Fonte: DW/ Crédito: picture-alliance/dpa/dpaweb

Criado como alternativa ao Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), a pouco mais de 30km da capital do estado do Maranhão, foi inaugurado na década de 1980 e, a partir de então, se tornou o mais importante centro de lançamento de foguetes do Brasil. A localidade escolhida estrategicamente faz de Alcântara, potencialmente, um dos centros de Lançamentos mais competitivos do mundo.

Localizada a dois graus da linha do Equador, esta base de lançamento de foguetes é geograficamente privilegiada, uma vez que, a velocidade de rotação da Terra ali é maior que em outras latitudes. Este fenômeno permite que alguns tipos de lançamento utilizem a velocidade de rotação da própria Terra para impulsioná-lo, permitindo uma economia de até 30% de combustível. Pode não parecer muito, mas além de permitir lançamentos mais baratos e, portanto, mais competitivos, possibilita que mais cargas sejam levadas ao espaço pelos foguetes no mesmo lançamento. Isso faz com que o CLA integre a lista de melhores bases de lançamentos do mundo.

Embora esta competitividade que o CLA detém seja verdadeira, ela é ainda potencial. A base de Alcântara, mesmo tendo grandes pretensões, incluindo a de ser a janela brasileira para o espaço, como diz seu próprio lema, está muito longe desse feito. A falta de infraestrutura, de investimentos governamentais no Programa Espacial Brasileiro (PEB) e a dificuldade para a ampliação do Centro, por conta da questão territorial com a comunidade quilombola, se somam a outras barreiras internacionais, como o cerceamento tecnológico e os embargos estadunidenses baseados no regime do International Traffic in Arms Regulations (ITAR). Estes são apenas alguns dos entraves que fazem com que Alcântara continue sendo uma promessa.

Dentre os fatores internacionais que impedem o desenvolvimento do CLA está a não existência do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e EUA (AST). A realização deste acordo se fez crucial devido ao fato de que, sem o mesmo e com as ressalvas que cabem ao Brasil em resguardar a propriedade tecnológica, intelectual e as patentes estadunidenses, o Centro não tem possibilidade real de entrar no mercado de lançamentos. Isto ocorre porque de 80% a 85% dos produtos, sejam os veículos lançadores ou suas cargas, possuem algum componente dos EUA, incluindo assim, no escopo abarcado no AST, a maioria dos produtos a passarem por Alcântara para serem lançados.

Em 2000, foi assinado o primeiro Acordo de Salvaguardas Tecnológicas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, uma vez barrado pelo Legislativo, o Acordo não entrou em vigor. Naquele momento, o Congresso Nacional entendeu que o conteúdo do Acordo feria a soberania brasileira. O documento previa que os EUA pudessem ingressar no Brasil contêineres lacrados sem que inspeções fossem feitas; também conferia aos EUA a possibilidade de interferência em todo e qualquer lançamento que possua componentes de origem deste país, ou seja, praticamente todos.

Impossibilitado de realizar lançamentos que possuíssem algum componente estadunidense, o Brasil firmou a cooperação com a Ucrânia. O acordo objetivava a comercialização de lançamentos a partir do CLA utilizando o foguete ucraniano Cyclone-4, mas o programa foi cancelado em 2015. Embora tal programa de cooperação não tangencie o objeto de estudo proposto, se faz relevante na análise pela polêmica envolvida. Em 2011, o site WikiLeaks tornou público documentos enviados pelo Departamento de Estado Americano para a embaixada estadunidense em Brasília. No telegrama, constava que os EUA não desaprovavam a cooperação para lançamentos entre o Brasil e a Ucrânia, mas que eram contra qualquer transferência tecnológica ucraniana ao Brasil que pudesse viabilizar a criação de veículos lançadores (foguetes) brasileiros.

Mais recentemente, no governo do presidente Michel Temer, as negociações para a elaboração do AST entre o Brasil e os EUA foram retomadas. A atual gestão do presidente Jair Bolsonaro deu continuidade à pauta, que culminou na assinatura do tratado em março 2019, durante visita do presidente aos EUA. Desta vez, o acordo foi aprovado no Congresso Nacional ainda em 2019, que por sua vez, entendeu que as falhas que impossibilitaram a aprovação em 2000 tinham sido sanadas. É importante questionar quais foram os critérios utilizados pelos parlamentares para considerarem este acordo diferente do anterior. De fato, o novo acordo é redigido de maneira menos incisiva. No entanto, é clara a discrepância entre as cessões que cabe a cada uma das partes, assim como o acordo coloca em voga qual o tipo de autonomia o Brasil se posta a ter.

