegócio, pressionaram e conseguiram a demissão dos dois ministros.

Com a indicação de Carlos França, o Itamaraty, ao menos parcialmente, adotou uma postura mais pragmática com a China, com tentativas de aproximação de e apaziguamento das polêmicas declarações do presidente e de outros ministros. Ainda que tenham sido mantidas as linhas gerais da política externa bolsonarista, a retórica ufanista e “soberanista” em relação à Amazônia deu lugar a tentativas de projeção de uma imagem do Brasil como o país com mais reservas ambientais do mundo. Ademais, círculos próximos a Bolsonaro abrandaram às críticas à China, com o próprio presidente passando a fazer críticas veladas (ainda que claramente direcionadas) à potência asiática.

Com a leve melhora econômica e a subida de Bolsonaro nas pesquisas, o centrão (de olho na continuidade do acesso às volumosas emendas parlamentares) embarcou na campanha eleitoral do presidente. Paralelamente, Bolsonaro intensificou os ataques ao sistema eleitoral, realizando talvez o mais inusitado evento diplomático da história brasileira. Convocou representantes de todas as embaixadas em Brasília e discursou para desacreditar o sistema eleitoral de seu próprio país. O constrangimento marcou o evento e inclusive gerou notas de representantes estrangeiros em apoio ao sistema eleitoral brasileiro. O evento é representativo do que tem sido a reta final de seu governo, marcada pelo comportamento instável do presidente e tentativas de seus aliados em frear seus ímpetos extremistas. Os impactos negativos dos ataques do presidente sobre a democracia brasileira geraram inclusive pressão dos Estados Unidos com potenciais riscos à soberania nacional

A politização da política externa é um processo consolidado. Além das transformações iniciadas nos anos 1990, fenômenos recentes, como a pandemia e a ascensão da extrema-direita, intensificaram a interdependência entre as agendas doméstica e internacional. No entanto, parece ter atingido um teto, após a reação das elites, ainda que tardiamente, para frear esta agenda fora de qualquer parâmetro aceitável. Uma derrota eleitoral do atual mandatário certamente abrandaria a politização da política externa, mas seu principal adversário encontrará condições domésticas muito mais restritivas caso tente retomar as diretrizes de política exterior adotadas em seus mandatos anteriores.


*Revisão: Marcela Franzoni

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP).