Impeachment no Brasil, dificuldades na Bolívia e na Venezuela, Macri na Argentina, Obama em Cuba, mudanças à vista no Peru, tensões e atritos no Equador de Rafael Correa. Os ventos parecem estar soprando em outra direção na América do Sul, inclinando os governos para o centro e a centro-direita. Estaria a se anunciar o fim do “bolivarianismo” e a volta triunfal do “neoliberalismo”, como dizem as línguas inflamadas de muitos analistas de esquerda, de centro e de direita?

Para apimentar a discussão, consta que a presidente Dilma Rousseff, naquele que pode ter sido um de seus últimos atos como governante, instruiu representantes brasileiros a pedirem que o Mercosul e a Unasul apliquem sanções ao Brasil em nome do desrespeito à “cláusula democrática”, dado o “golpe” que estaria a sofrer. Como parte deste cenário, no último dia 25 de abril, 14 dos 17 parlamentares brasileiros se retiraram da sessão plenária do Parlasul, o parlamento do Mercosul, que comemorava os 25 anos do bloco econômico, em Montevidéu. Alegando que foram alvo de uma retaliação por causa do processo de impeachment, os deputados e senadores abandonaram a sala de reuniões após constatarem que se sentariam numa das últimas fileiras, atrás de funcionários de segundo e terceiro escalão da chancelaria.

Ao que tudo indica, tratou-se de uma reação a nota publicada no site oficial do Parlasul pelo presidente do órgão, o deputado argentino Jorge Taiana, condenando o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Para Taiana, o julgamento político em curso é uma “situação escandalosa”, um autêntico “golpe parlamentar, uma utilização forçada da lei de impeachment”, cujo objetivo central seria afastar o PT do poder.

Para sair deste quadro embaçado, devemos buscar ir além da passionalidade que parece prevalecer hoje nos círculos regionais mais à esquerda, que tendem a se alinhar de forma algo mecânica em torno de uma retórica única, quase sempre em tom superlativo.

Seria prudente, por exemplo, começar perguntando o que se entende por “bolivarianismo”, expressão quase sempre empregada em sentido caricatural e depreciativo para estigmatizar governos que se propuseram a promover algum tipo de resgate da dívida social e a abrir mais espaços a minorias e a setores socialmente enfraquecidos. É um universo composto por muitas diferenças, que se articularam entre si mais por falta de opções do que por interesse sincero. Há distâncias abissais entre o que ocorreu na Venezuela de Chávez e no Brasil de Lula, ou entre Maduro e Dilma; Pepe Mujica não pode ser reduzido a uma versão uruguaia de Bolivar, o libertador. O período Kirchner entra na roda de modo apertado, tantas são suas especificidades. Difícil acomodar toda esta multiplicidade em uma única designação.

Seja como for, o fato é que se constituiu na região uma vertente próxima do que antes se designava como esquerda: uma versão de novo tipo, bem mais diluída, sem um discurso teórico compatível e sem partidos tipicamente de esquerda – uma esquerda sem classes condutoras e sem socialismo, digamos assim. Nem sequer o PT pode ser qualificado como partido autenticamente de esquerda, justo ele que foi a força que mais longe chegou na fixação de um vetor de esquerda na América do Sul.

A unir as várias vertentes, estiveram sempre presentes o reformismo social, um certo “antiamericanismo”, o combate (mais retórico que efetivo em muitos momentos) ao neoliberalismo, maior presença do Estado e boas relações com os movimentos sociais tradicionais, que invariavelmente se converteram nas principais engrenagens dos governos. Algumas experiências governamentais descuidaram da política parlamentar, quase todas deixaram de organizar uma mídia própria, todas tiveram problemas com os grandes órgãos de imprensa, a maioria deixou de lado o equilíbrio fiscal, a responsabilidade com os gastos e as contas públicas. Mas, em todos os casos, promoveram mudanças importantes nas respectivas sociedades. No entanto, estruturas retrógradas permaneceram, e elas, combinadas com os novos grupos e os novos padrões de sociabilidade impulsionados pelo capitalismo 2.0 e por uma sociedade mais individualizada, voltaram-se contra muitos dos expedientes e parte das políticas postas em prática pelos governos “bolivarianos”.

Para quem pesquisa relações internacionais, o ciclo tem representado uma tentativa clara de superpor uma dinâmica político-social ao tradicional padrão comercial e diplomático dos processos de integração regional. Criaram-se novos blocos e novas instituições, a dinâmica integracionista ganhou musculatura, as articulações ficaram mais fortes. Nada suficiente, porém, para converter o ideal de “Nuestra América” na pátria comum dos cidadãos dos diferentes países da região. Ou para alterar substantivamente a qualidade mesma da integração, que permaneceu a ser impulsionada sobretudo pelos interesses econômicos e comerciais. Ao menos até onde dá para perceber, continuou-se a respirar ares nacionais bem mais do que ares regionais, numa demonstração de que faltou uma pedagogia integracionista que preparasse os espíritos e educasse os povos. Tudo bastante compreensível, dado o curto espaço de tempo em que uma nova dinâmica buscou ser introduzida.

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Por isso, uma pergunta que deveria passar a ser respondida pelos estudiosos diz respeito ao futuro. Se confirmada a nova direção dos ventos que se fazem sentir na região, estaria ameaçada a integração? Ela poderá vir a sofrer algum retrocesso? Ou a tendência continuará a mesma: processo incremental, sujeito a chuvas e a trovoadas, lento e gradual, jamais em linha reta, com muitas instituições que competem entre si e muita dependência do empenho governamental (do Poder Executivo)?

A integração sul-americana goza de importante apoio da intelectualidade da região, que a interpela com redobrado interesse científico e paixão cívica até certo ponto incomum nos dias de hoje. Apesar disso, sempre enfrentou obstáculos complicados que têm conseguido dificultar a formação de uma consistente base de sustentação, ainda que não tenham tido força suficiente para desativá-la ou paralisá-la.

Se olharmos a questão em escala histórica, é impossível não reconhecer que muito se progrediu desde a assinatura do Tratado de Assunção (1991), marco da criação do Mercosul. Também é digna de nota a multiplicação das instituições que vêm se dedicando a realizar pesquisas e estudos sobre a integração. A Universidade Federal da Integração Latino Americana–Unila existe e funciona, dando ênfase à formação de profissionais que tenham no cerne de suas respectivas áreas de conhecimento a preocupação com uma América Latina integrada.

Há, pois, uma disposição crítica e alguma disponibilidade de quadros e ideias. Por que então a integração não avança com firmeza e ainda não se converteu em agenda efetiva para os Estados da região?

Processos de integração são construções políticas inevitavelmente lentas e complexas, fato que fica mais dramático na América do Sul, tendo em vista a quantidade de problemas, a heterogeneidade e a desigualdade nela existentes. Impulsionados por dinâmicas eminentemente econômicas e comerciais, tais processos penam para adquirir ritmo político e cultural, único terreno em que uma integração de fato pode se completar. Além disso, vivem mais ao sabor de decisões governamentais que de políticas de Estado e nem sempre conseguem se orientar por uma estratégia abrangente, sistemática, sustentável. Como se não bastasse, sofrem a concorrência, muitas vezes “desleal”, de outras dinâmicas integracionistas, de turbulências econômicas e de operações de hegemonia internacional ou regional.

Nenhuma integração se faz em abstrato. Enraíza-se na história da região que se quer integrar, na comunhão cultural de seus povos e nos interesses comuns de suas sociedades. Reflete suas possibilidades e suas dificuldades. Está determinada, evidentemente, pela situação concreta dos diferentes países e pelo modo como se vive no mundo. Hoje, por exemplo, a integração se ressente da situação de crise e enfraquecimento da política, comum a todas as sociedades contemporâneas.

A ideia de integração é uma construção política que se depara hoje com um cenário de difícil politização, no qual escasseiam sujeitos (grupos, partidos, movimentos, associações) qualificados para propor uma estratégia comum de ação e dar sustentação a ela. Para vencer, ela necessita desesperadamente daquilo que mais falta: política, atores políticos, organização política. Por um lado, há o peso desproporcional do econômico, o poder de sedução e cooptação do mercado. Por outro, os governos perderam potência e os Estados nacionais viram diminuir suas margens de manobra. Na vida, há muita diferenciação social, luta por identidade e individualização, ou seja, muita dispersão e fragmentação. E a esfera política, pressionada por sua própria crise, não consegue unir o social e fornecer a ele uma direção. Dado o déficit de subjetividade política, cresce a tentação do voluntarismo e do populismo.

Vista por esse ângulo, a integração latino-americana poderia sugerir a imagem de um projeto destinado ao fracasso. No entanto, ela continua viva e desponta como uma utopia típica desse início de século. É preciso, pois, reconhecer aquilo que a faz respirar e fluir.

Em boa medida, a integração é uma espécie de imposição da realidade globalizada do mundo. Na vida atual – veloz, comunicativa, surpreendente –, pequenos atos ou gestos podem desencadear verdadeiros tsunamis em questão de dias. Os sistemas políticos estão em crise, mas a política não se resume a eles. Há coisas acontecendo e potência sendo armazenada fora deles. Numa sociedade da informação, existe sempre mais espaço para iniciativas inteligentes, quer dizer, culturais, educativas, arejadas, processuais e dialógicas, centradas na negociação e na articulação.

A combinação cruzada desses fatores impulsiona a integração latino-americana, fazendo com que ela se torne categoricamente factível, ainda que permaneça sempre tensa e difícil. Se um agente – um partido, uma frente política, um bloco histórico — surgir e conseguir injetar fantasia política, estratégia democrática e sustentabilidade na dinâmica da integração, a ponto de demonstrar que ela é boa não somente para os negócios e os Estados, mas para a vida cotidiana dos cidadãos, aí então poderá haver adesão em massa e outra história começará.