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No último dia 24 de março completou um mês desde que o presidente russo, Vladimir Putin, autorizou uma invasão armada contra a Ucrânia (país vizinho), no que ele próprio denominou como uma “operação militar especial”. Do ponto de vista humanitário – assim como no Afeganistão, Etiópia, Somália, Sudão e Sudão do Sul, Iêmen, Síria, República Democrática do Congo, Palestina, Nigéria, Iraque, Mianmar e República Centro Africana, para citar algumas das crises humanitárias que resultaram de conflitos armados, ainda nos dias de hoje –, os impactos da guerra, no contexto da Ucrânia, têm gerado preocupações sobre as condições de vulnerabilidade e insegurança de populações civis que foram forçadas a deixarem o país ou que permaneceram.

Dado o atual contexto de incerteza e as negociações frustradas sobre um possível cessar-fogo entre os dois países, concentraremos esta análise em dois pontos: o significado, a necessidade e, ao mesmo tempo, insuficiência dos chamados “corredores humanitários”; e a perspectiva (a nosso ver, preocupante) que tende a normalizar – de forma intencional ou não – o excesso de violência como sendo, “necessariamente”, algo característico das relações entre forças hostis durante uma guerra.

A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), que é uma das várias que têm atuado no atendimento de vítimas do conflito neste último mês, apesar de considerar como necessária a criação de áreas seguras para a fuga, destaca que uma resposta efetiva, que coloque o civil no centro da preocupação, depende de medidas de contenção que busquem remediar danos, sejam eles psicológicos, sociais e/ou humanos. Neste sentido, Stephen Cornish, diretor geral do MSF, argumenta que: “Muitas vezes testemunhamos a maneira como civis foram encorajados a sair por corredores criados para possibilitar a evacuação de pessoas por tempo limitado. Em seguida, aqueles que não puderam ou não quiseram fugir foram submetidos a violência extraordinária e indiscriminada, aplicada a tudo e todos que ficaram para trás. O resultado foi que muitas pessoas foram mortas ou mutiladas, incluindo médicos e outros civis”.

“Corredores humanitários” são (idealmente) áreas terrestres desmilitarizadas fundamentais e destinadas à evacuação e entrega de ajuda humanitária a civis durante um período de conflito armado. No entanto, apesar de acordos estabelecidos entre Rússia e Ucrânia para a implementação de sete desses corredores, os dois países trocam acusações sobre o desrespeito ao cessar-fogo parcial. E as rotas de evacuação não têm apresentado o ambiente neutro, seguro, eficaz e inclusivo para que os civis deixem a Ucrânia.

Além disso, organizações internacionais humanitárias e de direitos humanos, como o próprio MSF, destacam a necessidade de se considerar as diversas particularidades das vítimas, que muitas vezes estão traumatizadas, cansadas, feridas e/ou apresentam problemas de saúde que requerem acompanhamento e atendimento especializado (como diabetes e câncer). Além disso, há grupos comumente vulneráveis, como crianças e mulheres, que tendem a contar com desafios específicos: violência de gênero, tráfico internacional de pessoas e exploração. No caso das crianças, muitas estão desacompanhadas de seus familiares (ou responsáveis), o que as tornam ainda mais vulneráveis.

O Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR) considera que até o dia 20 de março cerca de 10 milhões de pessoas deixaram suas casas na Ucrânia em busca de abrigo – o número corresponde ao total de refugiados e deslocados internos – sendo, principalmente, mulheres e crianças, sobretudo após o governo ucraniano definir que homens de 18 a 60 anos de idade devam permanecer para lutar na guerra. Conforme o ACNUR, estima-se que o número de civis mortos pelo conflito é de 847 pessoas, sendo 119 mulheres e 36 crianças e o número de feridos chega a  1.399. Baixas que devem ser maiores já que o acesso de organizações humanitárias às diversas regiões do país é restrito, o que impossibilita que sejam produzidas pesquisas e relatórios imparciais sobre o impacto da situação nos grupos civis. Além disso, ainda há pouco conhecimento sobre todos os locais atacados, assim como circula desinformação provinda de relatórios não oficiais.

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Essas baixas são resultado, principalmente, do uso de armas de fragmentação (famosas por conter em seu interior um conjunto de submunições) pelo governo russo. Alguns casos de ataques que utilizaram este tipo de ogiva foram documentados e apurados pela Human Rights Watch (HRW), outros ainda estão sob investigação. A organização destaca que este tipo de agressão é preocupante, uma vez que torna imprecisa a distinção entre combatentes de não combatentes, além disso, como tais armas podem não ser detonadas com o impacto, suas “submunições” tendem a servir como “minas terrestres”, tornando o ambiente imprevisível e perigoso para civis, principalmente crianças. Destaca-se que este é um tipo de armamento condenado pelas normas que compõem o Direito Internacional humanitário (DIH) exatamente pelo seu potencial de destruição e baixas de civis. A HRW também relata sua preocupação de que ataques sejam feitos com o uso de outras armas explosivas, por exemplo, bombas termobáricas.

Algumas das principais imagens que têm ilustrado o conflito foram trazidas pelos canais nacionais e internacionais de comunicação e representam, exatamente, a vulnerabilidade de que são reféns os civis no cenário atual. Na cidade de Mariupol, na Ucrânia, por exemplo, registrou-se ataques feitos – de forma deliberada ou inconsequente – por tropas russas contra infraestruturas civis: hospitais, áreas habitacionais, escolas, prédios comerciais e farmácias. Neste sentido, destaca-se o ponto fundamental que compõe o segundo argumento central da análise: não é porque a guerra é um ato extremo de violência que o princípio da humanidade deva ser ignorado.

Apesar de em muitos casos não serem seguidas, existem regras internacionais (como o DIH mencionado anteriormente) que se concentram na proteção da vida e da dignidade de civis, feridos, prisioneiros de guerra e garantem a segurança e acesso de atores humanitários às regiões de conflito. Mesmo assim, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha precisou retirar, momentaneamente, seus funcionários de Mariupol frente à extrema insegurança no local. A possibilidade de aumento da agressão, em termos de potencial de destruição, é também uma preocupação fundamental e crescente, se levarmos em conta que Putin mencionou, mais de uma vez desde o início do conflito, a possibilidade do uso de armas nucleares caso a Rússia sinta-se “existencialmente ameaçada”. Mas, novamente, em termos teóricos (ainda não suficientemente aplicados na prática, no entanto), a guerra também tem limites e, neste sentido, muito além do interesse estratégico de um país específico, é preciso fazer prevalecer a consciência moral.


*Revisão: Ítalo Beltrão Sposito

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP).