Entre 31 de dezembro de 2019 e 3 de janeiro de 2020, 44 casos de pneumonia de causa até então desconhecida foram relatados à Organização Mundial da Saúde (OMS) pelas autoridades nacionais da China. Em 12 de janeiro de 2020, a Comissão Nacional de Saúde da China apontou que o surto estaria associado a exposições em um mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan, na província de Hubei. Um novo tipo de coronavírus foi, então, revelado e denominado 2019 Novel Coronavirus (2019-nCoV). Os coronavírus são uma família de vírus que incluem desde um resfriado comum até problemas respiratórios graves que podem levar à morte. O 2019-nCoV é um betacoronavírus, assim como MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave).

O primeiro caso do 2019-nCoV fora da China foi reportado em 13 de janeiro na Tailândia, seguido pelo Japão, no dia 15, e pela Coreia do Sul, no dia 20 deste mesmo mês. Em 21 de janeiro, a OMS lançou o primeiro relatório, o Novel Coronavírus Situation Report, alertando que havia 282 casos confirmados, sendo quatro fora da China, nos países citados acima. Nesta data, seis mortes haviam ocorrido.

O diretor-geral da OMS convocou o Comitê de Emergência, sob o Regulamento Sanitário Internacional, e foi decidido não declarar o surto uma Emergência de Saúde Pública de Importância internacional (ESPII). Uma ESPII é definida pela OMS como um evento extraordinário que “constitui um risco à saúde pública de outros estados através da disseminação internacional da doença e que, potencialmente, requer uma resposta internacional coordenada”. Apenas cinco eventos foram considerados ESPII desde o estabelecimento do Regulamento Sanitário Internacional em 2005: a influenza H1N1, em 2009; o ressurgimento do poliovírus, em 2014; a epidemia de Ebola na África Ocidental, em 2014/2015; o Zika vírus, em 2015/2016; e um segundo surto de Ebola, em 2018/2019, em Kivu.

Reações do governo chinês e da OMS

Diante da confirmação de transmissão de pessoa para pessoa, a resposta apropriada à epidemia seria interromper essa transmissão na China, impedir a exportação de casos para outros países e impedir a transmissão adicional de casos exportados. Para tanto, recomendou-se uma combinação de medidas de saúde pública que incluíam identificação precoce, diagnóstico e tratamento dos casos; identificação e acompanhamento dos infectados; prevenção e controle de infecções em estabelecimentos de saúde; implementação de medidas de saúde para viajantes; conscientização na população; e comunicação de risco.

De acordo com a OMS, a comunicação de riscos é parte integrante de qualquer resposta a emergências e consiste na troca de informação, aconselhamento e pareceres em tempo real entre peritos, líderes comunitários, ou oficiais, e as pessoas que se encontram em risco. Durante as epidemias, pandemias, crises humanitárias e catástrofes naturais, uma comunicação eficaz dos riscos permite às pessoas que se encontram em maior perigo compreenderem e adotarem comportamentos de proteção. Permite às autoridades e aos peritos auscultarem as populações e responderem às suas preocupações e necessidades, para que seu aconselhamento seja relevante, confiável e aceitável.

O diretor-geral da OMS, dr. Tedros Ghebreyesus, vinha sendo bastante pressionado para declarar o surto de 2019-nCoV uma ESPII. A pressão não vinha de especialistas de saúde pública, que estavam bastante divididos sobre a real necessidade da declaração, mas, sobretudo, de populações apavoradas com o alastramento da doença e, também, de uma OMS que busca se reinventar e se autoafirmar diante de uma crise de legitimidade impulsionada por uma crise financeira que já dura mais de uma década.

Quando a OMS se abstém de agir, cria-se um vácuo de autoridade na arena internacional de saúde, que é, precisamente, o papel que a Organização deve desempenhar. Este vácuo pode levar outros atores, como governos e setores privados, a tomarem suas próprias decisões, de forma unilateral. Este é o pior cenário, tendo em vista que temas relacionados à saúde transcenderam o sentido e a autonomia nacional sobre a responsabilidade sanitária.

