Crédito da Ilustração: Israeli startup AnyVision uses artificial intelligence to recognize faces, bodies and objects for security and other purposes. (YouTube screenshot)

No último mês de maio, a escalada de tensões entre a polícia israelense e moradores palestinos de Sheikh Jarrah, bairro de Jerusalém Oriental, inaugurou o mais recente episódio da questão palestino-israelense que rapidamente voltou às manchetes internacionais. Ao mesmo tempo em que a brutalidade dos bombardeios a Gaza e o saldo de mais de 200 palestinos mortos chocava boa parte da opinião pública internacional, desencadeando manifestações de solidariedade ao redor dos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs) e do mundo, o verdadeiro cerco que foi imposto sobre Sheikh Jarrah denuncia a persistente tendência expansiva da colonização da Palestina, evidente não mais apenas pelas históricas políticas de despossessão, extradição e restrição conduzidas pela presença israelense no território, mas também pelo sutil e recorrente reordenamento do regime de controle imposto sobre o povo palestino há mais de setenta anos.

A despeito do cessar-fogo declarado em 20 de maio entre Israel e o Hamas, o tensionamento em Gaza e nos bairros palestinos de Jerusalém Oriental perdura, na medida em que as forças israelenses seguem reprimindo violentamente a reação palestina local em relação à expansão dos assentamentos de colonos em Sheikh Jarrah e Silwan. Em grande medida, tal expansão implica na demolição sistemática de infraestrutura e expulsão de dezenas de famílias palestinas de suas casas. O enviado da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Oriente Médio, Tor Wennesland, a esse respeito, recordou mais uma vez que os assentamentos israelenses nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental configuram violação de resoluções das Nações Unidas e da Lei Internacional, e declarou preocupação diante da continuada violência contra civis palestinos e da habitual contestação de Israel quanto à cessação de seus empreendimentos expansionistas.

A definição do novo governo, liderado por Yair Lapid e Naftali Bennett, em 13 de junho de 2021, trouxe renovado sinal de alerta, ao passo que especialistas apontaram para elementos de continuidade em relação à administração conservadora de Benjamin Netanyahu. Para a Human Rights Watch, o parlamento que recém tomou posse está comprometido com a manutenção da supremacia judaica, marcado por declarações nacionalistas de Bennett – atual premiê, ex-Ministro da Defesa e empresário do setor de tecnologia, favorável a anexação da Cisjordânia – tais como “eu matei muitos árabes na minha vida. E não há nenhum problema com isso”, conforme reportado pelo Yedioth Ahoronot. Lapid, que assumirá a segunda metade do mandato em 2023, no passado já se manifestou em favor da chamada “solução de dois estados” e da subsequente possibilidade de um estado Palestino soberano – sendo manifestamente contrário, entretanto, a qualquer possibilidade de divisão de Jerusalém, um dealbreaker habitual das negociações de paz do passado.

A Resolução 181 da ONU (1947), sobre o Plano de Partição da Palestina, determina a cidade de Jerusalém como território internacional. A partir de 1948, o território passou a ser dividido entre zonas de controle de Israel e, até 1967, zonas de controle da Jordânia, cuja maioria demográfica era, até então, palestina. Uma vez ocupada, Jerusalém Oriental foi submetida à ordem de exceção da Ocupação militar até que, em 1980, o parlamento israelense aprovou a Lei de Jerusalém, determinando que a cidade seria reunificada, implicando na efetiva anexação integral do território, incluindo milhares de hectares de vilas e municipalidades palestinas. Dessa maneira, a colonização de Jerusalém se insere no que podemos entender como um projeto político intrínseco à ocupação da Palestina histórica – que, nesses termos, inclui Cisjordânia e Gaza e, igualmente, o território que atualmente conhecemos como Israel.

Uma ocupação inconstante: regimes de modulação, controle e colonialidade

Ao longo dos cinquenta e quatro anos de ocupação militar da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e de Jerusalém Oriental, Israel lançou mão de sua conhecida capacidade de inovação para produzir mecanismos e soluções inventivas de reordenamento do território, controle da população e de sustentabilidade da dominação. Engana-se, nesse sentido, a adesão a uma interpretação demasiado simplista segundo a qual a presença israelense nos TPOs seria estática ou marcadamente influenciada pela orientação ideológica do Parlamento.

