A longa marcha da crise brasileira aparenta ter combustível suficiente para não se esgotar no curto prazo. A velocidade com que novos fatos surgem e alteram as perspectivas impossibilita qualquer diagnóstico consistente, abrindo espaço para as mais diversas especulações. A aproximação da votação, no Senado, que poderá decretar o afastamento de Dilma Rousseff potencializou a efervescência dos últimos meses, ultrapassando as redes sociais e se materializando com uma nova remessa de (des)informações e prognósticos.

Em meio ao mar de divagações e embates pelo controle das narrativas, o significativo aumento da possibilidade do vice-presidente da República Michel Temer assumir o governo despertou a atenção de diversos analistas para o documento intitulado ‘Uma Ponte para o Futuro’. Assim que foi divulgado, em outubro de 2015, o conteúdo e a forma como as ideias eram defendidas e dispostas chamaram atenção, revelando um pensamento dissonante das principais políticas que o governo federal vinha adotando.

Ignorado em um primeiro momento, ao menos pelo grande público por conta da imensa quantidade de fatos e eventos sucessivos, o documento tem sido recuperado nesses últimos dias por conta da alteração da conjuntura. Colaboram com essa percepção o fato do áudio de um discurso do vice-presidente ter vazado para a mídia, e nele serem encontradas diversas similitudes.

Cabe ressaltar que aparentemente seu desígnio seria gerar uma pauta de discussão, e não um programa claro de governo, sendo impossível afirmar a existência definitiva de uma correlação entre o defendido no documento e um hipotético governo Temer. Assinado de forma genérica pela Fundação Ulysses Guimarães e pelo PMDB, tampouco é possível dizer que as ideias ali apresentadas seriam de sua inteira concordância. Ainda assim, de conteúdo eminentemente crítico, a argumentação chama atenção por sua tentativa de reavaliar os caminhos do Estado brasileiro, apontando para isso uma visão peculiar da realidade interna e externa.

De maneira geral, a tese se apoia na ideia de que o país estaria na contramão dos ventos externos, precisando se adequar aos modos, maneiras e inovações que, especialmente, os países desenvolvidos teriam adotado. A distância entre o Brasil e esse conjunto de outras sociedades assumem um papel essencial na argumentação, revelando um traço importante das narrativas de relevante parte do corpo político brasileiro.

Inicialmente o texto conclama um governo de união nacional entre os “brasileiros de boa vontade”, respondendo ao “clamor por pacificação” de um país, que segundo o diagnóstico, estaria dividido e tomado por ódio e ressentimentos. Mais do que a defesa de iniciativas pontuais, a peça se pretende como um esboço de projeto de Estado, pautado na preservação da economia brasileira, viabilizando o desenvolvimento, com objetivo de devolver ao Estado a capacidade de implementar “políticas sociais que combatam efetivamente a pobreza e criem oportunidades para todos.”

Todas as iniciativas estariam guiadas por um “quase” consenso dentro do país, atendendo às necessidades práticas que a “inércia e a imobilidade política” teriam sido incapazes de solucionar. A saída política, portanto, residiria na criação de uma maioria, ainda que em caráter transitório, com capacidade de devolver governabilidade e de realizar reformas no curto prazo. De modo taxativo, afirma que o “sistema político brasileiro deve isso à nossa imensa população”.

Olhando para o presente, o documento peemedebista denuncia a situação de grave risco vivida pelo país, ressaltando a recessão econômica, a queda da renda per capita e a crise fiscal. Repercutindo a hipotética distância entre o Brasil e o mundo, defende como ideia central que a “estagnação econômica e o esgotamento da capacidade fiscal do Estado não são fenômenos circunscritos apenas à esfera econômica”. Assim, mesmo os países desenvolvidos e com “generosos regimes de bem-estar social”, que têm sofrido com a interrupção de ciclos virtuosos de crescimento e não conseguiram reequilibrar as contas, passam por um enfraquecimento da autoridade política e insatisfação social. Comparando com a “modernas democracias de massa”, uma alusão direta aos países centrais do sistema internacional, atrela a expansão dos gastos públicos aos transtornos sociais, defendendo a tese de que o Estado brasileiro, embora grande, não é capaz de prestar os serviços que promete e a economia não é capaz de oferecer oportunidades e renda para a população.

A solução para a questão passaria pela mudança do Estado, em consonância com as encontradas nas “modernas economias de mercado”, que demandariam “um Estado ativo e também moderno”. A insistência no adjetivo ‘moderno’ se revela na defesa desse modelo alternativo, sendo não apenas defendido como correto pela “teoria econômica”, mas também comprovado pela “experiência histórica dos países bem-sucedidos”. Nele o Estado seria o único capaz de criar e manter em funcionamento as instituições democráticas e da economia de mercado, restrito assim a ser um agente de distribuição de “incentivos corretos para a iniciativa privada e administrar de modo racional e equilibrado os conflitos distributivos que proliferam no interior de qualquer sociedade”.

