Em setembro de 2015 foi revelado, com base em pesquisas conduzidas pela ONG International Council on Clean Transportation, que desde 2009 a Volkswagen fazia modificações nos sistemas computadorizados de diversos modelos de sua linha de veículos, para que estes fossem aprovados em testes ambientais de limitação de emissões. A tentativa da empresa era viabilizar o diesel de baixo teor de enxofre como uma alternativa aos combustíveis mais tradicionalmente usados para carros leves, mesmo que na realidade a tecnologia que desenvolvera não gerasse um equilíbrio entre performance e emissões que tornasse os veículos atraentes ao consumidor. Foram vendidos cerca de 11 milhões de veículos com este esquema de violação, em diferentes países do mundo.

O modo como a manobra foi executada é engenhoso, tanto que passou 6 anos sem ser descoberto. Todo aparelho digital possui um programa denominado firmware, um controlador básico que explica para o aparelho como executar suas funções. O firmware atua como um manual de instruções sobre como a máquina deve fazer uso de suas diferentes peças para que se obtenha o resultado desejado. Os programadores da Volkswagen escreveram instruções para que os automóveis, ao detectarem que estavam em condições de teste, tivessem sua performance reduzida e gerassem emissões adequadas aos padrões dos testes.

Isso revela o caráter de intencionalidade por parte da empresa, já que era necessário que os programadores tivessem dados precisos sobre os padrões de execução dos testes para poderem fazer um código para que os carros compreendessem a situação em que estavam sem necessidade de interferência remota. Normalmente os testes são executados em esteiras rolantes e por sua própria natureza tem de ser padronizados, visando gerar igualdade de comparação entre os veículos de diferentes marcas. A Volkswagen aproveitou dessa regularidade para viabilizar seus automóveis ilegais.

As implicações ambientais são severas. Cálculos apresentados pelo jornal The Guardian indicam que é possível que o impacto ambiental desses carros seja comparado às emissões de todas usinas de energia, veículos, indústrias e setor de agricultura do Reino Unido combinados (veja aqui). Longe de ser uma simples violação de regulamentações, as ações da Volkswagen têm natureza criminosa, pois além de dano à saúde pública, a empresa ainda transformou seus consumidores em cúmplices do ato, já que eles achavam que estavam escolhendo veículos de baixo impacto ambiental.

Em uma indústria já enfraquecida como a de automóveis tradicionais, a iniciativa da Volkswagen parece ser uma resposta ao período de crise financeira global. Premidos pela necessidade de inovar e se destacar em meio a um mercado em dificuldades, os executivos da empresa levaram à frente a decisão de assumir o risco de descoberta das alterações em nome de não apenas concorrer no crescente mercado de carros com baixas emissões, mas também se enquadrar em benefícios oferecidos pelos EUA para veículos mais eficientes. Ambos os resultados foram atingidos.

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As consequências das ações da Volkswagen ainda não estão totalmente claras. Além de já terem sido anunciadas pesadas multas por parte dos EUA, seu presidente-executivo, Martin Winterkorn, renunciou ao cargo no último dia 23/09 (veja aqui), pedindo desculpas pelas ações da empresa. Além de Estados Unidos e Alemanha, outros países começam a investigar quais serão as punições para a empresa. Nos EUA, onde o processo está mais adiantado, as acusações podem atingir multas de até U$ 18 bilhões.

Os consumidores ainda terão de responder ao recall dos veículos, e não foi anunciado como a Volkswagen lidará com a questão. O modo mais fácil de contornar o problema é simplesmente colocar o carro para ser executado permanentemente no modo de testes. Suas emissões imediatamente ficariam dentro dos padrões. O detalhe não tão pequeno é que os compradores pagaram por um produto com especificações diferentes das que seriam obtidas desse modo, e uma cascata de processos poderia se seguir.

O caso demonstra o risco de se acreditar em uma empresa apenas por sua reputação, principalmente as de natureza transnacional, que são reconhecidas como sendo mais confiáveis. A responsabilidade social que acaba recaindo sobre esses produtores de bens de valor agregado é alto, e mesmo com a criação de mecanismos de controle, o interesse das empresas sempre será o de maximizar lucros. A Volkswagen provou que tal qual as apostas no mercado financeiro que quebraram a economia mundial, uma potencial recompensa alta pode tornar interessante qualquer violação.

O caso ainda apresenta outra faceta preocupante, que é a prova de conceito de que a integração de sistemas digitais aos veículos em geral pode ser mais problemático do que vem sendo prometido. Atualmente, contornar regulações ambientais requer modificações físicas detectáveis durante revisões, mas caso empregadas por programadores hábeis, poderiam ser facilmente gerados pacotes de tuning para deixar veículos mais potentes a custo de danos ambientais. O controle dessas modificações seria complexo, e demandaria medidas agressivas de inspeção, já que bastaria desinstalar a modificação durante as revisões para que a violação não fosse detectada.

Já existem hackers capacitados para obter controle remoto de carros por meio da Internet, como no caso de um de um modelo de veículo da Jeep (veja aqui). Com a chegada de carros sem necessidade de motorista no horizonte breve, com projetos voltados ao mercado consumidor, claramente existe um pulo qualitativo que ainda precisa ser feito em relação à geração de carros digitais que está sendo inaugurada. Muita atenção é necessária, ao invés de uma simples aceitação passiva, pois violações de todos os tipos não só são possíveis, mas já estão acontecendo.