Pouco antes da devolução de Hong Kong à China, o governador britânico Chris Patten (1992-1997) visitou um sanatório na cidade, onde um paciente lhe perguntou como um país que se orgulha de ser a democracia mais antiga do mundo pode entregar sua cidade a um país com um sistema de governo muito diferente, sem consultar os cidadãos, ou dar a eles a perspectiva de democracia como forma de salvaguardar seu futuro. Um dos assessores de Patten comentou que era estranho o fato de o homem que fez a pergunta mais sã de Hong Kong estar em um sanatório.

Hong Kong sob o Domínio Britânico

Hong Kong foi uma colônia britânica durante 154 anos, entre 1843 e 1997. A cidade fora tomada pelo Império Britânico após a derrota da China Imperial na Primeira Guerra do Ópio (1840-1842). A deflagração da Guerra decorreu do fato dos britânicos exportarem o ópio indiano para a China, porém o número crescente de dependentes da droga entre a população chinesa fez o imperador Daoguang (1782-1850) banir a mercadoria. Esta ação escalou as tensões entre os dois impérios a ponto de deflagrar um conflito armado que culminou com a vitória britânica, devido à superioridade tecnológica de seus armamentos do pós-Revolução Industrial em relação aos seus congêneres chineses. A China foi forçada a celebrar o Tratado de Nanquim, cedendo a Ilha de Hong Kong permanentemente à Coroa britânica. Após a derrota na Segunda Guerra do Ópio (1856-1860), o governo chinês foi obrigado a assinar a Convenção de Pequim, que cedia a Península de Kowloon e a Ilha Stonecutters para os britânicos. Em 1898, a Grã-Bretanha obteve a posse da área norte da Península de Kowloon em um arrendamento que duraria 99 anos, até a data de 30 de junho de 1997.[1]

Os primeiros cem anos de governo colonial em Hong Kong foram essencialmente moldados por interesses comerciais. A Coroa britânica declarou Hong Kong como um porto livre, com a intenção de transformá-la em um entreposto comercial no Extremo Oriente. Aproveitando a sua posição estratégica e as extensas redes comerciais da diáspora chinesa no Leste e Sudeste da Ásia, Hong Kong se tornou um centro comercial regional para os produtos britânicos e chineses, como o chá, a seda e a porcelana. Nos seus primeiros anos, Hong Kong também desempenhou um papel de destaque no comércio britânico de ópio e de escravos chineses (coolies), que eram enviados para trabalhar em minas e plantations no Sudeste Asiático, na Oceania, na África e nas Américas[2].

Desde o início, a fundação da colônia enfrentou cooperação e resistência de seus habitantes chineses. As autoridades britânicas dependiam das redes comerciais dos chineses para adentrar em outros mercados asiáticos. Em contrapartida, os britânicos premiavam alguns chineses com privilégios econômicos e sociais, de modo que esses colaboradores se tornaram a primeira geração da burguesia chinesa da colônia. No entanto, o governo britânico também enfrentou resistência dos chineses nativos das regiões adquiridas pós-1898, chamadas de Novos Territórios. Essa resistência resultou em uma violenta repressão militar pelas autoridades coloniais. A fim de pacificar a colônia, os britânicos reformaram o sistema fundiário para limitar a influência dos proprietários rurais pró-China. Um sistema de justiça foi criado não apenas para assegurar a lei e a ordem, mas também para policiar os chineses e assegurar condenações fáceis de ativistas anticoloniais[3].

Após a Revolução Comunista na China, em 1949, o governo britânico evitou confrontar Pequim para não colocar em risco o seu governo em Hong Kong. Assim, preferiu manter uma estrutura autoritária de governo, porque qualquer tentativa de introduzir eleições populares poderia levantar suspeitas do regime comunista, além da oposição à mudança pelas casas mercantis britânicas da cidade. Os membros do Conselho Legislativo de Hong Kong, o principal órgão legislativo local, eram nomeados pelas autoridades coloniais e possuía apenas um papel consultivo. A promoção da democracia em Hong Kong pela Grã-Bretanha ocorreu de forma tardia, somente após a repressão violenta pelo governo chinês aos protestos da Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989, quando  aumentou o apoio popular em Hong Kong por uma maior democratização da colônia[4].

