O novo governo brasileiro definirá uma política externa sintonizada com seu programa de atuação. O melhor é que se apoie no que serviu de base para a construção do Estado nacional. Se agir só para contrastar o que imputa a seus adversários, desorganizará a diplomacia e não defenderá o país


Bastaram poucos dias após o fechamento das urnas que o levaram à Presidência da República para o período 2019-2022 para que o eleito Jair Bolsonaro pisasse no terreno minado da política prática, da política de Estado em particular.

Em poucas e contundentes declarações, o novo presidente investiu pesado contra as tradições da política externa brasileira, afetando ao mesmo tempo o bom senso que sempre deve prevalecer na diplomacia e nas relações do país com o mundo. No fundamental, como se sabe, todo Estado atua no plano internacional tendo em vista, antes de qualquer outra consideração, seus próprios interesses nacionais. A política externa não é um âmbito disponível para que se façam movimentos casuísticos ou que sigam um padrão eminentemente ideológico ou político-partidário. Há muito mais coisas em jogo, e elas não foram, até agora, devidamente consideradas pelas falas do presidente eleito.

Foram três passos.

No primeiro, Bolsonaro sugeriu um alinhamento automático ao governo norte-americano de Donald Trump em determinadas questões, recuperando uma postura há muito tempo abandonada pelo Itamaraty. A ideia de que “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil” – famosa boutade do então embaixador brasileiro Juraci Magalhães lançada no início do governo Castelo Branco, em 1965 – incendiou muitos ânimos, mas nunca, a rigor, chegou a ser levada à prática.  Nem mesmo durante o período militar, quando ganharam corpo as diretrizes da “diplomacia do interesse nacional” (Gibson Barbosa) e do “pragmatismo responsável” (Azeredo da Silveira), que, em boa medida, retomaram a política externa independente de San Tiago Dantas.  Tais diretrizes foram ora mais enfatizadas, ora menos  (como na guinada “terceiro-mundista” da política externa dos anos petistas), mas jamais chegaram a ser deslocadas para os bastidores. Mantiveram-se como marcas identitárias do Itamaraty.

No segundo passo, o novo presidente declarou ver com bons olhos a transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, em Israel, entrando em atrito aberto com os países árabes e rompendo com a tradicional cláusula da neutralidade brasileira no Oriente Médio. Por extensão, comprometeu as relações comerciais, políticas e culturais com o mundo árabe e com os povos que mantêm laços fortes na vida nacional. A reação foi imediata: o governo do Egito adiou, sem previsão de nova data, uma visita oficial que o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, faria ao país entre os dias 8 e 11 de novembro de 2018, quando também ocorreria um encontro entre representantes do setor privado dos dois países.

A reação egípcia sugere que há um claro risco de retaliação dos países árabes ao Brasil, que teria evidente impacto negativo nas exportações brasileiras, especialmente de carnes e açúcar. O Brasil, afinal, é o maior exportador de carne Halal do mundo, isto é, com os animais abatidos sem sofrimento, seguindo os preceitos da religião muçulmana. Nos frigoríficos certificados por religiosos muçulmanos, as linhas de abate, por exemplo, estão voltadas para a Meca.

Como se não bastasse, Bolsonaro achou por bem cutucar a China, maior parceiro comercial do país. Reiterou – ou não desdisse – um slogan repetido durante a campanha eleitoral, agora levemente atenuado, segundo o qual “todos os países podem comprar no Brasil, mas não podem comprar o Brasil”. Depois de reunião com o embaixador chinês no país, Li Jinzhang, no último dia 5 de novembro, o novo presidente procurou aliviar a posição inicial, afirmando que “está na cara que a China quer aumentar negócios com Brasil. Não teremos nenhum problema com a China, pelo contrário, os negócios podem ser até ampliados”.

