Guillermo Lasso, no centro, anuncia pela televisão a dissolução da Assembleia Nacional. Foto: Bolivar Parra/Presidência Equatoriana/AFP

“Morte Cruzada”, e agora? Perspectivas a partir das interrupções de mandatos presidenciais ocorridas no Equador

O Equador apareceu nos noticiários devido a um acontecimento corriqueiro na América Latina – queda do presidente em meio a uma crise política. O caso, contudo, guarda uma peculiaridade. O presidente Guillermo Lasso decretou, no dia 17/05, o mecanismo de “morte cruzada”. O resultado? A dissolução da Assembleia Nacional e a convocação imediata de eleições presidenciais e legislativas. 

O presidente vinha enfrentando dificuldades para governar com um poder legislativo de maioria oposicionista e por estar enfrentando acusações de desvio de dinheiro público, fatores que foram determinantes para a Assembleia votar pela continuidade de um processo de impeachment contra o presidente, levando-a optar pela medida extrema. 

As disputas entre Congresso e Presidência não são novidade no Equador. O país passou por um período de forte instabilidade entre 1996 e 2007, quando três presidentes não completaram seus mandatos: Abdala Bucaram (1997), Jamil Mahuad (2000) e Lucio Gutiérrez (2005). O Equador só alcançou maior estabilidade graças ao sucesso econômico e o fortalecimento do Executivo frente ao Congresso durante o governo Rafael Correa (2007-2017) – ainda que feito, para dizer o mínimo, de maneira controversa. 

A avaliação de especialistas é que uma reforma constitucional (aprovada por referendo em 1995), que retirou ferramentas do Executivo para formar e manter coalizões parlamentares, aumentou as chances de impasse entre os poderes. Ela retirou incentivos presidenciais para atrair apoio legislativo, levando-os a dependerem de instrumentos provisórios para construir maiorias congressuais.

Bucaram buscou apoio legislativo do tradicional Partido Social Cristão (PSC) em troca de indicações ao tribunal eleitoral. Quando os cargos terminaram, e suas reformas econômicas e acusações de corrupção e nepotismo minaram seu apoio popular, os partidos tradicionais o abandoaram. Como resultado, o Congresso o derrubou por meio de uma declaração de incapacidade mental. 

Mahuad não se dispôs a “pagar” pelo suporte do PSC. Ainda que tenha buscado apoio de dois pequenos partidos de esquerda, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachacutik (MUPP) e o Esquerda Democrática (ID), não foi suficiente para implementar suas reformas de austeridade. Sem apoio político, foi derrubado por mobilização encabeçada pelos militares e a sempre presente politicamente organização indígena, Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). 

 Finalmente, Gutiérrez, um dos líderes em 2000, venceu as eleições com apoio das forças responsáveis pela derrocada de Mahuad, mas traiu seus apoiadores com reformas econômicas neoliberais logo no início de seu mandato. Como Bucaram, ele formou uma “coalizão fantasma” com o PSC para avançar nas reformas que, novamente, ruíram. Gutiérrez mudou ilegalmente os juízes da Suprema Corte para conseguir apoio de outros partidos. Resultado da manobra, os militares retiraram seu apoio ao presidente e o legislativo declarou abandono de cargo após o presidente fugir durante uma onda de protestos que ficou conhecida como forajidos.

O fraco desempenho econômico, os escândalos de corrupção e as polêmicas manobras do Congresso para destituir presidentes levaram a população a rejeitar a elite política. O resultado foi a eleição de Rafael Correa em 2007, um outsider de um pequeno partido, o Alianza País (AP), que surgiu do movimento forajidos. Aproveitando a desilusão generalizada com as instituições políticas, Correa fez campanha com a promessa de “refundar” a democracia criando uma Assembleia Constituinte. 

No poder, Correa foi muito hábil politicamente e, em vez de repetir a estratégia fracassada de seus antecessores, aproveitou sua popularidade para minar a legitimidade do Congresso (muito impopular) e defender a convocação da prometida Assembleia Constituinte mediante aprovação em referendo popular. O Congresso inicialmente rejeitou essa proposta, mas acabou aceitando-a após manifestações contrárias ao Legislativo. 

O mandato de Correa foi marcado por avanços sociais, crescimento econômico, mas também por uma deterioração da democracia, considerando indicadores comumente usado pela literatura liberal (veja o gráfico abaixo, “Índice de Poliarquia no Equador (1997-2020)”). O presidente aproveitou a baixa popularidade do poder Legislativo para avançar em suas reformas políticas e justificou suas medidas de fortalecimento do Executivo no comportamento anterior da casa. Correa considerava que não conseguiria governar, assim como seus antecessores, caso fossem mantidas as regras do jogo. No entanto, é razoável avaliar que ele passou do ponto: Correa removeu 57 legisladores que se opuseram ao referendo e nove juízes do Tribunal Constitucional contrários a esta manobra, além de ter assumido o controle do Banco Centra e viabilizado reeleições sucessivas, concentrando significativo poder em suas mãos.

