Assim como em ocasiões anteriores, a catástrofe que se desenha com a COVID-19 pode ser responsável por trazer à tona, mais uma vez, os perigos do isolacionismo, do protecionismo e do unilateralismo para a estabilidade do Sistema Internacional. Diante disso, é bastante pertinente que os diretores-gerais de duas das maiores organizações do sistema das Nações Unidas – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e Organização Mundial da Saúde (OMS) – e da Organização Mundial do Comércio (OMC) emitam uma declaração conjunta, expondo preocupações a respeito da segurança alimentar internacional.

QU Dongyu, Tedros Adhanom e Roberto Azevêdo – diretores da FAO, OMS E OMC, respectivamente – apontam para alguns problemas que a pandemia deflagrada pelo novo coronavírus podem provocar na cadeia mundial de suprimento de alimentos. Tais apontamentos foram publicados na declaração conjunta de 31 de março, intitulada “Mitigating Impacts of COVID-19 on Food Trade and Markets”. É que, diante desta pandemia ímpar, emerge a possibilidade de os governos implantarem barreiras a exportações para prevenirem eventual desabastecimento doméstico. Com isso, os preços dos produtos alimentícios poderiam sofrer distorções severas diante de uma escassez de oferta, tornando muito mais custoso para os importadores mais pobres o acesso a esses alimentos.

Essa medida poderia afetar ainda a formação dos estoques nacionais de alimentos para situações de emergência e mesmo a compra de alimentos para doações humanitárias realizadas pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA).

Urgência da cooperação internacional

Do ponto de vista das Relações Internacionais, reencontramo-nos com uma velha conhecida: a incerteza em um sistema internacional anárquico. Dizem os diretores que “Uncertainty about food availability can spark a wave of export restrictions, creating a shortage on the global market” e que “It is at times like this that more, not less, international cooperation becomes vital.” A questão fundamental, para eles, é como minimizar incertezas e garantir que os governos mantenham as funções de suas economias na cadeia global de valor agroalimentar funcionando.

De fato, durante a crise alimentar de 2007/2008, diversos exportadores de alimentos restringiram suas exportações como resposta ao temor de desabastecimento nacional e, na prática, isso contribuiu para o desabastecimento em outros países, especialmente os mais pobres. Diferentemente daquele momento, ainda há não escassez de produção em vista. O maior risco, no que toca aos alimentos e rações mais básicos (grãos como trigo, milho, soja e arroz), é o da quebra da cadeia logística. Isso poderia ocorrer, principalmente, por causa das restrições que cada país tem colocado à movimentação de pessoas e ao fluxo de atividades comerciais em seus territórios, assim como pela queda na demanda decorrente da brutal desaceleração da atividade econômica.

Seria necessário um amplo esforço de cooperação internacional para que os países classificassem as etapas das cadeias produtivas e logísticas do setor agroalimentar como serviços essenciais e, portanto, isentos de pelo menos parte das restrições de movimentação que visam a impedir a disseminação do novo coronavírus. Do mesmo modo, governos e bancos deveriam garantir os recursos para que a demanda não desabasse e para que os gargalos logísticos pudessem ser alargados neste momento crítico.

Isto é factível? Será possível chegar a um acordo de cooperação internacional desse nível no contexto atual? Clamam os diretores-gerais:

In the midst of the COVID-19 lockdowns, every effort must be made to ensure that trade flows as freely as possible, specially to avoid food shortage (…) Now is the time to show solidarity (…)”.

O imobilismo da comunidade internacional frente à crise

O clamor dos líderes das Organizações Internacionais esbarra em uma enorme barreira: a política antimultilateral dos Estados Unidos sob Trump. Dizem as teorias da cooperação internacional que é mais provável que os arranjos liberais emerjam e se sustentem quando os atores mais poderosos assumem custos desproporcionais em prol da manutenção do sistema. Este é um papel que Washington não demonstra, porém, o mínimo interesse em desempenhar atualmente.

Em crises anteriores mais recentes (como a de ebola, em 2014, e a financeira de 2008), os EUA assumiram um papel de protagonista, postura que não se observa durante a crise atual. Tampouco Pequim parece apta, ou disposta, a defender a ordem internacional liberal neste momento. A União Europeia também não tem chamado este ônus para si. Seus países, quando muito, têm enviado ajuda normalmente para as ex-colônias – ajuda essa que não é recebida sem crítica, ou desconfiança.

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Para Yuval Noah Harari, a comunidade internacional parece estar coletivamente inerte frente à atual ameaça, ou, utilizando suas próprias palavras, “parece não haver adultos na sala”. Um dos sintomas dessa realidade é a ausência de reuniões emergenciais entre líderes globais para a construção de um plano de ação capaz de combate a pandemia de maneira eficiente.

Nesse contexto, um elemento não pode ser perdido de vista. As grandes potências são, quase todas elas, relativamente autossuficientes em alimentos. Além disso, possuem os recursos financeiros e logísticos (Marinha Mercante, por exemplo) para adquirir os alimentos em mercados que estejam abertos e, eventualmente, para tomá-los à força. Portanto, possuem vulnerabilidade alimentar muito menor do que os países em desenvolvimento, sobretudo os mais pobres, quando a interdependência agroalimentar internacional é severamente sacudida.

A vulnerabilidade dos países em desenvolvimento

E nos países em desenvolvimento? Dos anos 1990 para cá, a dependência da importação de alimentos cresceu nestes países. Isso porque a agenda neoliberal impulsionou governos a incentivarem a produção de produtos agrícolas para exportação, mas não de alimentos básicos para consumo doméstico. Estes deveriam ser importados do mercado internacional, a preço mais barato. Além disso, houve incentivo para que os países desmontassem seus sistemas de estoques nacionais de alimentos, tanto para se monetizarem com a venda dos produtos, quanto para economizarem com o custo de manutenção de equipamentos e de alimentos. Assim, pagariam parte de suas dívidas e evitariam endividamento futuro. Ocorre que, na crise de 2007/2008, isso agravou a fome mundial. Desde então, parece que não houve mudança significativa neste modelo.

No Brasil, por exemplo, o governo Bolsonaro vem executando um plano de desmonte da CONAB, a Companhia Nacional de Abastecimento, empresa estatal que administra os estoques nacionais de alimentos. Ademais, o Brasil se tornou importador de feijão e voltou para o Mapa da Fome da FAO.

Por isso, se as grandes Organizações Internacionais estão pressionando pela manutenção do funcionamento das cadeias agroalimentares internacionais como uma forma de garantir a segurança alimentar global em um contexto de gravíssima crise econômica – o que nos parece correto nesta conjuntura imediata –, seria mais importante ainda que elas se unissem para defender, no curto e no médio-prazo, planos de reforma agrária, da diminuição da dependência da importação de alimentos, da criação de estoques alimentícios para enfrentar eventuais carestias, bem como de programas socioeconômicos para fortalecer a resiliência dos povos do campo.

Cabe lembrar que, via de regra, as pessoas mais famintas do mundo são aquelas que vivem nas zonas rurais. Portanto, quanto mais as populações locais consumirem alimentos provenientes de suas zonas rurais próximas, mais contribuirão para mitigar a fome em seus países.

Ainda é muito cedo para se falar em colapso do sistema agroalimentar internacional. Em diversas partes do mundo, contudo, já começam a surgir notícias de produtores agrícolas que jogam sua produção fora, ou que alimentam animais com frutas, porque não há para quem vendê-las. O questionamento, agora, é se a carta da globalização econômica ainda pode representar um trunfo na manga dos chefes de Estado. Por outro lado, seria muito útil que um projeto de desglobalização fosse planejado e executado com ampla cooperação internacional, visando criar soberania alimentar onde fosse possível.


Por

Thiago Lima – Prof. do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Atos Dias – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCP/UFPE). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba (PGPCI/UFPB) e bacharel em Relações Internacionais pela UFPB.

Igor Palma – Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Lucas Amorim – Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (PPGCPRI/UFPB).