Nada pode ser pior para um país que almeja o status de potência média emergente e pretende jogar o jogo da diplomacia internacional do que a adoção de uma política externa enviesada pela ideologia.

A ideologia é inerente à política, doméstica ou internacional, pelo simples fato de que impregna as escolhas e as condutas humanas. Ela é muito mais sinônimo de orientação ideal do que de “distorção do real”, mas suas lentes, quando mal calibradas, podem de fato cegar e promover atos descompensados, que desorganizam e prejudicam.

Países escolhem parceiros e posicionamentos internacionais em função dos interesses nacionais, de valores, tradições e estilos de atuação, da correlação de forças, de metas estratégicas e possibilidades efetivas. Muitas vezes, porém, os condutores da política externa se deixam guiar por esquemas de solidariedade e alinhamento mais afinados com orientações e escolhas ideológicas. Entram e saem de blocos e arranjos motivados por tais esquemas, e não pelos interesses de seu Estado e de sua população.

Podem fazer isso de modo escancarado, imprudente, ou de modo cauteloso, realista, para que as preferências político-ideológicas se componham com os interesses nacionais e não joguem o país numa zona aberta de turbulência.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, fez sua campanha denunciando o “ideologismo” da política externa petista, que teria, em sua visão, submetido os interesses do Brasil a inflexões ideológicas distorcidas – como, de resto, aconteceria em todas as demais áreas do Estado. Para ele, a esquerda petista seria uma fábrica de doutrinação indiferente às necessidades do País.

Mas ao escolher para a chancelaria nacional um diplomata de perfil ideológico e doutrinário, com derivações regressistas em termos valorativos e intelectuais, Bolsonaro copia o que atribuía ao PT, só que com o sinal trocado.

A solidariedade petista é agora substituída pela submissão a Donald Trump, tido como estadista que “salvará o Ocidente” e corrigirá os desatinos do “globalismo”, retirando-o das mãos do “marxismo cultural”.

O diplomata Ernesto Araújo sustenta, por exemplo, que a globalização é um processo direcionado por uma ideologia (o globalismo) que está a serviço da China. Trump não seria o chefe esquisito de uma superpotência, mas o grande líder que reagiria à decadência do Ocidente e buscaria recuperar “o passado simbólico, a história e a cultura das nações ocidentais”. Despreza-se o que há de nacionalismo tosco e de rejeição às instâncias multilaterais no “trumpismo”, destacando nele tão somente um antiglobalismo mal definido.

O suposto é que a salvação viria pela vibração ideológica e cultural, já que a raiz do problema estaria na agressão feita pela globalização aos valores ocidentais por meio da intensificação do intercâmbio de pessoas, ideias, produtos e costumes. Na crítica à globalização, os antiglobalistas não destacam os problemas da reprodução ampliada do capitalismo, mas a dimensão espiritual e a defesa genérica da nação. “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação americana”, escreveu o novo chanceler.

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Preocupante será se Ernesto Araújo levar a sério as frases pretensamente filosóficas que ilustram seu pensamento. São frases que não soam bem na boca de um diplomata, especialmente porque colidem com os valores e as diretrizes típicas da política externa que, desde Rio Branco, vem sendo seguida pelo Estado brasileiro com as devidas atualizações.

Pode ser que não se transfiram para a gestão da política externa prática e se limitem a ser um marcador retórico. Se algo delas passar, o País terá muito mais ônus do que bônus e conhecerá prejuízos em seus interesses (políticos e econômico-comerciais), em seu posicionamento estratégico e em sua imagem internacional. Será levado a um isolamento contraproducente e estranho à sua História.

Uma diplomacia voltada para a submissão aos Estados Unidos e o isolamento entrará em atrito com três vetores importantes. O primeiro é o Itamaraty, com suas tradições de independência e de não alinhamento automático. O segundo é a proclamada política econômica de Paulo Guedes, que terá de se valer de um protagonismo internacional realista e pragmático, refratário a manobras isolacionistas e a perspectivas míticas de “salvação”. Em terceiro lugar, não terá passagem fácil entre os militares, cujo nacionalismo tem outro fundamento. Pode-se imaginar como as Forças Armadas assimilariam a ideia de Araújo de que o Brasil necessita de uma “metapolítica externa” para se situar e atuar “naquele plano cultural-espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia político-militar, estão-se definindo os destinos do mundo”.

Como política de Estado, a política externa não pode ser manejada exclusivamente em função de preferências governamentais, como emanação da vontade de um governante ou de um partido. Uma troca de governo não deve implicar a alteração radical da política externa, a não ser que almeje a completa desorganização do lugar do País no mundo. A permanência de certas diretrizes funciona como estrela-guia, garantia de acumulação e continuidade.

Com a escolha de Araújo, o presidente eleito atiça ainda mais a polêmica na área da política externa, depois das inadequadas declarações sobre a China, o Mercosul e Israel, além da questão com os médicos de Cuba. Faltam prudência e sentido estratégico, sobra desejo de “mudar tudo o que está aí”, o que poderá levar não à defesa do Brasil, mas a um açodado alinhamento com a ascensão global da direita populista, que tem no trumpismo um de seus motores.

Sairiam assim de cena os interesses nacionais, em benefício de um impreciso “nacionalismo” por delegação, de consequências imprevisíveis.