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Em pronunciamento no dia 14 de abril de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou a retirada final das tropas militares norte-americanas do Afeganistão após duas décadas de intervenção no país. Quatro meses depois, a imprensa mundial noticia a ascensão veloz da insurgência dos líderes fundamentalistas islâmicos do Talibã, levando à fuga do presidente afegão, Ashraf Ghani, figura política apoiada pelos norte-americanos. O dramático cenário deixado para trás pelos EUA aponta para dois pontos fundamentais: a fraqueza das estruturas políticas de Cabul e a incapacidade de resposta por parte das forças afegãs, treinadas pelo Exército norte-americano, contra o grupo extremista.

O fato é que os Estados Unidos perderam a guerra iniciada por George W. Bush, em 2001, e esteve seguida de falhas irremediáveis da ação internacional. Embora o democrata Biden não reconheça a “derrota” e, em seu primeiro discurso pós-retirada das tropas norte-americanas, tenha preferido se eximir diante da incapacidade do governo afegão em manter o controle do país, decisões indefensáveis e o fracasso logístico e estratégico da retirada final das tropas militares devem custar a Biden o ônus de duas décadas de conflito.

Em retrospecto, o Afeganistão passou por mudanças importantes nos últimos 20 anos. O fracasso dos governos anteriores (afegãos e norte-americano) em conseguir conter a crise humanitária, que não é recente, evidencia, no entanto, uma estratégia de reconstrução nacional também malsucedida. É preciso ressaltar que esse modelo previa ser posto em prática conforme as perspectivas ocidentais de liberalismo e democracia, entendidas como essenciais para mitigar problemas de segurança nacional no Sul global e consolidar a paz duradoura.

Em meio à necessidade de justificar a retirada final das tropas do país, Biden destaca que o objetivo inicial e principal da ofensiva militar no Afeganistão foi capturar os responsáveis pelos ataques terroristas cometidos contra os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, que mataram em torno de 3.000 pessoas. Objetivo alcançado com a execução de Osama bin Laden, em 2011, no governo de seu correligionário Barack Obama, de quem esteve vice-presidente.

O Talibã ganha destaque em 2001 por ser acusado de abrigar e apoiar membros da Al-Qaeda – sob a liderança de bin Laden –, organização fundamentalista islâmica global que assume os ataques às Torres Gêmeas. Mesmo que rapidamente deposto no mesmo ano, como resultado da campanha militar deflagrada pelo republicano W. Bush – com a chamada Guerra ao Terror, que parte da estratégia de combate ao terrorismo em âmbito global –, no presente, os talibãs confirmaram o que já se temia, ou seja, sua irremediável capacidade de retomada da liderança do Afeganistão.

Após 20 anos e 4 administrações presidenciais (George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden), estima-se que os custos da guerra já chegaram aos trilhões de dólares, além da vida de 2.448 soldados norte-americanos, incluindo a participação dos Estados Unidos nas duas principais missões no Afeganistão, operação Liberdade Duradoura e Sentinela. Iniciada em 2001, a Operação Liberdade Duradoura se preocupou em destruir a rede terrorista Al-Qaeda e desmantelar o governo do Talibã que tinha controle do Afeganistão desde 1996. Já a Operação Sentinela da Liberdade (iniciada em 2015) previa, além das estratégias de contraterrorismo – que buscavam também impedir que o Afeganistão servisse de base para futuros planejamentos e execuções de ataques terroristas –, a reconstrução e a capacitação nacional do país.

Nota-se, porém, que nos moldes da governança ocidental, a estratégia de pacificação e de reconstrução nacional do país, conforme a promoção da estratégia política de conquistar “corações e mentes” da população afegã, não funcionou. Pelo contrário, o cenário atual revela que a circunstância é extremamente frágil, precária e desesperadora. Vide as cenas de milhares de afegãos tentando deixar o país pelo aeroporto de Cabul.

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Embora Biden tenha destacado sua preocupação em continuar com o fornecimento de ajuda humanitária ao Afeganistão, o que se mostra insuficiente, mas necessário, seu governo não será dissociado do fracasso da ação norte-americana no país, ainda que  a decisão de retirada final das tropas militares tenha se iniciado ainda no governo do republicano Donald Trump. E os resultados atuais da crise no país sejam também reflexo de um conjunto amplo de deliberações mal planejadas por seus três antecessores.

Biden apostou nas estruturas políticas nacionais afegãs e não esperava que o Talibã fosse capaz de conquistar, quase sem resistência, as principais cidades do país tão rapidamente, inclusive Cabul, resultando no colapso do governo afegão de Ashraf Ghani. Retirar as forças militares norte-americanas do Afeganistão era inevitável, mas o presidente Biden falhou na falta de preparo de um plano sólido e será historicamente lembrado por essa irresponsabilidade.

A prova do fracasso da estratégia ocidental de reconstrução do Afeganistão é ilustrada pela realidade dos números, que evidenciam que o país nunca deixou de ser um dos locais mais precários e perigosos do mundo, principalmente para civis afetados pela crescente disseminação da violência de atores armados (estatais e não estatais). Conforme a Anistia Internacional, em agosto de 2020, o país já contava com mais de quatro milhões de deslocados internos, acampamentos superlotados, desemprego e difícil acesso a água potável.

Atualmente, cerca de 18,4 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária. Cenário que piora com a contínua escalada do novo coronavírus e tende a ganhar proporções ainda mais preocupantes com a ascensão, novamente, do Talibã. A pandemia da covid-19, que apresenta dificuldades para o mundo inteiro, resultou no colapso do sistema de saúde nacional e na escassez de testes impede que se obtenha dados precisos sobre a gravidade do quadro no país. Em relação à campanha de vacinação, ainda não está clara a posição a ser adotada pelo Talibã. O grupo já se pronunciou tanto a favor como contra a aplicação dos imunizantes.

Em meio à paz inviável, não se sabe ainda como as autoridades internacionais vão reagir à situação a longo prazo. A preocupação no momento está em retirar representações aliadas de outros países do Afeganistão, assim como promover uma campanha mundial de recepção e de proteção segura de afegãos que fogem da região. Além disso, dentre as operações de emergência, deve-se incluir, ainda, o monitoramento transparente de investigações de crimes de guerra e de outros abusos que se esperam com o Talibã no poder, o que inclui a proteção dos direitos de mulheres e meninas no Afeganistão. A discriminação de gênero já esteve, inclusive, no centro da atenção internacional como justificativa para a importância da ação ocidental no país.

Não havia nenhum cenário plausível de que os Estados Unidos pudessem se retirar do Afeganistão sem que o país fosse ameaçado pela queda de Cabul – o que reforça o argumento de que a crise atual deveria ter sido prevista e evitada. Com a saída completa das tropas norte-americanas (e aliadas), Biden deixa claro que o Afeganistão não é mais prioridade para os Estados Unidos e que a continuidade da guerra exigia novas justificativas. Todavia, para além da derrocada dos EUA, a retirada de suas forças militares e a ascensão relâmpago do Talibã ilustram o fiasco da tentativa de construção de um Estado nacional afegão e destacam a irresponsabilidade moral internacional para com os moradores nacionais, que não contam com a possibilidade de deixar o país em aviões e helicópteros.


*Revisão: Tatiana Teixeira e Marcela Franzoni

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)