As primeiras eleições diretas de todos os membros do Conselho ocorreram em 1991, levando a uma grande vitória de políticos pró-democracia, e esses resultados se repetiram nas eleições de 1995. Contudo, essa guinada liberalizante do sistema político de Hong Kong desagradou a Pequim, que preferiu substituir o Conselho Legislativo democraticamente eleito  por um Conselho Legislativo Provisório, formado por membros indicados pelo governo chinês, no período entre 1997 e 1998.  Assim, as políticas democratizantes da administração britânica de Hong Kong foram demasiadamente tímidas, ocorreram tarde demais, não obtiveram o apoio da China e foram incapazes de prevenir o esvaziamento das instituições democráticas nascentes a partir de 1997[5].

A Aprovação da Nova Lei de Segurança Nacional da China

Aproximadamente duas décadas e meia após o retorno de Hong Kong à soberania chinesa, a questão das liberdades dos honcongueses se tornou fundamental com a aprovação da nova Lei de Segurança Nacional (LSN) pelo Comitê Central do Congresso Nacional do Povo (CCCNP), em Pequim. A LSN entrou em vigor em 30 de junho de 2020, possui 66 artigos e cobre quatro formas de atividades criminosas: secessão, subversão, terrorismo e colusão com forças externas. Aqueles condenados por esses crimes podem receber a pena máxima de prisão perpétua. A LSN confere ao governo chinês o poder de estabelecer uma agência de segurança nacional em Hong Kong, que não estará sob a jurisdição do governo local e que terá poder para enviar alguns casos para serem julgados em Pequim. Somado a isso, o chefe do Executivo de Hong Kong (que é formalmente indicado pelo governo chinês) poderá nomear juízes para julgar casos que envolvem a segurança nacional. Qualquer um que for condenado sob a alegação de  violação da LSN não poderá concorrer a eleições em Hong Kong e, no caso de empresas, estas poderão ser multadas. A LSN também possui caráter extraterritorial e recai sobre pessoas de fora de Hong Kong que não são residentes permanentes da cidade. Desse modo, qualquer um que defenda a democratização de Hong Kong ou critique os governos de Pequim ou de Hong Kong, mesmo estando fora da jurisdição chinesa, pode sofrer as consequências assim que chegar à cidade.

O ponto central da nova Lei é o fato de que Pequim tem poder sobre como ela deve ser interpretada, e não algum órgão judicial ou político de Hong Kong. Se a Lei entrar em conflito com qualquer lei de Hong Kong, a Lei de Pequim terá primazia sobre ela. Desse modo, a LSN tem sido objeto de polêmica, pois ela vai contra o arranjo constitucional de “Um País, Dois Sistemas”, acordado entre a China e a Grã-Bretanha, na ocasião da Declaração Conjunta Sino-Britânica, de 1985. O arranjo previa que após a devolução de  Hong Kong à China em 1997, Pequim conferiria autonomia política à cidade (transformando-a em uma Região Administrativa Especial – RAE) e resguardaria os direitos fundamentais dos cidadãos de Hong Kong, como as liberdade de expressão,  direito à livre reunião e  liberdade de imprensa,  a partir de uma mini-constituição chamada de Lei Básica, em vigor desde 1 de julho de 1997. A Lei Básica expressa que o arranjo de “Um País, Dois Sistemas”, no qual, o sistema capitalista e o modo de vida de Hong Kong que existiam sob o domínio britânico serão preservados durante 50 anos (até 2047). Outro aspecto fundamental é o fato de que a Lei Básica proíbe que o governo chinês e o governo local interfiram nos assuntos da RAE de Hong Kong.

As razões da Lei de Segurança Nacional chinesa

A China possui uma série de motivações em implementar a LSN. Pequim defende que a nova Lei levará à estabilização de Hong Kong e à retomada do ambiente de negócios da cidade; Desde junho de 2019, a cidade tem sido palco de protestos, vários deles violentos,  em resposta a um projeto de lei que o governo chinês tentou aprovar, cujas implicações  permitiam a extradição de cidadãos de Hong Kong para serem julgados em tribunais do sistema de justiça chinês comunista . Muitos honcongueses criticaram o projeto de lei, pois ela exporia os cidadãos da RAE a tratamentos violentos por parte das autoridades comunistas e à possibilidade de julgamentos injustos, já que 99,9% dos julgamentos realizados em tribunais chineses terminam em condenação. Centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas durante vários meses, até que o projeto de lei foi retirado em setembro do ano passado. Mesmo assim, os protestos continuaram, pois os manifestantes ainda possuem  quatro demandas: 1) que os protestos não sejam caracterizados como “tumultos”; 2) anistia para os manifestantes presos; 3) um inquérito independente em relação à violência policial; e 4) a implementação do sufrágio universal pleno. Essas demandas podem ser entendidas como respostas ao texto da LSN, que considera o vandalismo de certos meios de transporte como “terrorismo”, e seus autores estão sujeitos a serem julgados na China Continental.

