Eleito com boa margem de votos (66%) e alta taxa de abstenção (25%), Emmanuel Macron será o presidente da França ao longo dos próximos cinco anos.

Como era de esperar, sua vitória foi saudada nos quatros cantos do mundo e interpretada como uma categórica valorização da União Europeia e da globalização, com a consequente perda de força do nacionalismo da extrema-direita e das resistências mais fundamentalistas de parte da esquerda.

Macron contrapôs aos eurocéticos e aos anti-europeistas um programa de defesa do diálogo entre os países membros da UE, acompanhado de reformas de corte liberal voltadas para o Estado francês. Não se mostrou nem complacente com a situação atual da União, nem distante da cultura republicana cara à esquerda, na qual os temas fortes são o cidadão, a liberdade, a solidariedade e a igualdade. No discurso que proferiu logo após a proclamação do resultado, Macron disse que atuará para “diminuir as profundas divisões na França”, que resultaram em grandes pontuações para a extrema-direita e a extrema-esquerda. Afirmou reconhecer “as divisões na nossa nação, que levaram alguns a votar por partidos extremistas. Eu os respeito. Trabalharei para recriar a conexão entre a Europa e suas populações, entre Europa e cidadãos”.

Para relativizar e enquadrar melhor sua vitória, alguns pontos são emblemáticos.

A extrema-direita francesa – a Frente Nacional de Marine Le Pen, com que disputou o segundo turno – não se revelou um cachorro morto. Mostrou força e capacidade para interpelar de um eleitorado composto por pessoas que se sentem prejudicadas pelos rumos da globalização. Obteve 1/3 dos votos (34%, aproximadamente 10,5 milhões de votos), o que não é pouca coisa. Se considerarmos as abstenções, os votos nulos e o fato de que parcela dos sufrágios obtidos por Le Pen veio de setores do velho industrialismo, onde até ontem reinava a esquerda, pode-se dimensionar bem o tamanho do problema que terá o novo presidente, numa situação em que a esquerda histórica – PS e PCF – não está no melhor da forma física e intelectual.

Muito da adesão do eleitorado à campanha de Macron derivou não tanto de uma aposta nas virtudes do candidato, mas da disposição de impedir que Le Pen chegasse à Presidência. Repetiu-se assim uma tática que já havia sido utilizada anteriormente. Tal fato não diminui necessariamente a força de Macron, mas certamente mostra um eleitorado mais defensivo que pró-ativo, o que levará o novo presidente a gastar energia para conquistar os recalcitrantes.

É bem provável que parte ponderável das abstenções tenha vindo do eleitorado de esquerda, refratário a ter de escolher entre o extremismo racista e direitista de Le Pen e o liberalismo de Macron, que propõe a realização de reformas (trabalhista, previdenciária) que são interpretadas como produtoras de demissões, perda de direitos e redução da proteção social.

A França que Macron governará é uma sociedade dividida, na qual esquerda e direita não mais se mostram como polos típicos do conflito social, que foi ressignificado. Questões associadas a nacionalismo vs. globalismo, euro vs. moeda nacional, UE vs. Estados nacionais soberanos, ganharam destaque e alteraram o modo como os próprios temas sociais e econômicos aparecem na agenda. Sobredeterminaram tais temas.

As eleições parlamentares, a serem realizadas em junho, fechará o quadro e mostrará as condições reais que terá Macron para governar a França. Pode ser que seu novo partido – agora denominado Republicanos em Marcha (REM) – consiga formar maioria consistente ou formar boas coalizões. Mas o jogo permanece em aberto e hoje é impossível cravar qualquer previsão. O que dá para prognosticar é que as tendências que impulsionaram Macron continuarão vivas, pois nascem das circunstâncias estruturais que estão a modificar a sociedade francesa e refletem o declínio das formações partidárias que organizaram a política no país desde a Segunda Guerra. A rejeição aos partidos tradicionais deu fôlego eleitoral a Macron e muito provavelmente se manifestará nas eleições parlamentares e condicionará seu próprio governo.

De algum modo, neste particular, repôs-se com clareza a questão que tem aparecido em todas as situações políticas do mundo atual: como ultrapassar a resiliência e a resistência da “velha política”, com suas práticas e seus resultados que não parecem mais obter consensos sociais? Não será certamente qualquer ideia de “nova política” que terá força para responder ao dilema, mas parece inevitável que enquanto não se resolver a equação muitos rostos novos tenderão a ocupar o espaço e a fazer promessas renovadoras aos eleitores. Trump de algum modo foi isso. Macron também. Mas entre um e outro as diferenças são abissais.

