O Estado é uma pessoa? Talvez esta seja uma das perguntas mais contraditórias e um dos temas mais polêmicos da Teoria Política e das Relações Internacionais, ainda que não estejamos completamente conscientes disso.

Podemos fazer um exercício rápido e intuitivo para responder à pergunta: não, o Estado não é uma pessoa; nós, pessoas, é que somos pessoas! Sem querer entrar em polêmicas antropológicas sobre se realmente somos “indivíduos” ou “pessoas” – sim, este debate existe e não se pode ignorá-lo –, o fato é que, se o tentássemos, logo entraríamos num curto-circuito intelectual. Se abrirmos um jornal numa manhã qualquer: “Indonésia mostra destroços de avião”, “China limpa produtos químicos após explosão”, ou se nos atermos aos discursos cotidianos de líderes políticos: “O Estado Islâmico encarna o mal”, “O Brasil chora diante dos crimes hediondos cometidos por menores”, “A Rússia sabe o que quer e defende seus interesses estratégicos”, “O BRICS tem uma forma própria de pensar o mundo”, e assim sucessivamente, perceberemos o quão dependentes somos da personificação do Estado.

No dia-dia, discutimos e pensamos os eventos políticos mundiais em termos quase inteiramente metafóricos: dor, sofrimento, astúcia, medo, racionalidade, coragem, bem-estar e honra são qualidades que não raramente projetamos em “atores” que compõem o ambiente político das relações domésticas, transnacionais, internacionais e globais. Em tais metáforas, percebemos o Estado (e quaisquer outras instituições modernas significativas, subnacionais e supranacionais) como se fosse uma pessoa, que vive num território cercado de vizinhos, com certas disposições psicológicas e traços genéticos que nos inclinam a prever resultados e decisões políticas. Esses Estados têm amigos e inimigos, para tomar emprestada a definição clássica de Carl Schmitt sobre a essência do político, e há cerca de 200 deles errando pelo mundo, militarmente, economicamente e culturalmente. Aqui já adentramos no terreno pantanoso entre ser uma pessoa, do ponto de vista ontológico, e a noção de “como se fosse” uma pessoa, do ponto de vista da representação. Mas, para não perder a metáfora, ainda não provocamos o curto-circuito. Trata-se de uma questão central para imaginar não só os efeitos políticos das narrativas estadocêntricas, mas também a própria maneira de conceber a ação social (debate agente-estrutura). Nesse sentido, há implicações cruciais do ponto de vista metodológico para qualquer ciência social, principalmente para as Relações Internacionais, a ciência mais antropomórfica por definição.

Pensemos um pouco sobre o primeiro aspecto: o uso político de tais metáforas. O linguista George Lakoff realizou uma densa pesquisa sobre como metáforas corpóreas foram utilizadas para justificar a Guerra do Golfo, quando Saddam Husseim passou a ser representado como alguém intrinsecamente malvado e irracional: “Você simplesmente não discute com um demônio, nem negocia com ele. A lógica da metáfora demanda que Saddam Hussein seja irracional. Mas ele o era?”(1). Em discurso perante o Congresso norte-americano após a guerra, o ex-presidente Bush declarou: “o desafio recente não pode ter sido mais evidente: Saddam Hussein era o vilão; o Kuwait, a vítima”. Uma pesquisa semelhante foi levada a cabo por Francis Beer sobre os debates, no mesmo congresso, para definir a decisão de entrar na guerra ou não. Somos tentados a pensar, como qualquer ilusão liberal, que se trata do ambiente mais propício para um debate público, com exposição objetiva dos fatos, onde a democracia alcançaria o consenso através de um diálogo racional e onde o ser humano realizaria sua eterna perfectibilidade. Pelo contrário: “Se olhássemos um pouco mais longe, veríamos tipos muito específicos de corpos e partes corporais aparecendo muito vivamente no debate. Veríamos o profano e o demônio em detalhes. Veríamos o divino, o vicário de Deus na terra, no traje secular do presidente. Veríamos também o sagrado. A morte está ali, mas também o nascimento e o renascimento, a vida e a vida eterna. A estória da Guerra do Golfo, sob esta luz, talvez se assemelhe a uma peça de romance medieval”(2).

Ainda aqui, o exemplo talvez não nos cause tanto espanto ou revele nada de novo. O uso político de tais metáforas é de fato muito antigo, perpassando toda a História das Ideias Políticas, e está ligado ao campo da simbologia do Body Politick (corpo político). Em Platão, vemos a cidade-estado ideal representada como um  macro-anthropos, um homem (com todas as virtudes do filósofo-rei) em escala maior que representa a harmonia da polis grega. A própria ideia de democracia como forma de governo encontra suas raízes epistêmicas na técnica médica introduzida por Hipócrates, onde a noção de praxis é entendida como um percurso racional que tende à harmonia (saúde), um contrabalanceamento que previne uma força de sobrepor-se a outra (doença). Assim, temos a fórmula básica da democracia como a distribuição e reequilíbrio recíproco dos poderes (3). Na Filosofia Política árabe, Al-Farabi nos apresenta sua comunidade política funcionando analogamente a um organismo vivo, entrevendo as possíveis virtudes e os vícios da cidade (4). Pulando no tempo e no espaço, para tornar o argumento mais curto, essa forma de simbolização atravessa toda a Idade Média (João de Salisbury é um dos nomes mais notáveis), é revitalizada pelo pensamento político moderno, tanto no contratualismo quanto nas teorias democráticas, e sua estrutura básica permanece inalterada nos dias atuais, ainda que destituída de sua concepção mais sacralizada, tal como o fora concebida na comunidade eclesiástica Thomas Hobbes em seu grande Leviatã: “daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa” (5).

Metáforas mecanicistas e organicistas tiveram um papel indispensável na consolidação do Estado moderno, e, em sua origem, a geopolítica nasceu emprestando analogias orgânicas com traços evolutivos e racistas para justificar um “espaço vital” – de Ratzel a Kjellen e de Mackinder a Haushofer. Desnecessário lembrar que a realização mais extrema desse body politick  ocorreu na Alemanha nazista, com a imagem mítica do Fuhrerprinzip, no qual Hitler encarnava o espírito do povo ariano, encarregado de redimi-lo da humilhação e de reconduzir a Alemanha ao “Império de mil anos” na Terra. O próprio Carl Schmitt, que dificulta qualquer rotulação simplista, define a democracia em termos de identidade étnica: a identificação espontânea de uma população com um líder que se coloca acima de qualquer lei: o “soberano” por excelência que tem o poder de definir o estado de exceção num ordenamento jurídico (6).

Temos, portanto, uma ideia geral sobre um tipo de ideologia sempre presente na história política quando o assunto é a unidade (ordem) na diversidade (caos); em última instância, um recurso de poder facilmente manipulável que pode levar ao caso extremo do sacrifício de um membro da comunidade política em nome da segurança, da aniquilação ou saída forçada de um “inimigo interno” que perturba a ordem (pensemos no caso da atual crise humanitária vivida por imigrantes e refugiados e a forma como são representados na mídia e no discurso político como patologias) e da legitimação de formas específicas de violência. É claro, tais representações não levam necessariamente a uma lógica totalitária, podem bem indicar caminhos e soluções para temas que julgamos progressistas do ponto de vista político, mas nossa preocupação aqui é sempre com o caso extremo, isto é, sempre com a real possibilidade do conflito e da exclusão. Estas representações também podem variar no conteúdo, o body politick  sendo a mais predominante delas. Em todo caso, há sempre uma função pré-ordenada da sociedade e de seus membros, suas instituições e seus líderes políticos, projetados em termos de racionalidade, vias sanguíneas, membros, cabeça, sentimentos, etc. É como se seguissem o rumo natural das coisas, como se estas unidades políticas simbolizadas tivessem uma existência independente da linguagem e do modo como a concebemos. Ainda que representadas como um “corpo biológico e psicológico”, ganham precedência e primazia sobre quem lhes confere sentido – os próprios indivíduos corporais que lhe dão “vida”, à sua própria imagem e semelhança.

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Mas o que diferencia toda essa antologia política da forma como nós concebemos o Estado atualmente, ou, para sermos mais específicos, como a disciplina das Relações Internacionais o concebe? O que distingue exatamente a noção de ator ou de entidade estatal de um deus temível e todo-poderoso? Eu afirmaria que, do ponto de vista da representação, nada. Da mesma forma como o Deus cristão é invisível e vale-se da personificação para ser concebido por seus fiéis (lembremos da tese de Feuerbach de que o cristianismo é essencialmente antropomórfico), o Estado se faz “visível” através da personificação. Não se trata de uma dúvida sobre a existência ou não do Estado. Ambos, Deus e Estado são, do ponto de vista da teologia política, uma questão de crença e de fé.

Que não estejamos equivocados: o Estado existe: há pessoas falando em seu nome, há violência sendo empregada em seu nome, bandeiras hasteadas em seu nome, pessoas morrendo por sua causa. Da mesma forma como, durante a Idade Média, o Império Romano e a Igreja representavam Deus na Terra e podiam declarar guerra justa em Seu nome. Mas o Estado, entretanto, enquanto tal, enquanto essência, enquanto “pessoa”, não existe. Existe apenas na representação e na legitimação conferida às instituições que agem em seu nome, e no monopólio de poder em torno do qual é disputado: processos históricos de longa data e nunca inteiramente acabados e definidos. A questão de um Estado-pessoa com disposições intrínsecas, capaz de agir racionalmente, de fazer guerra ou de cooperar, não pode se referir a algo “real”. Como Deus, o Estado é puramente uma questão de crença, uma abstração (caso contrário, devemos repensar o propósito de uma ciência social empírica e a função da análise). Ao menos, eu nunca vi nenhum Estado nem nunca vi um Mercado, uma Nação, um Partido ou uma Religião errando a esmo pelo mundo. Aqui, a distância entre “ser e “como se fosse” se torna mais ambígua e problemática. Podemos estar convictos da existência transcendente do Estado, de que cumpre uma finalidade na Terra, de que o Estado brasileiro deve ocupar um assento no Conselho de Segurança. Isto, no entanto, não faz com que o Estado saia por aí agindo sozinho. Depende do significado que os atores dão à sua própria ação social, e o Estado aqui é um valor significativo. O Estado, para uma elite acadêmica, pode ser aquele envolvido em processos de transformação da ordem internacional, na democratização dos espaços de decisão internacional. Por outro lado, do ponto de vista dos marginalizados, de quem mora numa favela, por exemplo, este mesmo Estado pode ser a verdadeira causa de insegurança e sofrimento.

