A poucos meses de deixar a Casa Branca, o presidente democrata Barack Obama tem sido surpreendido por revezes no âmbito doméstico que, a despeito de sua alta popularidade, – o presidente conta, atualmente, com 51% de aprovação, segundo o índice Gallup -, são apontados como algumas das principais derrotas políticas da administração vigente. Um dos casos mais notáveis, nesse quesito, foi o bloqueio recente à reforma presidencial do sistema imigratório, após uma votação empatada na Suprema Corte dos EUA.

O conflito político e jurídico tomou proporções mais amplas a partir do final de 2014, mas, na prática, já se arrasta desde 2012. Nesse ano, o presidente, que não tinha, até aquela ocasião, obtido grandes avanços sobre o tema, lançou o programa Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA), destinado a garantir a não deportação e vistos de trabalho para imigrantes irregulares, trazidos ao país até os 16 anos de idade, por um período de dois anos (ou até quatro, mediante renovação). A medida respondia ao projeto mais amplo de proteção dos chamados “dreamers”, a geração de novos imigrantes a quem a proposta executiva pretendida atender, e os quais poderiam, posteriormente, requisitar a regularização de sua situação, no país.

Além da DACA, tramitaria no Congresso, em 2013, um pacote mais robusto de medidas de reforma, tanto da imigração, quanto do sistema de controle de fronteiras, o qual foi barrado após a rejeição na Câmara dos Deputados. Diante do impasse, ao fim de 2014, o presidente Obama se adiantou em relação ao Legislativo e anunciou duas medidas executivas, uma destinada à expansão da DACA e outra que lançaria um projeto similar, intitulado como Deferred Action for Parents of Americans and Lawful Permanent Residents (DAPA). De maneira complementar ao primeiro, esse último tinha por objetivo estender os benefícios também aos pais de cidadãos estadunidenses e residentes permanentes do país, que não apresentassem históricos criminais. A decisão, contudo, não foi bem recebida nas bancadas legislativas que, após as eleições de meio de mandato, encontravam-se dominadas por representantes da oposição republicana.

Nesse contexto, governadores de vinte e seis estados, liderados pelo Texas, recorreram contra a decisão, em tribunais de primeira instância, alegando abuso da autoridade presidencial, da parte de Obama. O caso chegou à Suprema Corte, no início de 2016, e vinha sendo analisado, até o final de junho, quando um empate de quatro versus quatro determinou a vitória dos vinte e seis estados e o bloqueio das reformas e extensões propostas, mediante o ato Executivo de 2014. Em pronunciamento oficial, o presidente Obama reiterou que a “América sempre fora uma nação de imigrantes” e que a decisão da Corte, além de frustrante, afastava o país de seus ideais mais caros. Dentre alguns de seus argumentos, a administração alega que as medidas eram legítimas, uma vez que a bancada do Executivo possui competência e autoridade para regular questões migratórias, por meio do Departamento de Segurança Doméstica. Os representantes republicanos, por outro lado, acusam o presidente de tentar sobrepujar o Legislativo e “reescrever as leis de imigração”, sem consulta a esse órgão.

De qualquer modo, o travamento das reformas concorre para se tornar uma das maiores derrotas domésticas da gestão Obama, ao lado da pauta do controle de armamentos, que voltou ao centro dos debates após o tiroteio na boate Pulse, em Orlando, e os episódios de violência racial em Dallas, no Texas. No caso da imigração, contabiliza-se que, se postas em prática, a expansão da DACA e a DAPA abrangeriam um total de 11 milhões de imigrantes irregulares. A proposta também traria ganhos econômicos, uma vez que a maior parte da força de trabalho estadunidense é, atualmente, imigrante, o que fez com que as medidas encontrassem apoio, inclusive, entre alguns setores empresariais. A ala conservadora, entretanto, vai de encontro a essa perspectiva, bradando manifestações anti-imigratórias, sobre a suposta sobrecarga dos gastos públicos e o aumento do desemprego, perante a intensificação da imigração.

