Crédito da imagem: Oleksii Liskonih

O crescimento da China e a consequente demanda por matérias-primas e expansão dos investimentos representam uma janela de desafios, mas também de oportunidades, para os países da América Latina e do Caribe, processo atualmente tornado mais espinhoso pelo cenário de disputas geopolíticas entre os Estados Unidos e a potência asiática. O Brasil e o México, apesar de terem tido um processo de formação histórica, cultural e econômica em comum, apresentam diferenças importantes no que se refere à possibilidade de administrar a crescente participação do país asiático nas relações internacionais e as consequências da disputa hegemônica. Tais diferenças são fruto da escolha de trajetórias de desenvolvimento distintas a partir da crise da dívida de 1982 e da relação bilateral de cada um deles com os Estados Unidos.

A possibilidade de que a ascensão econômica da China seja revertida em ganhos para o processo de desenvolvimento econômico de Brasil e México depende, entre outros fatores, das características internas de cada Estado, especialmente das lideranças políticas e da estrutura produtiva. Atualmente, ambos os países colocam em prática uma política de alinhamento com a grande potência. No entanto, enquanto no caso mexicano o alinhamento é condicionado pela proximidade geográfica e pelo alto grau de integração produtiva consolidado no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, em inglês), o brasileiro trata-se de escolha. Apesar de o Brasil ter relações comerciais mais diversificadas do que o México, o que lhe permitiria melhor angariar resultados positivos em um cenário de aumento das rivalidades entre as principais potências mundiais, tal possibilidade é desperdiçada.

Recentemente, os desafios aos países da região provenientes do âmbito internacional têm se tornado ainda mais agudos. Não é esperado que o governo de Joe Biden empreenda uma mudança na postura da potência em relação à China. O documento Guia Interino para a Estratégia de Segurança Nacional, publicado pela Casa Branca em março de 2021, destaca de forma explícita a “competição estratégica” com uma China “crescentemente assertiva”. Além disso, o Innovation and Competition Act e o Strategic Competition Act, publicados em abril de 2021, possibilitam vultosos investimentos na produção de bens manufaturados e fortalecimento das instituições que promovem a inovação nos Estados Unidos. Assim, o arrefecimento da disputa comercial entre as duas potências impõem ao Brasil e México a superação de seus desafios internos de forma a melhor aproveitar as oportunidades externas.

O alinhamento como escolha no Brasil

No caso brasileiro, em comparação a outros países da região, há relativo equilíbrio em suas parcerias comerciais. De acordo com a base de dados mantida pelo Ministério da Economia, o principal parceiro comercial brasileiro – a China – correspondeu, em 2020, a 32% das exportações e a 21% das importações do país, tendo ocorrido um superávit de 33 milhões de dólares e sendo a grande maioria das exportações concentradas nas indústrias extrativas, com destaque para a exportação de petróleo e minério de ferro, e na agropecuária, especialmente soja. O segundo parceiro comercial foram os Estados Unidos, correspondendo a 10% das exportações e 17% das importações em 2020, quando houve déficit de mais de 6 milhões de dólares. As exportações para os Estados Unidos são concentradas na indústria de transformação, incluindo produtos como aço, celulose e peças de aeronaves. Cabe pontuar também a Argentina, terceiro principal destino de exportações brasileiras, para o qual o Brasil vende especialmente produtos da indústria de transformação, com destaque para veículos e suas peças.

Os dados de 2020 representam uma tendência que se verifica desde 2009: a manutenção da China como principal parceiro comercial, seguida pelos Estados Unidos. Do ponto de vista estritamente comercial, a diminuição da relevância dos Estados Unidos na balança comercial significou menor dependência – ainda que seu predomínio geopolítico na América Latina se mantenha – e, por um tempo, contribuiu para a adoção de uma política exterior mais assertiva por parte do Brasil. Até 2018, o aumento da importância comercial do país asiático foi acompanhado pelo reforço da parceria bilateral, assim como pela valorização das relações com outros países emergentes, o que se materializou de forma mais significativa no fórum Brics (Brasil, Rússia, China e África do Sul).

A parceria com a China vinha sendo construída desde algum tempo – como exemplo, cabe citar o programa de cooperação na produção de satélites, o CBERS – China-Brazil Earth Resource Satellites, iniciado em 1989 e por meio do qual quatro gerações de satélites construídos em parceria foram lançados ao espaço pela China. Mais recentemente, as relações bilaterais foram elevadas à categoria de Parceria Estratégica Global em 2012 e, de acordo com dados do think tank Inter-American Dialogue, no acumulado de 2005 a 2020, o Brasil foi o segundo principal destino de empréstimos e investimentos chineses na América Latina, ficando atrás apenas da Venezuela.