O estrago, porém, estava feito, e Bolsonaro teve de tomar conhecimento, no final de outubro, de um editorial do jornal oficioso China Daily, que fez um duro alerta ao futuro governo brasileiro e enfatizou que, se a partir de 2019 o Brasil optar por seguir a linha de Donald Trump e romper acordos com Pequim, quem sofrerá será a economia brasileira. Foi uma manifestação clara da irritação que Bolsonaro criou em Pequim.

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Somadas a outras manifestações mais tópicas – a extradição de Cesare Battisti, as relações com Cuba e Venezuela, o Acordo de Paris, a agressividade de Paulo Guedes contra o Mercosul –, as três linhas polêmicas abertas pelo novo presidente foram agravadas, em outra dimensão, pelo vaivém da ideia de fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. A essa altura, a ideia parece ter sido abandonada, graças à percepção do inconveniente que a medida traria para os interesses do país e do agronegócio, uma das bases de apoio social de Bolsonaro.

Risco e conflito

Seja como for, os primeiros passos do presidente eleito na área da política externa não foram auspiciosos. Deixaram patente que a guinada que se pretende dar na política externa – algo que o novo governo tem legitimidade para fazer – não está suficientemente clara e carrega consigo alta dose de risco e conflito.

Antes de tudo porque colide frontalmente com os marcos e os princípios da política externa brasileira, forjados ao longo de um tempo em que se agiganta a figura de Rio Branco como edificador das bases de um empreendimento de Estado, mas que não se resume a ela, dado que o país soube se atualizar à complexidade crescente do mundo e foi ajustando suas orientações diplomáticas.  Consolidou-se assim, como demonstra o magistral livro de Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Versal Editores, 2017), um conjunto concatenado de valores e diretrizes que definiram o lugar  e o modo de atuação do Brasil no mundo. Paz e Direito, democracia e respeito aos direitos humanos, busca permanente pela resolução pacífica dos conflitos entre povos e Estados passaram a conviver com a não ingerência, o respeito à autodeterminação dos povos, o pragmatismo e a recusa a alinhamentos automáticos, a prevalência do poder brando (soft power) sobre o poder duro e o uso da força, a que se agregaram aquilo que Ricupero chama de “diplomacia do conhecimento” e de opção pelo “poder inteligente”, com o Itamaraty organizado como escola de quadros de alta qualificação intelectual.

Não foram princípios vazios de conteúdo ideológico, posto ser isso impossível.  A “ideologia” da política externa brasileira, porém, não se condensou em polos doutrinários rígidos, nem se associou a filosofias aprisionadas a campos políticos ou partidários específicos. Traduziu-se precisamente na adoção de um estilo de atuação dedicado a consagrar a paz, a democracia, o Direito, a moderação, a transação, a cultura, a inteligência, o multilateralismo.

Por isso, para fundamentar uma política externa que tenha a sua cara e ao mesmo tempo honre os interesses brasileiros, o novo governo deveria recuperar precisamente aquilo que serviu de base para a construção do Estado nacional.

Sem fazer isso, e agindo tão somente para contrastar o que imputa a seus adversários, o governo Bolsonaro poderá desorganizar a diplomacia e deixar de defender o país, explicitando uma contradição que ameaça se entranhar no discurso presidencial: a de que, para romper com a política externa anterior, tida como unilateral e movida por afinidades “ideológicas”, irá adotar uma orientação abertamente ideológica.

Como bem lembrou o jornalista Tibério Canuto, a presidência Bolsonaro arrisca-se assim a por “a ideologia acima de tudo”.

A questão central, cuja discussão ainda não se apresentou, diz respeito ao lugar que o Itamaraty terá no novo governo. Sua tarefa sem dúvida crescerá, seja como provedor dos quadros diplomáticos, seja como espaço de moderação e de gestão dos riscos inerentes à atuação governamental, sobretudo se ela reiterar de fato a disposição de dar um cavalo de pau na política externa. Disso dependerá a sorte da pretendida nova política externa.