Vejamos no que consiste a personificação. David Campbell a considera como uma “persistente economia discursiva que fornece os recursos para representar a diferença como perigo ao social, este entendido como um corpo (naturalmente saudável)” (7). Pensar a identidade leva naturalmente a uma definição de fronteiras. Se dissermos “isto é ser brasileiro”, também deixamos implícitos seus limites, sua alteridade, ou seja, ser “brasileiro” tem mais sentido quando pensamos que não somos argentinos, uruguaios ou peruanos. Identidades não são substâncias físicas, são narrativas imaginárias, da mesma forma como Benedict Anderson define a nação como uma comunidade imaginada (8). Quando pensamos coisas que não têm essência física, o corpo humano aparece como uma boa forma de interpretação, porque reduz a ambiguidade e a incerteza de coisas que simplesmente não podemos ver, mas em cujo simbolismo se acredita e se legitima politicamente. “Nós antropomorfizamos porque apostar que o mundo é do tipo humano é uma boa aposta”, diz Stuart Gunthrie (9).

Mas a personificação não é uma atitude politicamente irrelevante. Pertence à representação e, como tal, é um véu que encobre a realidade, no sentido que Marx faz uso da crítica do Estado bonapartista em seu 18 de Brumário. A metáfora do Estado-como-pessoa sempre esconde alguma coisa, diz Lakoff. Lutas de classe, interesses de grupos e corporações, elites no poder, conflitos e disputas sociais, relações de desigualdade, lobby, enfim, a sociedade pulsante de contradições por um lado e o poder político instituído e igualmente contraditório, por outro. A personificação é um símbolo que aglutina todo o emaranhado da complexidade que são o Estado e a sociedade e os reduz a uma unidade monolítica, compreensível nos termos de quem faz uso de seu símbolo: evidentemente, a elite política. De acordo com Mika Luoma-aho, o uso mais importante do antropomorfismo no discurso político “é a localização e reificação da autoridade do Estado-como-humano sobre os verdadeiros seres humanos pertencendo ou acreditando nestes Estados” (10).

Quão longe vão as Relações Internacionais, enquanto disciplina, na utilização do recurso da personificação do Estado? Pode parecer uma prática ingênua e, no final do dia, “sabemos o que queremos dizer” quando tratamos o Estado como se fosse uma pessoa. Mas será que é realmente assim? Não é possível que estejamos tão penetrados nesta prática e neste tipo específico de representação que nem nos damos conta das implicações e do significado que isso tem do ponto de vista prático e filosófico? As Relações Internacionais, longe de uma disciplina acadêmica desinteressada que simplesmente reflete seu objeto de estudo, não seria um tipo de prática que reforça o Estado-pessoa e naturaliza a legitimidade do seu modo específico de violência? Não está faltando um tempero de sociologia histórica em nossas análises?

Precisamos tentar responder a esta pergunta, mostrando a centralidade da personificação nas Relações Internacionais a partir de uma genealogia histórica. Em 2004, um fórum de debates reuniu importantes teóricos da área, dentre os quais Alexander Wendt, Iver Neuman, Colin Wight e Patrick T. Jackson. O tema do fórum foi justamente a pergunta: “O Estado é uma pessoa”? Por mais surpreendente que possa parecer, Wendt se mostrou insatisfeito com o modo “como se fosse ” de personificar o Estado, mais característico das teorias estadocêntricas mainstream. Ele quer mais: não apenas considerar o Estado como um ator intencional, mas um organismo que tem consciência! Que implicações metodológicas isso traz para a teoria política e das relações internacionais? Devemos evitar tal representação, e, se sim, que alternativas temos?


Referências

  1. Lakoff, George. Metaphor and War: The Metaphor System Used to Justify War in the Gulf. Peace Research, Vol. 23, No. 2/3, pp. 25-32, 1991.
  2. Beer, Francis apud Mika Luoma-aho. God and International Relations: Christian theology and world politics. Nova York: Bloomsbury, 2013.
  3. Galimberti, Umberto. Rastros do Sagrado: cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Editora Paulus, 2003.
  4. Alfarabi. The Political writings. Selected Alphorisms and Other Texts. Ithaca: Cornell University Press, 2001.
  5. Hobbes, Thomas. Leviatã. Ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesisástica e Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  6. Schmitt, Carl. O Conceito do Político. Petrópolis: Vozes, 1992.
  7. Campbell, David. Writings Security. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992.
  8. Anderson, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  9. Gunthrie, Stewart. Faces in the Cloud: a new theory of religion. Nova York: Oxford University Press, 1995.
  10. Luoma-aho, Mika. God and International Relations, cit.