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A despeito dos programas lançados, todavia, vale a menção ao fato de que Obama não pode ser considerado um fomentador de políticas de “portas abertas”. Ao contrário, o presidente superou a marca de alguns de seus antecessores, sendo responsável por mais de dois milhões de deportações, até a metade de seu segundo mandato. Além disso, promoveu a extensão dos sistemas de controle fronteiriços e vigilância doméstica, ampliando as funções do Departamento de Segurança Doméstica e renovando medidas como o Ato Patriota, ambos herdados da Guerra Global ao Terror, de George W. Bush. Consolida-se, portanto, a perigosa percepção de que a vulnerabilidade das fronteiras reduz a distinção entre ameaças externas e domésticas.

Entre os presidenciáveis, a notícia do bloqueio da Suprema Corte ressoou como esperado: Hillary Clinton, que defende a criação de um Ministério de imigração, lamentou o ocorrido, fazendo eco ao pronunciamento oficial da presidência, e Donald Trump, defensor ferrenho dos muros, proclamou, em uma de suas redes sociais, que “a Corte bloqueou uma das ações mais inconstitucionais da presidência.” As opiniões dos menores taxas de aprovação são reflexo de uma opinião pública igualmente dividida e aparentemente cada vez mais descrente de seu sistema político. Segundo os dados de uma pesquisa da Gallup de julho de 2015, apesar do crescimento da projeção de Donald Trump, com seus polêmicos discursos anti-imigratórios, apenas 7% dos norte-americanos viam a imigração como uma prioridade. Curiosamente, segundo essa mesma pesquisa, na “aparente falta de um problema dominante”, a imigração e, mais especificamente, a imigração ilegal acabavam sendo citadas como temas sensíveis pela maioria, junto com a economia, a insatisfação com o governo e as relações raciais. Embora não necessariamente no topo da lista de preocupações, portanto, a imigração possui espaço considerável no imaginário popular.

Isso não significa dizer, contudo, que as intensas demonstrações de rejeição e ódio à figura do imigrante sejam menos alarmantes, ou fruto da suposta irracionalidade de uma nação politicamente enfadada e socialmente fragmentada. Torna-se claro, mesmo sem adentrar a debates mais amplos sobre o conceito de racionalidade, que o ódio, sobretudo quando meticulosamente articulado, pode ser e é profundamente racional. Trumps e Bolsonaros não se criam no vácuo, afinal. No caso norte americano, assim como no brasileiro, o ódio é real, e tem contribuído, inclusive para ressuscitar figuras históricas como a Ku Klux Klan que, agora parece se rearticular em certos nichos, não só em torno da violência racial, mas também e, principalmente, da imigração. Embora extremo, tal quadro não parece absurdo para uma realidade política que criminaliza os estrangeiros, classificando-os em pejorativas categorias de “legais” ou “ilegais”, ou ainda na desqualificadora alcunha de “terrorista”. De fato, o ódio que é capaz de produzir categorias, não pode ser irracional.

Para a administração Obama, por sua vez, o bloqueio na Corte contribui para reforçar a imagem de um presidente que, embora popular e carismático, não parece ter conseguido corresponder a todas as expectativas de mudança e transformação que recaíam sobre seus ombros, em 2009. Na prática, fosse por vontade própria, ou por limites impostos pela conjuntura política, o democrata acabou dando continuidade a muitos dos elementos com os quais havia se proposto a romper, inicialmente. Em se tratando da imigração, de acordo com as promessas da presidência, apesar da suspensão das expansões, o governo continuaria a trabalhar com os programas anteriores e, aqueles que poderiam ser beneficiados pela reforma, não deverão se tornar alvos prioritários de deportações, a menos que cometam crimes. Os demais, porém, provavelmente não disporão da mesma sorte. Em mesma medida, o monitoramento de fronteiras e o “combate aos ilegais” devem permanecer, firmes e fortes, algo inclusive anunciado por Obama, no ato do lançamento das medidas executivas de 2014. Tratava-se de uma reforma do sistema vigente, e não de um convite à entrada de novos imigrantes. O aviso é claro, e continua sendo o mesmo desde sempre.