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Com efeito, o principal fator neste cenário, no entanto, é que a China não precisa tanto de Hong Kong quanto precisou no passado. Nos anos 1990, Hong Kong chegou a representar 27% da economia chinesa. Em 2020, a cidade representa menos de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Isso ocorreu muito em razão do grande desempenho econômico da China nos últimos 20 anos e com o crescimento de megacidades, como Shenzhen, Xangai, Chongqing, Guangzhou e Pequim. Em vez de ter apenas uma cidade para a atração de trabalhadores e investimento estrangeiro, a China agora possui várias, que muito diferem da burocracia existente na RAE de Hong Kong. Nesse sentido, pode-se argumentar que o governo chinês possui cada vez menos incentivos para manter a autonomia da ex-colônia britânica e agradar à população local.

As consequências da LSN

Em 1º de julho de 2020, primeiro dia de vigência da LSN, a polícia de Hong Kong divulgou a informação sobre a detenção de 370 manifestantes sob diversas acusações, dentre as quais, a violação da LSN. Nesta definição foram inseridos manifestantes cujos crimes abrangiam, por exemplo,  portar bandeiras ou “itens que defendiam a independência”, incluindo uma menina de 15 anos que portava uma bandeira pedindo a independência da RAE. A polícia alertava as ações que agora eram tipificadas como crime, exibindo faixas que indicavam  a proibição de “exibir bandeiras ou estandartes, cantar slogans, ou se comportar com intenções como secessão ou subversão, que podem constituir ofensas”.

Um dos mais proeminentes partidos pró-democracia da cidade, o Demosisto, encabeçado pelo jovem ativista Joshua Wong, anunciou a sua dissolução. Enquanto isso, dois grupos pró-independência, a Frente Nacional de Hong Kong (FNHK) e o Studentlocalism, fizeram o mesmo anúncio. O Instituto de Pesquisa de Opinião Pública (IPOP), um grupo pró-democracia envolvido na seleção de candidatos para as eleições locais, teve seus escritórios invadidos pela polícia após publicar uma pesquisa que mostrava que mais de 61% dos cidadãos não acreditam que Hong Kong ainda seja uma cidade livre. Ninguém foi preso, mas o IPOP foi acusado de ter cometido “uso desonesto de computador”, enquadrado em uma lei originalmente criada para combater fraudes pela Internet.

A mudança repentina entre a liberdade de discurso e a repressão provocou uma corrida para apagar dados das mídias sociais que pudessem ser enquadrados na nova LSN, uma vez que o poder de polícia da lei alcança também os ambientes virtuais. Os usuários deletaram postagens, excluíram contas e derrubaram vídeos pelo receio da nova patrulha virtual. As plataformas digitais que ora eram utilizadas para organizar os protestos a favor da liberdade de Hong Kong, agora são instrumentos de vigilância por parte do governo continental. Dessa forma, pode-se dizer que a lei ganhou tração em sua eficácia, sobretudo a partir do pressuposto de que, além de punir as contravenções, o dispositivo legal inibe e dissolve a própria organização das manifestações, protestos e lideranças honconguesas pró-ocidentais. A RAE, que sempre teve acesso ilimitado à internet, agora convive com os receios de possuir um ambiente virtual passível de censura e repressão a quem utiliza a web para se opor ou questionar o governo.

Com o alcance da LSN até o ciberespaço, a preocupação que paira sobre o ideário de Hong Kong e do mundo ocidental é a de que o governo continental está estendendo a Firewall (que regula a internet e bloqueia sites estrangeiros) para a RAE, como disse Charles Mok, legislador de Hong Kong ligado à tecnologia da informação, em uma postagem no seu twitter: “Nós já estamos atrás do Firewall”. Esta perspectiva de controle, restrição, monitoramento e punição que está sendo “exportada” para Hong Kong a partir da nova lei, se expande para as empresas de tecnologia e comunicação que, sendo bloqueadas na China Continental, possuem sedes na RAE e agora estão sob jurisdição da nova lei e podem ser diretamente afetadas pela disputa acerca da liberdade na Internet.