Em termos imediatos, a vitória de Macron faz com que as atenções se voltem para a UE e particularmente para as oportunidades que se abrem para o fortalecimento de uma aliança entre França e Alemanha, que, se confirmada, espalhará efeitos variados em cada um dos países e na união como um todo. Em setembro haverá eleições na Alemanha, e Merkel só terá a ganhar com uma UE revigorada e tanto quanto possível “pacificada”.

Não foi por outro motivo que, em março passado, já com a constatação de que as chances de vitória do novo presidente francês eram altas, a Hertie School of Governance, de Berlim, promoveu um debate entre Macron e Sigmar Gabriel, ministro social-democrata alemão das Relações Exteriores, para examinar o futuro da Europa. Ambos os políticos são conhecidos pelo europeísmo e pela ênfase que depositam numa União apoiada sobre uma combinação firme de reformas e novos investimentos. O diálogo foi mediado por Henrik Enderlein, vice-presidente da Hertie School.

Para dar a devida qualificação ao encontro, pediu-se a Jürgen Habermas que fizesse uma rápida introdução. Nela, o filósofo elogiou o esforço de Macron e Gabriel para “criar um espaço de manobra em nível europeu para uma política econômica flexível que possa superar o principal obstáculo que impede uma mais estreita cooperação entre os Estados membros – em particular as claras diferenças nos níveis das taxas de crescimento, de desemprego e de dívida pública, sobretudo entre as economias dos países setentrionais e meridionais que compõem uma união monetária que deve fazer respeitar uma convergência até mesmo quando os países envolvidos se distanciam –, cuja coesão política vai sendo erodida como consequência de diferenças persistentes, com efeitos crescentes, nas obrigações econômicas”.  Criticou com firmeza a imposição do atual regime de austeridade, cujos efeitos produzem assimetrias, “agressões recíprocas e uma profunda dilaceração da eurozona”. E salientou o limite das visões que insistem em propor uma “Europa de diferentes velocidades”, chamando atenção para o significado da prevalência da “solidariedade”, a dificuldade de se enfrentar o problema do terrorismo e a crise migratória.

Sua conclusão é um misto de realismo e otimismo:

“A institucionalização de uma cooperação mais estreita é o que acima de tudo torna possível exercer influência democrática sobre a proliferação espontânea das redes globais em todas as direções, já que a política é o único meio em condições de produzir medidas bem pensadas para dar forma aos fundamentos da nossa vida social. Diversamente daquilo que sugerem os slogans da Brexit, não retomaremos o controle sobre estes fundamentos se nos refugiarmos nas fortalezas nacionais. Ao contrário, a política deve manter sintonia com a globalização que ela própria pôs em movimento. Levando em consideração os limites do sistema de mercados não regulados e a crescente interdependência funcional de uma sociedade mundial sempre mais integrada, mas também as espetaculares possibilidades que criamos – por exemplo, de uma ainda não padronizada comunicação digital ou de novos procedimentos para otimizar o organismo humano –, devemos expandir os espaços para uma possível formação democrática da vontade pública, para a iniciativa política e para a regulamentação legal que ultrapasse as fronteiras nacionais.

Abaixo, segue a tradução da intervenção de Habermas.


 

Por que a cooperação necessária não se afirma?

Introdução ao colóquio entre Emmanuel Macron e Sigmar Gabriel sobre o futuro da Europa

Jürgen Habermas

 

Henrik Enderlein me concedeu o privilégio de fazer algumas observações introdutórias sobre o tema do diálogo entre nossos ilustres hóspedes Emmanuel Macron e Sigmar Gabriel, Ministro alemão das Relações Exteriores que recentemente alçou voo como uma fênix saída das cinzas.

Ambos estão associados a corajosas respostas para uma desafiadora situação. Emmanuel Macron ousou atravessar uma linha vermelha que permanecera intocável desde 1789. Evidenciou a existência de uma constelação entre os campos da direita política e da esquerda política, que parece ter terminado em uma fase em que não há outra saída que não o compromisso. Até hoje ninguém, em uma democracia, podia colocar-se acima dos partidos e será interessante observar como os alinhamentos políticos se reorganizarão após sua vitória nas eleições presidenciais francesas.

Estamos à espera de um impulso semelhante na Alemanha, ainda que sob diferentes auspícios. Neste caso, Sigmar Gabriel escolheu seu amigo Martin Schulz para desempenhar um papel não ortodoxo. Schulz é aclamado na opinião pública como um candidato à Chancelaria amplamente independente, que se supõe disposto a abrir novos horizontes ao seu partido. Ainda que existam extremas diferenças entre as situações políticas, econômicas e sociais da França e da Alemanha – com efeito, no terreno da economia, as diferenças são bem marcantes –, creio que o sentimento geral entre os cidadãos reflete humores de uma mesma irritabilidade. Há uma ampla irritação com o delirante imobilismo dos Governos que, não obstante o forte incremento da pressão dos problemas, optam pela saída mais cômoda sem desenvolver qualquer perspectiva que dê uma forma ao futuro. Fica-se com a impressão de que a ausência de vontade política entorpece, sobretudo diante daqueles problemas que somente poderiam ser resolvidos de modo conjunto em nível europeu.

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Emmanuel Macron personifica a antítese do quietismo daqueles que têm a responsabilidade de agir. Durante seus mandatos como ministros da Economia, ele e Sigmar Gabriel promoveram uma iniciativa para reforçar a cooperação nas políticas fiscais, econômicas e sociais no interior da eurozona. A iniciativa ficou sem consequências. Se bem recordo, eles propuseram instituir um Ministro de Finanças para toda a zona do euro e compartilhar um orçamento europeu controlado pelo Parlamento europeu. Com esta proposta, buscavam criar um espaço de manobra em nível europeu para uma política econômica flexível que pudesse superar o principal obstáculo que impede uma mais estreita cooperação entre os Estados membros – em particular as claras diferenças nos níveis das taxas de crescimento, de desemprego e de dívida pública, sobretudo entre as economias dos países setentrionais e meridionais que compõem uma união monetária que deve fazer respeitar uma convergência até mesmo quando os países envolvidos se distanciam – e cuja coesão política vai sendo erodida como consequência de diferenças persistentes, com efeitos crescentes, nas obrigações econômicas.  No curso da imposição do atual regime de austeridade, que estava destinado a ter um impacto espetacularmente assimétrico sobre as economias do Norte e do Sul, contrastantes experiências e opostas narrativas nas correspondentes esferas públicas provocaram agressões recíprocas e uma profunda dilaceração que atravessa eurozona.

Solidariedade não é a mesma coisa que caridade

As iniciativas para enfrentar esta perigosa evolução podem fracassar por muitas razões, inclusive as de natureza institucional. Assim, por exemplo, os governos dos Estados Membros, que retiram sua legitimação das respectivas opiniões públicas nacionais, são os menos indicados para fazer com que prevaleçam os interesses da Comunidade; todavia, como não temos um sistema partidário europeu, são os únicos atores que podem fazer alguma coisa.

O que me interessa é se uma extensão das competências europeias está destinada a fracassar por causa de um defeito de aceitação das possíveis consequências redistributivas, sempre que uma reestruturação das responsabilidades se estenda além das fronteiras nacionais. Resumidamente: os apelos à solidariedade, por exemplo na Alemanha, estão condenados ao fracasso por causa da resposta da população a um tipo de coexistência fundada num modelo de “união de transferências” que  tantos políticos gostariam de exercitar? Ou são as elites políticas que eludem o problema da crise financeira que persiste simplesmente porque não têm a coragem de enfrentar o ardente tema do futuro da Europa?

Sobre o conceito de solidariedade, gostaria de destacar que, a partir da Revolução Francesa e dos primeiros movimentos socialistas, esta expressão foi utilizada mais em um sentido político que em um sentido social. Solidariedade não é a mesma coisa que caridade. Quem age por solidariedade aceita algumas desvantagens para seus interesses, na expectativa de que o outro se comportará de modo análogo em situações semelhantes. A confiança recíproca – no nosso caso: uma confiança que atravessa as fronteiras nacionais – é com efeito uma variável relevante; mas também o é o auto-interesse no longo prazo. Não é um fato da natureza, como supõem alguns de meus colegas, que os temas da justiça redistributiva sejam exclusivamente temas nacionais e não possam ser honestamente discutidos no interior da mais ampla família dos povos europeus para além das fronteiras das nações – particularmente se estes povos já formaram uma comunidade legal e são influenciados, na sua maioria, pelos condicionamentos sistêmicos de uma união monetária compartilhada, ainda que de diferentes maneiras.

A unificação europeia permaneceu em nossos dias um projeto de elite porque as elites políticas não ousam envolver as opiniões públicas gerais em um debate qualificado sobre os cenários alternativos do futuro. As populações nacionais somente serão capazes de reconhecer e de decidir quais são seus respectivos interesses de longo prazo quando o debate sobre as dramáticas alternativas não ficar mais confinado nas revistas acadêmicas – por exemplo, as alternativas entre o desmantelamento do euro ou a volta a um sistema monetário com margens restritas de flutuação, ou então a escolha, não obstante tudo, de uma cooperação mais estreita.

De qualquer modo, outros problemas atuais que chamam mais atenção da opinião pública falam em favor da necessidade de que os europeus permaneçam juntos e ajam em comum. Lentamente, é a percepção de uma piora da situação internacional e da política global que impele os governos membros do Conselho Europeu ao limite da dor e os surpreende em sua estreiteza nacional.

