Você pode assistir Chernobyl como um alerta contra os perigos de uma catástrofe nuclear. Ficará sabendo que em abril de 1986 o reator número quatro da usina de Chernobyl, na Ucrânia, explodiu e dispersou uma nuvem radioativa que chegou à Europa. A URSS tentou ocultar o incidente durante várias semanas, até por fim evacuar a zona, que até hoje, 30 anos depois, ainda é inabitável.

Você ficará então convencido de que o mundo, após Hiroshima e a gradual disseminação das usinas movidas a urânio e fissão, passou a flutuar sobre um vulcão que, de um momento para outro, por falha técnica ou erro humano, pode exterminar a vida na Terra.  Será convidado a refletir. Shit happens, como sabemos, e não há, a rigor, como garantir de modo peremptório que tudo seguirá o curso previsto pelos manuais e reiterado pelos responsáveis. A energia nuclear tornou-se um problema para a humanidade, ainda que contenha também a solução para inúmeros problemas energéticos.

Você poderá então recordar Ulrich Beck, o sociólogo alemão que estabeleceu a teoria da sociedade de risco: a modernidade reflexiva – a modernidade tardia, a hipermodernidade – saiu dos trilhos e passou a produzir efeitos deletérios sobre si mesma, como um carro fora de controle que avança espalhando desgraças por todos os cantos. Aquilo que é feito para resolver problemas termina por criar novos e inesperados problemas, num circuito assustador.

A primeira edição de Sociedade de risco foi publicada na Alemanha em 1986, às vésperas do acidente de Chernobyl: inesperadamente, uma usina nuclear construída para fins pacíficos e em regime de segurança máxima foi pelos ares naquela cidade ucraniana, espalhando caos e pavor pela Europa e suspendendo a respiração do planeta. Lembre-se de tantos eventos recentes que parecem integrar um circuito diabólico: terremotos devastadores, águas que ameaçam engolir cidades inteiras, o crescimento da violência banal, do terrorismo e dos crimes hediondos, o retorno de doenças que se acreditava controladas, as crises sucessivas, o desemprego estrutural, a desorientação dos jovens em relação ao futuro e o desequilíbrio ecológico. A própria sensação de mal-estar que impregna a vida cotidiana em escala mundial é um indício de que o risco passou a ser um inevitável companheiro de viagem.

Esse cortejo de horrores e dificuldades não pode ser interpretado como simples expressão de acidentes normais, de falhas sistêmicas passíveis de prevenção ou da “vingança” de uma natureza cansada de superexploração. Nem muito menos como resultados passivos da globalização neoliberal. Como explica Beck, passamos a viver em meio aos efeitos colaterais de uma civilização – a modernidade capitalista industrial – que regurgitou e trabalha contra si própria, escapando dos controles empregados para ordená-la.

Chernobyl nos ajuda a seguir Beck e a compreender que precisamos lidar com espaços marcados por transições. Não vivemos plenamente – em todas e em cada sociedade humana – numa civilização fundamentada no risco, mas também já não estamos mais ancorados na sociedade industrial vinda do século XIX. Seguimos rumo a outra modernidade: tardia, globalizada, radicalizada, reflexiva, que nos conecta numa mesma experiência mundial e, com isso, distribui e socializa todos os ônus e oportunidades. Nessa nova modernidade, “emerge um novo tipo de destino adscrito em função do perigo, do qual nenhum esforço permite escapar”. Os sistemas concebidos para proteger e racionalizar convertem-se em forças destrutivas. Ameaças vêm a reboque do consumo cotidiano, infiltradas na água, em alimentos, nas roupas, nos objetos domésticos. Tudo é processado reflexivamente, quer dizer, mediante discussão, elaboração, troca de informações, que voltam a turbinar o circuito. Trata-se de “uma civilização que ameaça a si mesma”, na qual a incessante produção de riqueza é acompanhada por uma igualmente incessante “produção social de riscos”.

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O livro de Beck,  Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidadefoi publicado no Brasil em 2010.

Quando a usina foi pelos ares em 1986, não se imaginava o que viria a seguir. Até hoje não há números oficiais confiáveis, que deem conta dos mortos, dos estragos generalizados, das vidas desperdiçadas, das ameaças que podem se prolongar por décadas. Devem passar de muitos milhares as vidas que foram eliminadas ou gravemente prejudicadas. A Rússia soviética, vivendo os estertores do regime que Gorbachev tentava reformar, mergulhou numa batalha interna para ocultar as causas da tragédia ou para fornecer uma explicação para ele que preservasse os segredos e orgulho inscritos no Estado socialista. Essa situação permanece.

Vá ao livro de Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de 2015,  Vozes De Tchernobil: A Historia Oral Do Desastre Nuclear, e perceba melhor a dimensão humana do desastre. Svetlana ouve os envolvidos, as pessoas comuns, seu texto é excepcional como reportagem e literatura.

Mas você também pode reagir à série da HBO como fazem setores do governo russo, que acusam os realizadores de distorcer fatos e contar uma história fantasiosa, que não corresponde à verdade. Você verá, de fato, que os cinco capítulos da série realçam o atraso tecnológico russo, o autoritarismo de seus chefes e subchefes, a burocracia absurda que impedia a tomada de decisões racionais, a conduta covarde de tantos cientistas que fecharam os olhos para as causas do acidente, o papel opressor da KGB, a subserviência dos dirigentes do Partido Comunista, o peso asfixiante da guerra fria e da competição entre URSS e EUA. Ficará se perguntando se tudo aquilo existiu mesmo ou se foi obra de uma realização dramática marcada por um roteiro caprichado e ótimos atores.

Haverá por certo velhos comunistas que dirão que a série não passa de propaganda antissoviética e antissocialista, dedicada tão-somente a mostrar o lado negativo da experiência bolchevique. Isso, porém, hoje em dia, não passará de um lamento perdido no espaço.

O sucesso da minissérie gerou polêmica na Rússia. Há notícias de que a televisão estatal fará sua própria série para apresentar a verdadeira versão dos fatos. Segundo declarações dos dirigentes da TV, a série explorará a teoria de que agentes americanos da CIA se infiltraram na central nuclear com o objetivo de arruinar a reputação do país como potência nuclear.

Você deve assistir a série, caso não o tenha feito ainda. Ela é muito boa, desde os detalhes da reconstrução histórica (que fazem com que o espectador se sinta na URSS da época) até a preocupação pedagógica em explicar como se deu o desastre. Numa trama impregnada de cinismo, mentiras e irresponsabilidade, é comovente ver o heroísmo de tantos jovens e trabalhadores russos que se entregaram de corpo e alma, literalmente, sem treinamento ou equipamento adequado, à tentativa de minimizar o efeito catastrófico do acidente.

Não há pieguice na narrativa, que é seca e triste. Também nisso o resultado é ótimo. Você chegará ao quinto episódio com a sensação de que o horror nuclear é real e só poderá ser enfrentado com muito esforço e cooperação internacional.

Não é pouca coisa.