O redesenho do mapa geopolítico sul-americano com as mudanças governamentais no Paraguai (2012-13), na Argentina (2015) e mais recentemente no Brasil, tem apontado para mudanças no caráter da integração regional no que se refere ao Mercosul, ao mesmo tempo em que parece colocar à prova a pretensa capacidade de liderança brasileira frente aos vizinhos membros do Bloco.

A informação de que o Ministro Interino das Relações Exteriores do Brasil, José Serra, teria tentado “comprar” o apoio uruguaio contra a presidência pro tempore da Venezuela no Bloco, colocou em xeque as relações bilaterais entre Brasil e Uruguai, que rebateu em tom enfático a acusação afirmando respeitar as normas institucionais que regem o Mercosul. O chanceler uruguaio Rodolfo Nin Novoa afirmou a deputados de seu país que o ministro brasileiro teria oferecido acordos comerciais com o Uruguai caso se colocasse contra a presidência da Venezuela no bloco. O desentendimento entre os dois países, que poderia levar a uma crise, foi rapidamente contornado, com o Uruguai afirmando em nota ter havido um mal-entendido.

A resposta da Venezuela, por meio da chanceler Delcy Rodríguez, foi que Serra e o governo brasileiro interino são “golpistas” e as críticas dele seriam “insolentes”. Para ela, “Serra se soma à conjura da direita internacional contra a Venezuela e viola princípios básicos que regem as relações internacionais”. Com inabilidade incomum e muita retórica bolivariana, a chanceler venezuelana ajudou a piorar o quadro. Independentemente disso, o impasse sobre a presidência temporária se arrasta.

Embora as relações do Brasil com a Venezuela tenham esfriado no governo Dilma, com Serra a relação bilateral se agravou, com as acusações de que a Venezuela estaria desrespeitando os Direitos Humanos e a Cláusula Democrática do Protocolo de Ashuaia assinado entre os membros, que prevê a suspensão do país que internamente desrespeitar a cláusula democrática. O Paraguai já admitiu claramente se opor à presidência venezuelana no bloco e a Argentina demonstra disposição para seguir idêntico caminho.

A entrada da Venezuela no Mercosul ocorreu em 2012, graças à suspensão do Paraguai. À época, os demais países do bloco, liderados pelo Brasil, entenderam que o processo de impeachment no país guarani não fora legítimo devido ao pouco tempo (48h) de defesa do então presidente eleito Fernando Lugo. Já que os votos para a entrada de um novo Estado no bloco devem ser consensuais entre os países partícipes, com a suspensão do Paraguai pode-se inserir a Venezuela ao bloco, com a aceitação de Brasil, Argentina e Uruguai. Em 2013, após a vitória eleitoral de Cartes, eleito democraticamente, revalidou-se a volta do Paraguai ao Mercosul, que reconheceu a entrada da Venezuela ao bloco. O principal argumento paraguaio até antes disso em torno da oposição à entrada da Venezuela pautava-se na acusação de que Caracas desrespeitava princípios básicos da democracia, principalmente à defesa dos Direitos humanos.

As diversas evidências acerca dos problemas dos déficits democráticos na Venezuela e a mudança de governo nos países membros do Mercosul trouxeram um posicionamento mais duro quanto à participação da Venezuela no bloco. Internamente, as disputas eleitorais na Argentina deram fim ao kirchnerismo; no Brasil, o processo de impeachment retirou a presidente Dilma do governo ao menos temporariamente. O Ministro das Relações Exteriores, José Serra, anuncia uma revolução na condução da Política Externa Brasileira, sobretudo, sob a égide da denominada “despartidarização”. No Paraguai, com a vitória de Cartes, o país já sinalizava positivamente à políticas mais liberais. Em resumo: o desgaste dos governos anteriores e a emergência de governos contrários à tais governos demonstraram uma mudança de posição quanto a permanência da Venezuela no Mercosul. Contudo, tal posição parece refletir muito mais um cenário interno de polarização política em torno de cada país, do que simplesmente a pura indignação quanto ao que de fato ocorre na Venezuela.

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O esgotamento do próprio chavismo, com a morte de Chaves e a chegada de Maduro, agravou a situação venezuelana. Ao implementar políticas cada vez mais austeras e sofrer com o agravamento da situação econômica deteriorada, além de criar diversas polêmicas quanto ao respeito aos Direitos Humanos, o governo venezuelano acabou por criar um clima de perda significativa de legitimidade do país entre os países do Mercosul.

Do ponto de vista político, os processos internos de polarização política de cada país podem explicar, por um lado, a recusa à permanência venezuelana no bloco – ainda que cada caso possua e deva ser analisado de acordo com suas especificidades –, já que é a partir da negação das políticas anteriores que os novos governos irão se afirmar. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o agravamento da situação venezuelana contribui ou converge para tais posicionamentos, o próprio aprofundamento da integração regional via Mercosul perde a cada dia mais fôlego devido ao interesse dos governos de ampliar as relações bilaterais e abrir o Mercosul a Acordos Comerciais com países de fora.

No caso do Brasil, conforme já discutido em outra ocasião, a “nova política externa” apresentada por Serra quando de sua posse, em maio deste ano, deverá romper sobretudo com a chamada “partidarização” que, sob intermédio dos governos petistas, teria posto os interesses partidários acima do interesse nacional. Assim, a ideia de “despartidarizar” o Itamaraty é apresentada sob um discurso de interesse nacional e neutralidade política. Uma das principais críticas recebidas por Serra é que, ao assim afirmar, reitera o mesmo problema, já que os princípios de PEB apresentados por ele convergem para o ideário peessedebista de política externa contido em seus Programas de Governo. Traduzindo a assertiva para o plano prático, em um momento de mudanças internas com uma guinada crítica em relação aos governos anteriores, o aprofundamento da integração regional torna-se cada vez mais distante.

Contudo, é pertinente observar que a heterogeneidade entre os países pertencentes ao Mercosul, devido a processos históricos distintos de constituição, além de equívocos teóricos de suas respectivas esquerdas – que muito menos do que atentar para a viabilidade real de um projeto efetivo de integração regional, parecem defender a integração de maneira idealizada e nostálgica buscando em ideais bolivarianos referência para soluções do presente –, pode explicar a falta de consistência no processo de integração, que por natureza já é extremamente complexo e lento.

Algumas reflexões podem ser extraídas. A primeira tem a ver com a estabilidade da própria integração regional, que se vê ameaçada por cenários políticos internos cada vez mais polarizados e diante dos quais a defesa da integração parece ter se deslocado para a esquerda – ou para o que se convencionou chamar de esquerda. A mudança de governos mostra que os embates políticos internos repercutem diretamente nos processos de integração, demonstrando a vulnerabilidade dos países-membros às mudanças políticas domésticas. Além disso, os últimos acontecimentos põem à prova a suposta liderança brasileira na região, sugerindo que ela depende de mudanças no cenário regional, como a que está em curso, graças à qual o Brasil parece encabeçar a proposta acerca da saída da Venezuela, que tem ganhado força com os vizinhos. Por fim, se é verdadeira a premissa de que as mudanças político-ideológicas internas afetam a dinâmica externa de integração regional, o que parece ser o caso, é fundamental que se analise a agenda político-partidária de cada país para que assim se verifique em que sentido se redesenha o mapa geopolítico sul-americano.