A aproximação com a China e com outros países do Sul Global não havia significado descuido nas relações com os Estados Unidos. Embora tenham ocorrido dificuldades bilaterais durante a presidência de Dilma Rousseff, em razão da descoberta de atos de espionagem, a cooperação em temas de segurança foi intensificada – em razão da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos sediados no Brasil – e a presidente buscou retomar o diálogo de alto nível quando visitou Washington D.C. em 2015 e entregou a ratificação de dois acordos na área de Defesa. Até então, o Brasil parecia seguir uma estratégia de equidistância entre as duas potências, com a possibilidade de manobrar possíveis benefícios. A estrutura comercial relativamente diversificada e a tradição do Itamaraty eram pontos positivos que contribuíram para essa possibilidade.

A tendência começou a mudar a partir do impeachment de 2016 e, ainda mais, após as eleições de 2018, quando o então candidato Jair Bolsonaro passou a criticar a China. Durante sua gestão, embora a China tenha se mantido como principal parceiro comercial, primou a incoerência do ponto de vista político – diferentes nomes do governo federal fizeram críticas ao gigante asiático, por vezes flertando com a xenofobia, a exemplo dos ex-ministros Ernesto Araújo, Abraham Weintraub e de Paulo Guedes. O cenário tornava-se ainda mais caótico e alheio à tradição diplomática com as reiteradas associações do coronavírus como um “vírus chinês” pelos filhos do presidente e membros da administração. O governo apostou por desdenhar da relação com a China, ao mesmo tempo em que construía um alinhamento ideológico com o ex-presidente Donald Trump.

Como era de se esperar, a escalada retórica teve consequências práticas, significando um desgaste das relações e implicando em prejuízos em questões de interesses nacionais e para setores produtivos brasileiros. No primeiro semestre, a demora na entrega de matéria-prima para o envase da vacina Coranavac pelo Instituto Butantan foi associada às dificuldades bilaterais. Ao mesmo tempo, a postura do governo federal tem sido duramente criticada por Kátia Abreu, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Nacional e notória representante do agronegócio brasileiro, um dos setores que mais lucra com as vendas para a China e que sofreria maiores perdas em caso de possíveis retaliações. Assim, no caso brasileiro, a situação relativamente diversificada do ponto de vista das parcerias comerciais é desperdiçada por uma política errática, sem maturidade para angariar resultados positivos ao país, em um cenário de aumento das rivalidades entre as principais potências mundiais – que são, também, os principais parceiros comerciais do país.

O caráter estrutural das relações México-Estados Unidos

Assim como no caso do Brasil, a participação da China no comércio exterior do México é expressiva. Atualmente, a China é a segunda maior sócia comercial do México e, em 2019, respondeu por, aproximadamente, 18% das importações e 1,5% das exportações, segundo dados da Secretaria de Economia. Os números são inferiores aos do comércio bilateral Brasil-China, o que pode ser explicado pela participação majoritária dos Estados Unidos no comércio exterior do México – 80% das exportações e 45% das importações, em 2019. O déficit comercial em relação ao gigante asiático – 75 bilhões de dólares – indica um acentuado processo de perda de competitividade da indústria mexicana, especialmente no segmento de produtos de média intensidade tecnológica.

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A participação crescente da China no comércio exterior do México é uma das principais razões que motivam iniciativas recentes de maior cooperação bilateral. Em 2013, durante o governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018), as relações bilaterais foram classificadas como “associação estratégica integral”, tendo sido atribuída centralidade aos temas econômicos e à abertura de oportunidades de negócios. Na ocasião, o governo mexicano estabeleceu acordos para facilitar a exportação de carne suína e de tequila para o mercado chinês. O maior engajamento com a China também esteve no centro das iniciativas multilaterais no período de Peña Nieto, com destaque para as Cúpulas entre a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e a China, a Aliança do Pacífico e a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (Apec).

Apesar destas iniciativas, a prioridade atribuída à China ainda é baixa. O relativo desinteresse do governo de Andrés Manuel López Obrador, que sucedeu Peña Nieto em 2018, reflete, por um lado, a falta de clareza do governo mexicano quanto aos objetivos da política externa no corrente sexênio. Durante a campanha eleitoral, AMLO, como é conhecido, declarou que “a melhor política externa é a interna”, sinalizando que iria priorizar a sua agenda doméstica calcada no combate à corrupção e aos privilégios herdados dos governos anteriores e na promoção das políticas sociais.

Andrés Manuel López Obrador, presidente do México. Crédito: Divulgação governo mexicano/ Le Monde Diplomatique Brasil

Por outro lado, a baixa prioridade de López Obrador em relação à China é explicada pela estreita, e assimétrica, relação do México com os Estados Unidos. O Nafta formalizou a dependência mexicana e dificultou a promoção das relações comerciais do México com outros sócios, ainda que, nos anos seguintes, o governo tivesse negociado Tratados de Livre Comércio (TLCs) com outros países buscando diversificar as relações econômicas internacionais. O caráter estrutural das relações México-Estados Unidos faz com que o governo mexicano aposte em uma postura cautelosa: ao mesmo tempo em que busca se aproximar da China, entende que pode se beneficiar das medidas protecionistas do governo Biden.

O Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, em inglês), que substituiu o Nafta em 1 de julho de 2020, reforçou as relações dos Estados Unidos com o Canadá e o México com o objetivo de limitar a participação da China nas importações da América do Norte. Ao modificar as regras de origem, pretende-se incentivar o retorno das companhias estadunidenses e substituir os produtos fabricados no país asiático. O México possui o menor custo de produção dentre os três Estados membros e, por isso, pode se beneficiar do possível retorno das empresas à América do Norte. Contudo, segue pendente a implementação das mudanças na Lei Federal do Trabalho, aprovadas em 2019, que buscam atender a promessa de campanha de López Obrador de aumento do salário mínimo e melhores condições trabalhistas e, simultaneamente, adaptar a legislação nacional às diretrizes mais rígidas previstas no USMCA.

Além disso, o novo acordo prevê que os membros que pretendem negociar um acordo de livre comércio com economias não reconhecidas como de mercado devem avisar os outros membros com seis meses de antecedência, que podem não aceitar as negociações do Estado solicitante. Apesar de a China não ter sido citada, a cláusula foi popularmente chamada de “anti-China”, pois na prática impede o estabelecimento de acordos comerciais com o país asiático. Apesar de ser considerada uma restrição à autonomia do México, é necessário destacar que, assim como no Brasil, um acordo com a China é visto com extrema desconfiança, dado o risco de perda de competitividade e agravamento da desnacionalização da indústria mexicana.

Destarte os constrangimentos externos, a China participa de projetos de infraestrutura financiados pelo governo do México. Em abril de 2020, a empresa China Communications Construction Company venceu a concessão junto a outras empresas mexicanas e estrangeiras para construir o primeiro trecho do Trem Maya, que pretende conectar os estados do sul do México. Ademais, em novembro do mesmo ano, o governo da Cidade do México anunciou o contrato de modernização da linha 1 do metrô através do consórcio composto por empresas da China (Railway Construction Corporation Zhuzhou Locomotive, da Espanha (COALVI) e da França (THALES). E, no decorrer da pandemia da covid-19, podem ser mencionados a compra de vacinas da Sinovac e da Sinopharm, além do fornecimento de equipamentos médicos.

É necessário destacar, contudo, que os esforços empreendidos pela China no decorrer da pandemia da covid-19 estão mais relacionados às iniciativas de cooperação para o desenvolvimento do governo chinês do que a uma “relação especial” com o México. Além disso, apesar da participação chinesa nos projetos de infraestrutura, a China correspondeu, em 2020, a apenas 0,6% dos investimentos externos diretos do México, sinalizando que o país latino-americano ainda aproveita pouco o potencial chinês neste aspecto. No curto e médio prazo, o governo de López Obrador ainda aposta no USMCA e na retomada da liderança tecnológica dos Estados Unidos para impulsionar o crescimento do Produto Interno Bruto. Por isso, o governo mexicano busca evitar que uma sinalização mais assertiva em direção à China prejudique as relações com o vizinho.

Conclusão

O crescimento econômico da China e o acirramento das disputas com os Estados Unidos impõem desafios importantes às duas maiores economias da América Latina – o Brasil e o México. Apesar das semelhanças históricas e culturais, eles apresentam diferenças importantes de acordo com as lideranças políticas e a estrutura econômica, condicionantes que são chave para determinar em que medida é possível superar os desafios e angariar oportunidades deste cenário externo.

O Brasil possui maior espaço de manobra – ao menos do ponto de vista comercial – para buscar um equilíbrio entre as potências e extrair benefícios da competição. A realidade, no entanto, é outra – as decisões tomadas apontam para uma subvalorização das relações com a China, ao tempo em que o governo Trump foi escolhido, unilateralmente, como parceiro principal. Nesse contexto, a mudança de governo dos Estados Unidos deixou o Brasil isolado internacionalmente.

No caso do México, o alto grau de associação econômica com os Estados Unidos limita o alcance das iniciativas de diversificação das relações internacionais. Apesar dos avanços nas relações com a China nos últimos anos, o governo de López Obrador mantém um relativo desinteresse em relação ao gigante asiático. O governo mexicano age com cautela pois teme que uma sinalização mais assertiva à Ásia possa comprometer as relações bilaterais com os Estados Unidos, especialmente em meio às regras mais rígidas estabelecidas pelo USMCA.

O contexto de arrefecimento das disputas entre Estados Unidos e China demanda uma estratégia de política externa coerente e voltada para a promoção do desenvolvimento, o que na prática significa prudência do ponto de vista diplomático e a busca por evitar conflitos. Ao mesmo tempo, também é necessário pensar em alternativas e em formas de diversificar parcerias, inclusive para preservar a indústria nacional e avançar em etapas de maior complexidade tecnológica. Seria ingênuo pensar que o desenvolvimento viria das relações com as grandes potências – sejam elas ocidentais ou asiáticas – e não do fortalecimento econômico interno e da articulação de posições com países em semelhante estágio de desenvolvimento.


*Revisão: Stella Bonifácio da Silva Azeredo

**This article does not necessarily reflect the opinion of the Center for International Studies and Analyzes (NEAI) of the Institute of Public Policy and International Relations (IPPRI/UNESP)

*** Este artigo foi publicado anteriormente pelo Le Monde Diplomatique Brasil