Crédito da ilustração: CAB@22/Valor Econômico

Além das reticências da Alemanha e da oposição interna a sua política no Leste europeu, o governo Biden enfrenta dificuldades para conseguir apoio dos membros da articulação Quad, seus aliados mais importantes no Indo-Pacífico. Japão e Austrália defendem a posição da Otan de não acatar as reivindicações russas, mas evitam movimentos mais assertivos, e a Índia não quer tomar partido numa disputa entre seus dois principais parceiros geopolíticos, os EUA e a Rússia.

A imprensa japonesa reportou que a diplomacia ucraniana tentou obter apoio de Tóquio, defendendo que a fraqueza da comunidade internacional diante de Moscou aumentaria as tensões em torno de Taiwan e de ilhas disputadas pelo Japão. Contudo, embora se posicione a favor da posição dos EUA, Tóquio hesita diante de sanções robustas contra Moscou. Há o receio de prejudicar negociações diplomáticas com a Rússia em disputas territoriais, em especial na questão sensível das ilhas Curilas/Sacalina, localizadas entre os dois países e sob administração de Moscou desde 1945.

As autoridades da Austrália apoiam as ações dos EUA e se dizem dispostas a ampliar sanções econômicas sobre a Rússia impostas em 2014-2015, no conflito pela Crimeia. Houve oferta de apoio em questões pontuais, como no caso de cyber-ataques e promessa de envio de gás natural liquefeito para a Europa, mas se mostraram relutantes quanto a apoio militar. O ministro da Defesa, Petter Dutton, defendeu que o país precisa focar prioritariamente no Indo-Pacífico, nas disputas com a China e em problemas na Oceania. Além do apoio à população de Tonga, foram citados os protestos nas Ilhas Salomão, no final de 2021, desencadeados por disputas locais envolvendo o reconhecimento diplomático de Pequim em detrimento das relações com Taiwan.

A posição de Canberra gerou acusações de Moscou de que a Austrália estaria hipnotizada pela propaganda americana, mas a decisão de retirar a comunidade diplomática australiana de Kiev provocou protestos da Ucrânia pela sinalização de iminência de um conflito armado.

A estratégia da Índia é mais complexa. Em 29/01, o porta-voz da diplomacia de Nova Delhi, Arindam Bagchi, deixou claro que o país procura manter neutralidade no conflito entre seus dois importantes parceiros e defende a busca de soluções duradouras para as disputas geopolíticas no Leste Europeu. O posicionamento é semelhante ao adotado na crise da Crimeia, em 2014, ainda no governo de Manmohan Singh, quando a Índia se absteve em votações na ONU, buscou diálogo com Rússia e EUA e defendeu solução diplomática que valorizasse a soberania nacional, mas também que os interesses de Moscou fossem legitimamente respeitados.

Os EUA pressionam por uma posição enérgica contra a Rússia na Ucrânia, mas a Índia não quer se indispor com um parceiro estratégico na garantia de suprimento energético e na venda de armamentos, como destacamos no Valor (20/12/2021). Moscou fornece 60% das importações de materiais bélicos da Índia, o maior comprador de armas russas, com 23% das vendas totais.

Washington quer a interrupção do comércio de armas com a Rússia e ameaça com sanções adotadas em casos semelhantes, como bloqueio de operações financeiras, mas reluta em utilizar este mecanismo contra seu parceiro no Indo-Pacífico. Um motivo para tanto é que desde a Guerra Fria Moscou e Nova Déli utilizam rublos e rúpias em acordos de tecnologia militar e espacial, para evitar bloqueios nas transações em dólares. Em 2018 os dois países reafirmaram a previsão de swaps e pagamentos nas próprias moedas, para contornar bloqueios em sistemas de pagamentos ocidentais, inclusive as ameaças de restrições no sistema Swift.

Leia mais:  Biden redefine o jogo contra a China no Quad

Estas ameaças surgiram outra vez nos leques de possíveis sanções a serem impostas à Rússia no caso de invasão da Ucrânia. Iniciativa desta natureza poderiam conduzir à formação de sistemas de pagamentos paralelos e à divisão do sistema financeiro internacional em áreas estanques, o que relembra os piores momentos dos anos 1930. Não parece ser algo do interesse da China, que projeta a internacionalização do uso do renminbi por dentro do sistema atual. E também não parece interessar aos grandes bancos americanos, pelo risco de perda de negócios e da vantagem exorbitante pelo uso generalizado do dólar.

Por outro lado, a Índia quer evitar conflitos com os EUA. Nova Déli não pode prescindir do apoio de Washington no combate ao terrorismo e na proteção contra o risco que identifica no expansionismo chinês, mas também teme a possível aproximação da Rússia com a China.

Pequim já acenou favoravelmente a Moscou na questão ucraniana, ao declarar aos americanos que as requisições de segurança russa devem ser levadas a sério. Um maior alinhamento entre as duas potências poderia flexibilizar o apoio russo às demandas indianas diante de posições chineses sobre a Caxemira e de disputas geopolíticas no sul asiático, reduzindo suas opções geopolíticas de contrabalanceamento aos parceiros ocidentais.

A escalada de tensões ente EUA e Rússia na Ucrânia tem evidentes desdobramentos nas disputas geopolíticas do Indo-Pacífico e suas repercussões questionam as estratégias internacionais de cada uma das potências asiáticas. Os EUA encontram dificuldades para mobilizar seus parceiros numa ação contra outra grande potência fora do contexto geográfico da própria região. O governo Biden tem promovido o Quad como uma iniciativa assentada em quatro países democráticos com mentalidades semelhantes, mas afloram importantes divergências entre seus membros diante de disputas geopolíticas da gravidade do que ocorre em torno da Ucrânia.

Desdobramentos que acentuem as rivalidades entre EUA, Rússia e China, as três grandes potências que envolvem o Indo-Pacífico, geram grandes reticências sobre questões de segurança regionais, além das evidentes implicações em termos de comércio e de investimento. A multiplicidade e a diversidade de interesses envolvidos colocam dificuldades diplomáticas consideráveis para as iniciativas do governo Biden.


*Revisão: Stella Bonifácio da Silva Azeredo

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP).

*** Este artigo foi publicado anteriormente pelo jornal Valor Econômico