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Essa ressignificação seria orientada por um pacto de crescimento duradouro assentado em reformas estruturais, especialmente na solução do desequilíbrio fiscal por meio de um ajuste de caráter permanente que garantiria um rígido controle de gastos e redimensionamento do papel estatal, solução tida como “muito dura para o conjunto da população”, no entanto, inevitável a ponto de afirmar que “nenhuma visão ideológica pode mudar isto”. Toda a discussão é endossada por comparações com a carga tributária e certos parâmetros de competitividade, demonstrando como o Brasil estaria na direção contrária aos ventos externos e/ou a modelos de êxito recente. Desse modo, para se adequar ao padrão de fora, o governo brasileiro deveria se esmerar em diminuir despesas públicas primárias e acabar com dispositivos constitucionais que obrigam o repasse para diversas áreas, desindexando as contas e retornando “a um orçamento verdadeiro”, como “continua sendo na maioria das grandes democracias modernas”, valendo para todas as áreas, inclusive na política atual de salário mínimo.

A ligação entre o modelo externo e as reformas se revela também no tema da previdência social. Comparando as escolhas internas com as “de quase todos os demais países do mundo”, o documento critica a transformação das regras de acesso e gozo dos benefícios previdenciários em norma constitucional, tornando a sua adaptação difícil em casos de mudança demográfica. Portanto, “ao contrário de muitos países”, o Brasil pagaria o preço dessa escolha com uma grave crise fiscal, sendo necessário deixar de garantir com os dispositivos legais atuais os direitos conquistados, assim como os Estados (exemplos não são mencionados no texto) que resolveram a questão.

Por fim, critica as medidas de ajuste de emergência, que segundo a argumentação sempre implicam custos e sofrimentos assimétricos, repartidos de forma injusta, sem resolver o problema. Usando da analogia do destino do Sísifo mitológico, “condenado a arrastar um rochedo para o cimo da montanha, apenas para vê-lo rolar abaixo outra vez, para reiniciar indefinidamente o mesmo padecimento”, afirma que a única saída permanente seria a adoção permanente do ajuste duradouro que consistiria na redução estrutural das despesas públicas, na diminuição do custo da dívida pública e no crescimento de longo prazo.

Olhando para a inserção internacional brasileira, mais especificamente sob um viés econômico, o documento recorre ao diagnóstico do relatório do Fórum Econômico Mundial, que alegava que o ambiente brasileiro para negócios não era e nem seria favorável, caso não experimentasse mudanças. Desta forma seria obrigação do Estado uma ação que recriasse um ambiente benéfico para o setor privado, estimulando com ele novos espaços de participação “mais efetiva e predominante” em operações econômicas que respeitem “a lógica das decisões econômicas privadas, sem intervenções que distorçam os incentivos de mercado, inclusive respeitando o realismo tarifário”.

A peça deixa transparente o projeto, sentenciando que “a globalização é o destino das economias que pretendem crescer.” Assim o Estado brasileiro deveria cooperar com o setor privado em uma ação que visasse a abertura de mercados externos, ampliando ao máximo as parcerias regionais de viés liberal, dirigidas em uma ação que incluísse “a redução de tarifas, a convergência de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no Atlântico Norte”. Esse movimento se orientaria por uma abertura comercial para a qual o país deveria se “preparar rapidamente”, tornando o setor produtivo mais competitivo graças ao acesso aos bens de capital, tecnologia e insumos importados. Para realizar essa operação externa, e inserir plenamente a economia brasileira no comércio internacional, o país deveria se voltar para “áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia” – com ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com ele”, alinhando as normas nacionais aos “novos padrões normativos que estão se formando no comércio internacional”.

Independente dos possíveis usos políticos das ideias expostas no documento, a peça é uma síntese poderosa das propostas ventiladas por setores da sociedade que advogam em defesa de um modelo liberalizante. Antítese do momento anterior em diversos aspectos, o teor da narrativa pretende espelhar no Brasil os movimentos das grandes potências, se inserindo na dinâmica das cadeias internacionais de produção, procurando reposicionar o papel do país no mundo. A própria imagem projetada no texto guarda elementos importantes, pois aparentemente deliberam para soluções ditas como consensuais que nem sempre se revelam da forma disposta nos países de origem. Na briga pelas ideias, ‘Uma Ponte para o Futuro’ se limita, portanto, a redefinir uma agenda de orientação como base modelos externos, nem sempre formatados para a dinâmica social brasileira.