Merkel e Putin em encontro ocorrido em Berlin em outubro do ano passado. Crédito: Odd Andersen/AFP Photo

O tabuleiro geopolítico europeu continua a ser desenhado às vésperas da saída de Angela Merkel da Chancelaria alemã, após 16 anos no cargo. Sua visita a Moscou e a Kiev, a partir de amanhã, demonstra que a Alemanha – ao contrário do que muitos acreditam – continua a pensar e a agir realisticamente. Merkel se orienta pelo cálculo racional de meios e fins travestido de uma postura não agressiva e de acomodação, mas nunca de subserviência. Voltada para a defesa dos interesses energéticos europeus e, principalmente, alemães, a chanceler quer garantir a continuidade do diálogo teuto-russo mesmo após sua saída, ainda que essa relação tenha sido marcada por momentos de tensão e de cooperação. Já a Rússia pretende conquistar novas posições na Europa Central e Oriental, aumentando sua zona de influência e ingerência na região.

A Alemanha lida com a difícil tarefa de acomodar os interesses divergentes de seus tradicionais parceiros políticos (Ucrânia, França e Estados Unidos) com a essencial necessidade de suprir – ainda que a curto prazo – a deficiência energética europeia, evitando que novas interrupções no fornecimento de gás natural ocorram. Finalizar o gasoduto Nord Stream 2, em construção desde 2011, parece ser o desfecho perfeito para o encerramento do seu mandato. A realidade é que a União Europeia (UE), apesar dos seus múltiplos compromissos ambientais de produção de energia limpa e renovável, permanece refém das importações dos hidrocarbonetos russos.

A escolha alemã

Desde a crise financeira de 2008, o bloco europeu sofre com índices muito baixos de crescimento econômico e sucessivas recessões. O endividamento dos países do mediterrâneo – Portugal, Espanha, Itália e Grécia – soma-se às sucessivas crises políticas, sociais e migratórias, o que pressiona ainda mais o orçamento da União e reduz sua capacidade de investir e produzir avanços tecnológicos e científicos significativos no setor de energia limpa. Merkel tenta, como último movimento, garantir maior segurança no aprovisionamento de energia para os países europeus, ainda que isso custe maior dependência da Rússia e uma situação de fragilidade nos processos de paz que patrocina com a França na Ucrânia. Como se nota, soluções fáceis não existem nas relações internacionais, e a chanceler possivelmente tem em mente que o acesso ininterrupto a uma fonte de energia garantirá maior segurança, estabilidade e bem-estar nas sociedades europeias. Isso é tudo de que o bloco mais necessita após suas constantes e recentes turbulências socioeconômicas.

Merkel parece não confiar plenamente no seu sucessor para encerrar o projeto em curso, uma vez que as eleições parlamentares alemãs ainda estão incertas, e o Partido Verde avança na disputa eleitoral. Caso ganhe, o projeto do gasoduto Nord Stream 2 poderia ser comprometido. Ao que tudo indica, porém, apesar das críticas públicas do partido e dos ecologistas à construção do gasoduto, a verdade é que a UE não pode se dar ao luxo de interromper a parceria com a Rússia, já que seus atuais índices de abastecimento são desproporcionais quando comparados à produção. Mesmo investindo no desenvolvimento tecnológico e científico de energia limpa, a matriz energética de 27 Estados-membros europeus não poderia mudar de imediato, e as demandas dos consumidores não param.

Nesse sentido, o investimento na diversificação energética é fundamental, mas a manutenção da parceria teuto-russa também é, ainda que isso custe um quadro temporário de dependência externa. Merkel entende com clareza todo esse cenário estratégico e, por isso, mantém uma postura de negociação frente às desavenças políticas entre Rússia e Ucrânia e se coloca na linha de frente para resolver as sanções norte-americanas. No jogo político europeu, a Alemanha sempre desempenhou – e provavelmente continuará desempenhando – uma posição semi-hegemônica, mantendo seu núcleo de poder e fortalecimento interno, ainda que sob a égide ilusória de um perfil de não confrontação.

O fator russo

Desde o início de suas obras, em 2011, o Nord Stream 2 tem causado controvérsia entre a comunidade internacional. Contudo, é a partir de 2014, face ao conflito na Ucrânia, que as polêmicas envolvidas com a empreitada tomam novas proporções. A presença russa no contexto ucraniano, cuja assertividade fora explicitada com a anexação da Crimeia, colocou o Ocidente em alerta em relação ao papel da Rússia no tabuleiro da segurança internacional. Nesse cenário, questões ligadas à segurança energética e à ameaça posta pelo tom empregado pelo presidente Vladimir Putin no trato com grandes atores ocidentais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os EUA, vieram à tona e continuam polarizando as opiniões em torno da construção do novo gasoduto. O episódio da Ucrânia rendeu duras sanções à Rússia, as quais seriam novamente asseveradas anos mais tarde em diferentes contextos. Entre eles, podemos destacar a polêmica envolvendo Alexei Navalny e os protestos anti-Putin organizados por grupos contrários ao governo russo.