No contexto da Guerra dos Seis Dias, as Forças de Defesa de Israel (FDI), em 8 de junho de 1967, completaram a ocupação dos territórios palestinos, da Península do Sinai (que seria devolvida ao Egito em 1982) e das Colinas do Golã. Embora no imediato prelúdio da ocupação tenham sido colocados em prática mecanismos de limpeza étnica, tais como aqueles empregados durante a Nakba[1] em 1948, as décadas seguintes demonstrariam explicitamente o caráter distinto da administração da população palestina remanescente. Durante os primeiros vinte anos deste processo, a gestão dos territórios foi organizada em termos do que foi considerado como uma política de normalização, cujo princípio elementar era que a vida dos palestinos sob ocupação deveria parecer intocada e a presença israelense no território, invisível.

Nada havia de invisível, no entanto, na dinâmica de apropriação de terras que já se instaurava na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e na costa de Gaza, por meio de uma política de edificação de assentamentos[2] para transferência de colonos para dentro das fronteiras de 1967, estradas restritas para o uso de cidadãos israelenses e bases militares. Dessa forma, pode-se argumentar que no centro da arquitetura da colonização da Palestina localiza-se um robusto projeto de planejamento territorial em função do qual se desdobravam dispositivos de modulação e controle da população autóctone. Para além da ostensiva presença militar ao redor dos TPOs, não deixa de ser relevante a presença civil de comunidades de colonos. Desde o princípio, tais comunidades cumprem um importante papel para a vigilância sistemática sobre os territórios, requerendo para sua própria reprodução – e para a manutenção de assentamentos erguidos em torno de práticas e narrativas securitárias–, a garantia contínua de dispositivos de monitoramento e controle populacional.

Posteriormente à Primeira Intifada (1987) e, de forma mais pronunciada, ao fracasso dos Acordos de Oslo (1993 – 1995), a administração israelense reorganizou o regime de controle dos TPOs em torno de um princípio experimentado, em seu limite, com a Lei de Implementação de Retirada de Gaza (2005), do então primeiro-ministro Ariel Sharon. Este reordenamento se deu a partir da compreensão de que a gestão da “Ocupação Invisível” teria se tornado insustentável – também diante da exposição da truculência das FDI no contexto das Intifadas. Por consequência, a sobrevivência do projeto colonial na Palestina dependia da consolidação do que Frantz Fanon entende como característico da colonização moderna: a produção de um mundo compartimentado, dicotômico, permeado por um sempre violento equilíbrio entre o contato entre zonas mutuamente exclusivas que são a do colonizador e a do colonizado, e sua separação.

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No caso de Israel, isso se dá por meio da experimentação de práticas que, ao mesmo tempo permitiram ao Estado israelense o controle máximo sobre o território ocupado e possibilitaram a responsabilidade mínima sobre a população palestina, reduzida a uma condição de dependência e desastre iminente, inaugurando a configuração dos TPOs que conhecemos hoje. Os TPOs hodiernos se caracterizam pelos postos de controle militarizados – que registram e controlam os fluxos ao longo do território, barreiras móveis, de um horizonte marcado pelo Muro do Apartheid – e, por numerosos assentamentos que, do alto de colinas, observam com frequência as comunidades palestinas esparsadas e interditadas ao seu redor, como em um conjunto de arquipélagos cada vez mais isolados entre si.

A violência da despossessão e do deslocamento forçado em curso em Jerusalém Oriental não é, portanto, um episódio excepcional em um contexto de relações pacificadas, ou de uma resistência silenciada. Não é tampouco um resultado isolado de anos de políticas de expansão colonial conduzidas pelo governo de Netanyahu. Tal como podemos afirmar no que se refere aos territórios ocupados e a Palestina histórica, pode-se dizer que a colonização de Jerusalém é um projeto longevo, conduzido ao lado da elevação de estruturas concretas de reordenamento do território, as quais indicam expressamente que a ocupação se pretende definitiva e com amplo apoio do establishment israelense.

As fronteiras da colonização foram atualizadas: começa a “era pós-covid” em Israel?

“O Estado de Direito está se desintegrando em Israel”, afirmou Slavoj Žižek, diante dos bombardeios a Gaza do mês de maio. Sua percepção muito se associa a uma tendência que vem se manifestando cada vez mais nas ruas das cidades israelenses e que, talvez, mais do que nunca, tem recebido sinais de aprovação por parte das instituições do Estado. Marchas e manifestações de grupos israelenses de extrema-direita vêm sendo observadas nas grandes cidades do país, como a chamada Marcha das Bandeiras, que cruzou a Cidade Velha de Jerusalém comemorando o aniversário da ocupação, sob proteção de milhares de policiais israelenses, ao som de “morte aos árabes”. Desde o início de maio de 2021, observa-se uma intensa profusão de discursos de ódio compartilhados em redes sociais, incitando violência contra palestinos em Israel, impulsionados pelos confrontos em Sheikh Jarrah e motivados pela defesa da expansão colonial.