Há alguns pontos evidentes sobre a crise que, no mínimo, necessitam de reflexão tendo em vista uma cooperação mais estreita:

  • A situação geopolítica europeia já foi transformada pela guerra civil síria, pela crise ucraniana e pela gradual retirada dos Estados Unidos de sua posição como força de manutenção da ordem global; mas agora que a superpotência parece se afastar da escola de pensamento prevalentemente internacionalista do passado, as coisas também se tornaram mais imprevisíveis para a Europa. E as demandas de segurança externa adquiriram uma relevância ainda maior em consequência das pressões de Trump sobre os membros da OTAN para que ajustem suas contribuições militares.
  • Além disso, no médio prazo, temos de lidar com a ameaça terrorista e a Europa deverá se desdobrar diante da questão migratória por um tempo ainda mais longo. Ambos os temas exigem claramente que os europeus cooperem de forma mais estreita.
  • Por fim, a mudança de governo nos Estados Unidos está levando a uma ruptura no Ocidente não somente no comércio global e nas políticas econômicas. As tendências nacionalistas, racistas, anti-islâmicas e antissemitas que ganharam peso político com o programa e o estilo da nova administração estadunidense caminham junto com os desenvolvimentos autoritários na Rússia, na Turquia, no Egito e em outros países, pondo um desafio inesperado à compreensão de si, política e cultural, do próprio Ocidente. Repentinamente, a Europa é projetada para trás, tendo de contar com seus próprios recursos para defender e custodiar os princípios liberais, fornecendo, ainda por cima, apoio à maioria do eleitorado americano que foi empurrada para as margens.

Estas tendências de crise não são o único fator que impele os países da UE a cooperarem mais estreitamente. Pode-se até compreender os obstáculos a uma cooperação mais estreita no mesmo momento em que existem muitas razões para acelerar um deslocamento na política europeia. Será mais difícil efetuar tal deslocamento quanto mais longamente as crises não resolvidas encorajarem os populismos de direita e a dissidência de esquerda a respeito da Europa. Sem uma atraente e convincente perspectiva sobre o formato da Europa, irá se reforçar o nacionalismo autoritário em Estados membros como a Hungria e a Polônia. E sem que se encontre uma clara orientação, a oferta de acordos comerciais bilaterais com os Estados Unidos e – nos desenvolvimentos do Brexit – com o Reino Unido levará os países europeus para posições ainda mais apartadas.

A única resposta a estas terríveis pressões que vislumbramos hoje tem a forma de tentativas às cegas de promover uma “Europa de diferentes velocidades” no campo da cooperação militar. Em minha avaliação, tal tentativa está destinada a fracassar se a Alemanha permanecer indisponível para considerar medidas simultâneas de desativação da bomba-relógio dos desequilíbrios estruturais entre as economias nacionais da eurozona.

Enquanto não se afastar este conflito, a cooperação não será possível em nenhuma outra área da política. Além disso, a fórmula vaga das “diferentes velocidades” não está dirigida aos destinatários apropriados. A vontade de cooperar será provavelmente mais evidenciada naqueles Estados membros da união monetária nos quais as populações, desde o início da crise bancária,  puderam experimentar a recíproca dependência de uns com os outros. Não penso que a Alemanha seja o único país que deve reconsiderar a sua política. Emmanuel Macron se põe fora da ala dos políticos europeus também porque reconhece com franqueza os problemas que somente podem ser enfrentados na própria França. Porém, mesmo que não tenha escolhido este papel, cabe ao governo da Alemanha unir-se à França para assumir a iniciativa de retirar o carro do pântano. A benção de ser a maior beneficiária da União Europeia também é uma maldição, já que, de um ponto de vista histórico, um possível fracasso do projeto europeu seria atribuído com boa razão à indecisão alemã.

De um ponto de vista histórico, um possível fracasso do projeto europeu seria atribuído com boa razão à indecisão alemã

Uma não-decisão também é uma decisão; e seria difícil exagerar as implicações de uma tal não-decisão. A institucionalização de uma cooperação mais estreita é o que acima de tudo torna possível exercer influência democrática sobre a proliferação espontânea das redes globais em todas as direções, já que a política é o único meio em condições de produzir medidas bem pensadas para dar forma aos fundamentos da nossa vida social. Diversamente daquilo que sugerem os slogans da Brexit, não retomaremos o controle sobre estes fundamentos se nos refugiarmos nas fortalezas nacionais. Ao contrário, a política deve manter sintonia com a globalização que ela própria pôs em movimento. Levando em consideração os limites do sistema de mercados não regulados e a crescente interdependência funcional de uma sociedade mundial sempre mais integrada, mas também as espetaculares possibilidades que criamos – por exemplo, de uma ainda não padronizada comunicação digital ou de novos procedimentos para otimizar o organismo humano –, devemos expandir os espaços para uma possível formação democrática da vontade pública, para a iniciativa política e para a regulamentação legal que ultrapasse as fronteiras nacionais.