A cautela com que o Ocidente lida com a Rússia desde o estopim do conflito de 2014 traz efeitos diversos. No que diz respeito ao projeto do Nord Stream 2, há duas questões centrais a serem consideradas. A primeira delas diz respeito ao fator econômico. A venda de hidrocarbonetos é responsável por mais de 60% das exportações russas, revelando uma clara dependência do país em relação a tais commodities. Estas, por sua vez, têm o mercado europeu como principal destino, fato que evidencia a centralidade dos negócios estabelecidos com os países-membros da UE, que, da mesma forma, permanecem amplamente dependentes do gás e do óleo russos. Os cortes no fornecimento de gás à Ucrânia impostos pela Gazprom em 2014 prejudicaram a economia ucraniana e ameaçaram o abastecimento europeu, alertando a Europa dos riscos de se manter à mercê das investidas de Putin. Isso, somado aos escândalos envolvendo perseguições políticas e desrespeito aos direitos humanos, levou a uma maior assertividade do bloco quanto à diversificação energética voltada à redução da dependência estabelecida com o mercado russo. Nesse contexto, a construção do Nord Stream 2 é de central importância também para Moscou, pois garante a continuidade de uma de suas mais rentáveis rotas comerciais frente às ameaças impostas pelo cenário securitário regional.

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Outra questão central para compreender as polêmicas que circundam o projeto encabeçado por Rússia e Alemanha diz respeito à geoestratégia que se esboça com a empreitada. Um dos principais pilares da política de Putin é a manutenção de sua presença em territórios historicamente próximos do entorno russo, como Ucrânia e Belarus, e expandir sua zona de influência. Nesse cenário, o Nord Stream 2 serve aos interesses de Moscou, ao menos, de duas maneiras principais: (i) aumenta a presença da Rússia na Europa, fato que, dado o cenário atual, torna-se ainda mais relevante, e (ii) aumenta o poder de manobra de Putin nos países que têm dutos russos operantes. Atualmente, grande parte dos gasodutos que transportam gás da Rússia para o mundo são superficiais, o que significa que, efetivamente, passam por territórios de diversos países. Do ponto de vista prático, essa disposição requer trâmites legais específicos, como  o pagamento pelo direito de uso do território estrangeiro. Do ponto de vista estratégico-militar, incorre em uma maior vulnerabilidade dos dutos, que ficam mais sujeitos às interferências no fluxo de transporte causadas, por exemplo, por danos decorrentes de atividades bélicas, ou por ação humana deliberada.

O Nord Stream 2 é formado por túneis subterrâneos que não só dispensam o pagamento por uso de terreno como também são mais seguros às agressões da superfície. Por um lado, essa composição protege a segurança do escoamento do gás russo e, por outro, dá a Putin maior possibilidade de impor retaliações a determinados países sem prejudicar o escoamento para seu mais importante mercado consumidor. Portanto, a empreitada da Gazprom ganha toques geopolíticos, ao garantir à Rússia: (i) maior presença em um território que vem-se mostrando avesso às suas demandas; e (ii) concede ao Kremlin maior margem de atuação sobre países, cujos territórios têm trechos superficiais de dutos russos.

Resistência e interesse

A postura de Merkel em relação ao Nord Stream 2 não encontra resistência somente em casa. A cooperação com a Rússia causa incômodo em atores internacionais que veem na empreitada uma estratégia russa de expansão de poder. Ucrânia, Estados Unidos, Polônia e Eslováquia, entre outros, já se posicionaram contrários à continuidade da construção. Ucrânia, Polônia e Eslováquia, países que atualmente possuem gasodutos operados pela Gazprom que seriam, em certa medida, substituídos pelo novo sistema, compartilham realidades similares. Os três deixariam de lucrar alguns bilhões de dólares ao ano por perderem aportes oriundos do pagamento do direito de uso de território estrangeiro. Ademais, todos temem o aumento da margem de manobra russa representado pelo uso reduzido das tubulações já existentes. Já os Estados Unidos, além de temerem o que o Nord Stream 2 representaria para a Rússia em termos de expansão de poder, veem na obra uma ameaça ao comércio de seu gás natural liquefeito, cuja produção tem excedido as demandas interna e externa.

Ainda que a Rússia já seja alvo recorrente da oposição dos atores aqui citados, a Alemanha não tem-se mostrado insensível às demandas internacionais e às ameaças trazidas pelo projeto. Em recente visita a Washington, D.C., Merkel concordou em manter a Ucrânia como país de trânsito de parte do gás escoado da Rússia e elevou o tom, declarando que, caso Putin volte a usar recursos energéticos para ameaçar Kiev, o uso do Nord Stream 2 será suspenso. A postura da chanceler frente às demandas estadunidenses reitera a natureza da opção pelo projeto encabeçado junto ao Kremlin e explicita que Berlim não está cega aos possíveis interesses russos que se obliteram por detrás do imperativo econômico que, a um mesmo tempo, guiam Alemanha e Rússia em sua ambição compartilhada.


*Revisão: Tatiana Teixeira e Stella Bonifácio

**This article does not necessarily reflect the opinion of the Center for International Studies and Analyzes (NEAI) of the Institute of Public Policy and International Relations (IPPRI/UNESP)