Com efeito, nos últimos meses, cresceram as tensões nas ruas entre cidadãos israelenses e civis palestinos dentro das fronteiras de Israel. A escalada nas tensões parece atualizar as fronteiras da violência colonial que, até recentemente, pareciam se restringir, pelo menos em sua forma mais truculenta, aos territórios de 1967 e, particularmente, à Faixa de Gaza. O uso de legislações discriminatórias, detenções administrativas e inventivas estratégias de deslocamento forçado interno ao território parecem não mais dar conta da necessidade do Estado de Israel de “manter as aparências” de normalidade.

Em 2007, Naomi Klein anunciava: a economia israelense tem uma capacidade particularmente inovadora no que se refere a colher bons frutos de choques político-econômicos. Considerando o contexto de tensão recente, é bastante provável que a pandemia do coronavírus tenha representado uma significativa oportunidade para que Israel estimule a modernização de seus dispositivos de controle e contra-insurgência. Dessa forma, Israel busca – como o fez em circunstâncias semelhantes no passado – não apenas conter conflitos internos, mas principalmente para impulsionar o principal nicho da economia nacional, isto é, o de um mercado de securitização em escala planetária.

Israel é um caso arquetípico da adoção de lógicas militaristas e do uso de tecnologias policiais de vigilância no combate ao covid-19. Durante 2020, a administração israelense encontrou uma oportunidade única para a expansão de práticas de securitização, as quais podem se apresentar úteis para reagir a uma possível resistência palestina, que sai revigorada dos episódios de maio de 2021. Nesse contexto, uma das iniciativas mais aplaudidas pelos serviços prestados no combate ao coronavírus é a da AnyVision Interactive Technologies, uma startup israelense especializada no desenvolvimento de tecnologias de reconhecimento facial e softwares de reconhecimento de objetos. Os softwares da AnyVision tornaram-se especialmente conhecidos pela possibilidade de incorporar a qualquer câmera a capacidade de reconhecimento facial. Além disso, no contexto da pandemia, a AnyVision esteve envolvida na instalação de checkpoints biométricos ao redor dos TPOs e foi amplamente reconhecida pelos esforços de aprimoramento do programa de câmeras de circuito interno de vigilância (CCTV) em Jerusalém Oriental.

Em grande medida, as atividades desenvolvidas pela AnyVision são os resultados concretos de um complexo industrial de vigilância israelense. Em Jerusalém Oriental, por exemplo, existe uma (1) câmera para cada 100 pessoas que circulam na região, todas elas passíveis de incorporação de tecnologias de reconhecimento facial que operam em tempo real com análise cruzada de dados coletados das mais diversas fontes. Além disso, as câmeras inteligentes da AnyVision operam em conjunto aos bancos de dados acumulados por softwares de policiamento preditivo adotados pela polícia israelense nos últimos anos. Durante esse período, foi registrado um aumento de detenções arbitrárias de palestinos jerusalemitas sob as mais espúrias alegações (como comportamentos online), o que, por vezes, implicou em expulsões temporárias ou permanentes da cidade.

Embora o processo de digitalização do controle populacional em Israel venha sendo experimentado há alguns anos, o contexto recente parece ter permitido, assim como outros “choques” que o precederam, um salto para o desenvolvimento e para a percepção – nacional e internacional – de legitimidade de novas tecnologias de contra-insurgência e vigilância. O ingrediente que talvez tenha faltado ao governo de Israel que ascende agora ao poder era uma chance de expandir seu laboratório para testagem e a expansão das fronteiras da colonização e suas consequências para as cidades israelenses, fornecendo uma interessante oportunidade para um reordenamento algorítmico da dominação colonial israelense.


[1] “Catástrofe”, em árabe, termo usado para designar a chamada primeira guerra árabe-israelense quando cerca de 85% da população palestina do território que é hoje Israel é expulsa de suas vilas de origem.

[2] O termo “assentamento” se refere às estruturas erguidas nos TPOs para transferência de população judaica, embora a construção de infraestrutura que altere as características locais de territórios sob ocupação militar seja considerada contravenção da Lei Internacional. A presença e expansão dos assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental é até hoje considerada pelas Nações Unidas um dos maiores obstáculos para a resolução do conflito, dada a soma de cerca de 750 mil colonos residindo em território palestino ocupado.


*Revisão: Marcela Franzoni e Marcel Artioli

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)