Com o governo de Hong Kong desenvolvendo meios para limitar a liberdade na internet, empresas ocidentais como Twitter, Google, Zoom e Facebook, que não operam na China Continental, ficam no meio de um embaraço entre a liberdade dos usuários e a permanência na RAE. Como as plataformas citadas anteriormente são espaços propícios para debates políticos, que agora são contra a lei, as mesmas são obrigadas a liberar os dados dos usuários ao governo honconguês quando solicitados. O descumprimento da solicitação pode acarretar num boicote à estas empresas de modo que sejam proibidas de funcionar em Hong Kong ou até mesmo prisão de seus funcionários.

Este impasse sobre a liberdade no ambiente virtual recai sob as já conturbadas e tensas relações entre EUA e China. As restrições de empresas de tecnologia americanas fazem com que os EUA considere o bloqueio de alguns aplicativos chineses. Os posicionamentos da comunidade internacional contrários à LSN não param por aí. Se pronunciaram contra a censura da nova lei: a União Europeia, OTAN, Canadá, Taiwan e Grã-Bretanha, o outro lado do acordo e de quem a região é ex-colônia.

Os EUA declararam que não consideram Hong Kong mais uma região autônoma, retirando o “status especial” da RAE; outros vinte e sete Estados no Conselho de Direitos Humanos da ONU disseram que a China precisa reconsiderar a medida pois ela abala a liberdade de Hong Kong; ao mesmo tempo a OTAN critica a posição da China dizendo que o país não compartilha dos mesmos valores de seus membros. A União Europeia e o Japão, por sua vez, declararam lamentar a decisão e que a medida pode vir a minar a autonomia do território. Já a Grã Bretanha estendeu os direitos de residência de cidadãos britânicos em Hong Kong e reiterou que a China não “cumpriu com sua palavra em manter promessas”; a organização Anistia Internacional também se somou aos críticos da nova lei publicando um documento esclarecendo 10 pontos controversos da LSN.

Em Pequim, as autoridades alegam que a legislação não afetará a liberdade e os direitos dos cidadãos. Quanto às críticas proferidas pelos outros países e organizações, a China diz ser falsa a afirmação de que a RAE está perdendo a sua autonomia, e que a segurança nacional é de competência do governo central não cabendo, portanto, interferência da comunidade internacional. Nas entrevistas regulares do Ministro das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, já nos dias 1,2 e 3 de Junho, a partir da promulgação da nova lei, ao ser perguntado sobre o posicionamento da China em relação às críticas reiterou que os “assuntos relacionados à Hong Kong são puramente relações internas chinesas” reforçando que o tema está sendo tratado como uma questão de soberania.

Embora a lei não tenha caráter retroativo, ela prevê punições austeras para ações/crimes que não são claramente definidos e propositalmente vagos, constrangendo e limitando a liberdade dos cidadãos da RAE, veículos de comunicação e empresas. Pensada para conter os protestos da oposição e silenciar as críticas, na prática, a medida extingue a já restrita liberdade de Hong Kong e aproxima a então Região Autônoma do modus operandi da China Continental. A lei que paira sobre a RAE, outorgada e controversa, questiona a vigência da máxima onde “Um País” não parece ter mais “Dois Sistemas”.


[1] Cf. NGO, Tak-Wing. Hong Kong: Overview. In: PONG, David (Org.). Encyclopedia of Modern China. Farmington Hills: Charles Scribner’s Sons, 2009. v. 2, p. 234-9 e TREVISAN, Cláudia. Os Chineses. São Paulo: Contexto, 2009.

[2] Cf. HAN, Xiaorong. Slave Trade: Coolie Trade. In: Macmillan Encyclopedia of World Slavery. Farmington Hills: Simon & Schuster Macmillan, 1998. v. 2, 463-5 e Ngo (2009)

[3] Cf. Ngo (2009)

[4] Cf. FULDA, Andreas. Democracy in Mainland China, Taiwan and Hong Kong: Sharp Power and its Discontents. Abingdon: Routledge, 2020 e Ngo (2009).

[5] Cf. Fulda (2020).


Henoch Gabriel Mandelbaum é mestrando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Integra o Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (NUPRI-USP), o Centro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI-USP) e o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC-USP).

Giovanna Bertolaccini  é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP). Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).


* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”