Ilustração: O Juízo Final, by Giovanni Canavesio.

Poderia ser o recurso dramático de um enredo de science fiction. Mas o “relógio do Apocalipse” (Doomsday Clock) está longe disso. Criado por um grupo de cientistas atômicos da Universidade de Chicago em 1947, logo após o início da guerra fria, o relógio foi concebido para assinalar o perigo de uma catástrofe mundial em decorrência das ameaças nucleares sobre o mundo. Quando mais próximo da meia-noite, maior o perigo. Depois de 2007, passou-se a levar em consideração também os problemas derivados da mudança climática, da poluição ambiental e do impacto das novas tecnologias.

A cada ano o comitê responsável ajusta o relógio a partir de uma avaliação das ameaças existentes. Em 2018, os integrantes do Bulletin of Atomic Scientists adiantaram o Doomsday Clock, que passou a marcar 23h58. A marca foi mantida agora em janeiro de 2019. Estaríamos então a dois minutos de um cataclismo planetário. Para os cientistas, o mundo piorou em razão da “incapacidade dos dirigentes mundiais de fazer frente às ameaças iminentes de uma guerra nuclear, da mudança climática e da proliferação das fake news como arma de desestabilização das democracias”.

Os ponteiros só chegaram tão perto da meia-noite em 1953, quando os Estados Unidos e a União Soviética testaram a bomba de hidrogênio. A decisão de manter o relógio do juízo final em dois minutos antes da meia-noite foi feita pelo Comitê de Ciência e Segurança do Bulletin of the Atomic Scientists após consulta ao Conselho de patrocinadores do organismo, que reúne especialistas em segurança, armas nucleares e meio ambiente e inclui 14 laureados com o Nobel.

O início do diálogo do presidente norte-americano Donald Trump com o líder norte-coreano, Kim Jong-un ajudou a diminuir a tensão, mas “a situação continua a ser muito perigosa”. As tensões entre os Estados Unidos e a Rússia permanecem “inaceitáveis”, e nenhuma providência se vislumbra em termos do meio ambiente, com as emissões de gases de efeito estufa, “que voltaram a aumentar depois de terem atingido um platô”. Além disso, passou a existir um “ecossistema de troca de informações” que multiplica as ameaças. As fake news “geram raiva e divisão ao redor do mundo em uma época em que precisamos de calma e unidade”, concluiu Rachel Bronson.

Uma nova anormalidade

No texto com que divulgou a decisão,  dirigido aos líderes e cidadãos do mundo, o Comitê destacou que uma “nova anormalidade” indica que “ainda faltam dois minutos para a meia-noite”. E observou: “A humanidade agora enfrenta duas ameaças existenciais simultâneas, que são motivo de extrema preocupação e atenção imediata. Tais ameaças principais — armas nucleares e mudanças climáticas — foram intensificadas no ano passado pelo maior uso de guerra de informação para minar a democracia em todo o mundo, ampliando o risco destas e de outras ameaças e colocando o futuro da civilização em perigo extraordinário. A ‘nova anormalidade’ que descrevemos  é insustentável e extremamente perigosa. Mas a situação de segurança do mundo pode ser melhorada se os líderes buscarem mudança e os cidadãos a exigirem. Faltam dois minutos para meia-noite, e não há nenhuma razão para que o relógio do juízo final não se mova para longe da catástrofe. Ele fez isso no passado, porque líderes sábios agiram — sob a pressão de informados e engajados cidadãos ao redor do mundo”.

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No evento de lançamento do Boletim, a presidente e CEO da organização, Rachel Bronson, observou que “não há nada de normal na complexa e assustadora realidade que estamos descrevendo hoje. Como cientistas, mantivemos o relógio do juízo final em dois minutos para meia-noite, bem próximo do Apocalipse. Embora repetindo a marca de 2018, a configuração atual deve ser vista não como um sinal de estabilidade mas como um gritante aviso para líderes e cidadãos em todo o mundo.”

Seria possível acrescentar muitos outros focos de tensão: os deslocamentos populacionais e os muros com que se tenta fazer frente a eles, os descalabros políticos e administrativos de tantos governos, a corrupção, a desigualdade e a miséria que se mantêm em níveis vergonhosos, a criminalidade que se expande sem controle. Cada sociedade, cada Estado, além do mais, têm seus próprios relógios do Juízo Final, e em alguns casos os ponteiros avançam com grande rapidez.

Até mesmo o insuspeito Fórum de Davos concluiu seus trabalhos, em janeiro de 2019, com uma declaração oficial que faz um apelo contra as desigualdades sociais, que aumentaram com as novas tecnologias da Revolução 4.0. O Fórum mostrou que a diferença entre o salário de um executivo e o de um trabalhador médio saltou 970% nas últimas quatro décadas. A proporção passou de 30 para um em 1978 para 321 para um. Na década de 1970, a média global do Imposto de Renda estava em 62%. Agora, recuou a 38% nos países ricos e 28% nas nações em desenvolvimento. Em muitos países, as alíquotas de IR mais elevadas, que incidem sobre os ricos, foram abolidas, enquanto US$ 170 bilhões são enviados anualmente para paraísos fiscais.

A lista de soluções apresentadas pelo Fórum inclui cooperação entre setor privado e Estado, entre os diversos países, entre as várias indústrias. Além do combate à evasão fiscal, para que os recursos recuperados sejam investidos na redução das desigualdades. O apelo à cooperação foi reforçado sobretudo para conter disputas como a guerra comercial entre Estados Unidos e China, uma das principais ameaças para a economia global. A projeção para o crescimento deste ano foi revisada para baixo pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), para 3,5%. A estimativa ainda é positiva, mas bancos e organismos multilaterais não fizeram cerimônia em Davos ao usar a palavra “recessão” para descrever o que pode ocorrer.

O Apocalipse pode demorar e nem sequer ocorrer. Mas os alertas de que o mundo flerta com a catástrofe estão sendo feitos repetidamente por muitas vozes. O que certamente significa que devem ser levados na devida conta.