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O que diz o novo acordo

O AST vigente prevê que todo o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno continue sob jurisdição brasileira através do Ministério da Defesa. No entanto, os Estados Unidos terão, enquanto desenvolverem lançamentos do território nacional, uma área restrita a ser controlada pelo governo dos EUA ou empresas norte-americanas licenciadas. O Brasil poderá monitorar, acompanhar e vistoriar esta área, desde que aprovado e autorizado pelos EUA. O documento também dispõe que as áreas e as instalações do Centro estão sob controle brasileiro, menos as que estão situadas na área restrita. Subentende-se, portanto, a brecha que demonstra o controle estadunidense sob a área ocupada.

A disposição do tratado versa ainda sobre uma questão sensível, a gestão de recursos legitmamente brasileiros. O documento diz que recursos obtidos com os lançamentos de Alcântara poderão ser utilizados na elaboração e no desenvolvimento do PEB, em contrapartida está a cláusula que impede que o Brasil use qualquer recurso adquirido com a exploração do CLA para investir em lançadores (foguetes). A normativa coloca em xeque o programa brasileiro do Veículo Lançador de Satélites (VLS) que, por sua vez, daria autonomia ao Brasil para comercializar lançamentos.

O estabelecimento de regras de proteção de propriedade intelectual é o primeiro passo, e talvez o mais importante, para tornar o CLA comercialmente ativo, já que 80% ou mais de todos os produtos possuem componentes estadunidenses. Se o AST não estiver em vigor, é difícil que o centro se torne  ativo e competitivo. Ao mesmo tempo, caso o acordo se mantenha neste formato, 80% dos recursos obtidos com esta atividade econômica rentável também se tornam instrumentos de cerceamento tecnológico e científico, o que dificulta o desenvolvimento do VLS, do PEB e, consequentemente, da atividade comercial de Alcântara.

É importante salientar que esta análise leva em conta a relativa impossibilidade de se obter transferências tecnológicas na área espacial, principalmente na área de lançadores e lançamentos, por se tratar de uma tecnologia sensível e dual. Deve ser considerado também o poder de barganha, já que a posição brasileira no setor espacial não permite que esta negociação seja simétrica, afinal o Brasil depende mais que o acordo entre em vigor do que a outra parte. No entanto, o que se propõe é demonstrar que este acordo, da forma como está em vigor, não é conveniente ao desenvolvimento tecnológico brasileiro. Além disto, o fato de os parlamentares terem considerado em 2019 que este acordo não fere a soberania nacional, desperta também um questionamento sobre a interpretação deste conceito, uma vez que não se considerou como uma violação à soberania a possibilidade de que outro Estado defina como os recursos financeiros brasileiros podem ser empregados.

Como mencionado, o AST é imprescindível, uma vez que a preservação da propriedade intelectual e tecnológica do país parceiro é o primeiro passo para estabelecer um acordo de cooperação nesta área. No entanto, é questionável se de fato os pontos criticados pelo Congresso Nacional no passado tenham sido sanados nesta nova versão do tratado. Os recursos a serem obtidos pela exploração da base estão limitados pelo acordo, a ocupação do espaço e das áreas restritas estão mantidas, e os lançamentos de outros países que contenham algum componente estadunidense só podem ser feitos mediante autorização do governo dos EUA. Com relação à impossibilidade de investimentos na construção do VLS, o Brasil fica limitado, em termos comerciais, ao serviço de lançamentos, que é a parte menos rentável da operação, não possuindo acesso ao mercado de lançadores.

Não se pode negar que os recursos obtidos por meio do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre Brasil e EUA são relevantes, principalmente para investimentos em infraestrutura da própria Base, tornando Alcântara efetivamente competitiva. Todavia, também é importante levantar questionamentos quanto aos custos de tal acordo para a autonomia nacional e para o desenvolvimento tecnológico espacial brasileiro.


*Revisão: Marcela Franzoni, Marcel Artioli e Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”