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Assim, em meio a pressões e à disseminação de fake news, em 30 de janeiro, o Comitê de Emergência se reuniu pela segunda vez, e a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional foi declarada. Na data, havia 7.818 casos: 7.736, na China; 82, fora da China, espalhados por 18 países; além de 170 óbitos. É importante destacar que a SARS matou 774 das 8.098 pessoas infectadas em 2002, e a MERS levou à morte 858 dos 2.494 pacientes identificados. Enquanto a SARS teve uma taxa de mortalidade de aproximadamente 9,5%, a taxa de mortalidade do 2019-nCoV na data era de cerca de 2,2%.

Especialistas da London School of Hygiene and Tropical Medicine argumentam que o 2019-nCoV seria um surto intermediário, entre a influenza H1N1 e a SARS. Pois, ao mesmo tempo em que tem-se espalhado mais rapidamente, como a influenza, sua letalidade é menor do que a da SARS. Por sua extensão, a influenza H1N1 foi considerada uma pandemia, com 60,8 milhões de casos registrados em 214 países entre abril de 2009 e abril de 2010.

Narrativa do medo

Depois da avalanche de fake news, manchetes sensacionalistas e compartilhamento de vídeos kafkianos nas redes sociais, começaram a surgir contramovimentos para combater os estereótipos racistas. Na França, por exemplo, a hashtag #JeNeSuisPasUnVirus, que significa “eu não sou um vírus”, está sendo amplamente usada. Com o advento das mídias sociais, a disseminação de informações erradas e de estereótipos raciais e a manipulação do medo podem ser exacerbadas durante períodos de emergência pública.

A OMS tem reiterado a importância de se difundir “fatos, não medo”. Devido à alta demanda por informações oportunas e confiáveis sobre o 2019-nCoV, as equipes de comunicação de risco e de mídias sociais da Organização têm trabalhado para rastrear e responder a mitos e rumores, que podem potencialmente prejudicar a saúde pública, com medidas de prevenção, ou cura falsas.

Existe uma linha muito tênue entre medo, prevenção, racismo e xenofobia. O pânico performativo sobre o coronavírus não é somente inútil, como cria um ambiente de medo e de desinformação mais perigoso do que a própria doença. Enquanto o povo chinês – e qualquer um que possa ser confundido com eles – está sendo tratado como potencial portador de doenças e sendo cada vez mais segregado, as únicas precauções necessárias são aquelas fornecidas pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças.

Priscilla Wald, professora na Duke University, é autora do livro Contagious: Cultures, Carriers, and the Outbreak Narrative, no qual ela conceitualiza a narrativa do surto, que seria: 1. identificação de uma infecção emergente; 2. discussão das redes globais de contato e contágio; e 3. trabalho epidemiológico de contenção. A narrativa do surto é sensacionalizada pela cultura popular de tal forma, que pode levar a um exagero da ameaça de uma doença infecciosa, incentivando a estigmatização de identidades e de comportamentos minoritários. Também tem o potencial de impulsionar comportamentos racistas já existentes, mas oferecendo a ilusão reconfortante de que se está, na verdade, ajudando a combater a propagação da doença.

A epidemia do HIV/aids traduz a incapacidade da sociedade de lidar com doenças emergentes infecciosas, impondo consequências danosas nas relações sociais. O pânico diante da rápida disseminação do HIV na década de 1980 contribuiu para a criminalização e para a demonização de homossexuais. Até os dias de hoje, a aids é uma doença estigmatizada.

No romance A peste, escrito em 1947, Albert Camus já havia alertado que “houve tantas pestes quanto guerras na história da humanidade; entretanto, as guerras bem como as pestes sempre pegam a população de surpresa”. A surpresa não pode ser, porém, justificativa para xenofobia e restrições de direitos humanos como se vê, recorrentemente, a cada nova epidemia.