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Fonte: V-Dem

Dentre as medidas aprovadas durante a gestão Correa está o mecanismo de “Morte Cruzada”, agora usada por Lasso que, diferentemente dos antecessores (1997, 2000 e 2005), dispôs de um instrumento legal para “responder” ao Congresso e evitar uma queda solitária. O Artigo 148 é vago. Ele prevê que o Presidente da República pode dissolver a Assembleia Nacional quando, a seu juízo, esta tenha assumido funções que não lhe correspondem constitucionalmente, mediante parecer favorável do Tribunal Constitucional; ou se obstruir de forma reiterada e injustificada à execução do Plano de Desenvolvimento Nacional, ou por grave crise política e comoção interna. Ainda que haja evidências que justificam legalmente o impeachment, o que realmente pesa é o domínio da oposição no Congresso e o fraco desempenho do presidente no cargo, já que, na prática, a decisão é muito mais política do que jurídica. 

Os meses que antecedem as eleições extemporâneas serão cruciais para a democracia equatoriana. Ainda conforme o Artigo 148, mediante parecer favorável do Tribunal Constitucional, o presidente pode emitir decretos-lei de urgência económica. Dentro um prazo de 6 meses, o presidente poderá governar por decreto. 

Isto o permitirá avançar em agendas que alegava estarem sendo travadas pelo Legislativo. Se conseguir bons resultados econômicos e na gestão da segurança pública (problema que aumentou significativamente nos últimos anos e que justificou sua polêmica medida de liberar o porte a civis e decretar estado de emergência), poderá ter sucesso em recuperar apoio político para reagrupar as diferentes as forças políticas contrárias ao retorno do correísmo e viabilizar sua (ou a de um aliado) candidatura. Mas o tiro pode sair pela culatra. Se tomar medidas muito radicais e/ou impopulares, tanto a população poderá se mobilizar contrariamente, quanto o presidente poderá sofrer derrotas no Judiciário. 

Ademais, o prazo para alcançar resultados “visíveis” é muito curto (há um prazo máximo de 3 meses até as eleições) e os impactos podem ser negativos à democracia equatoriana, já que as medidas devem ser tomadas em caráter de urgência e poderão acarretar protestos e, consequentemente, repressão. O tipo de resposta policial que o presidente poderá ordenar, considerando que o estado de emergência ainda durará um mês, e o comportamento dos militares serão decisivos. Ao que tudo indica, os militares seguiram a legalidade e cumpriram a decisão presidencial, mas o histórico ativismo político das forças armadas no Equador (e a recente retomada deste tipo de comportamento também em outros países da região, tais como no Brasil e Bolívia, após episódios de interrupção de mandatos presidenciais) mostra que este é um risco latente. Em um cenário mais pessimista, mas sempre possível, o presidente poderá se aproveitar do caos social para se manter no poder e governar sem o Legislativo, transformando um mecanismo constitucional em um autogolpe.

Se centrar seus esforços em promover a transição política e realizar eleições justas e livres (ao invés de focar na vitória eleitoral), a democracia poderá sair fortalecida. A “morte cruzada” terá cumprido seu papel, solucionando o impasse político entre os poderes (sempre potencial nas democracias multipartidárias latino-americanas) e abrindo a possibilidade para os eleitores legitimarem um novo governo para completar o mandato. Para a democracia sair mais fortalecida da crise, outros dois atores também são essenciais: os eleitores e o presidente eleito. Se, por um lado, os primeiros optarem por um outsider, prometendo fórmulas mágicas (e autoritárias) para resolver a crise de segurança pública e para combater a corrupção e, por outro, o novo presidente utilizar a insatisfação popular com as condições políticas, sociais e econômicas para justificar medidas de centralização do poder e para cassar opositores políticos, já sabemos qual será o resultado. 

Momentos de crise são comumente usados para justificar medidas de exceção e comportamentos políticos extremistas. É visível que experiências recentes de interrupções de mandatos presidenciais tiveram desdobramentos negativos às democracias latino-americanas (Rousseff, 2016 – Brasil; Morales, 2019 – Bolívia; Vizcarra, 2018, e Merino, 2020 – Peru), já que levaram à ascensão de líderes extremistas e com pouca experiência política. Tais resultados parecem ter ocorrido porque os mecanismos constitucionais foram usados principalmente com interesses políticos e as oposições utilizaram estratégias agressivas para minar o presidente. Agora, é observar se haverá comportamentos semelhantes de Lasso e da oposição no Equador.