Os discursos proferidos anualmente pelas autoridades na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) fazem parte do calendário da política exterior, mobilizando a mídia e analistas interessados. Além de uma solenidade importante, têm sido aproveitados pela diplomacia brasileira para sublinhar posições e apontar caminhos para o público interno, já que o alcance internacional é limitado mesmo para países com maior protagonismo global.

Historicamente, sua função têm sido muito mais de um retrato para o futuro do que uma análise objetiva da conjuntura. Seu conteúdo se notabilizou em guardar pistas e enviar mensagens para investigadores e interessados vindouros sobre as concepções de mundo e desejos de uma época. Além da reflexão sobre os rumos da política externa, eles guardam um pouco da memória das relações internacionais de maneira geral, preservando frações do espírito do tempo que foi proferido.

Eventualmente o destaque recebido é alvo de críticas pelo suposto engrandecimento de uma exposição considerada meramente protocolar, pouco aderente aos desígnios da realidade. Ainda assim, a ocasião é revestida de simbolismos que não podem ser desprezados, especialmente pela oportunidade de se observar a narrativa diplomática em todos os seus contornos, em um pronunciamento pensado com cuidado para representar as aspirações da chancelaria e do governo em questão.

A estreia de Michel Temer como chefe de Estado e José Serra como titular da pasta das Relações Exteriores se insere nessa longa tradição (discurso completo). A oportunidade foi marcada pela possibilidade do novo governo se posicionar frente aos principais assuntos mundiais, permitindo ao novo mandatário explicitar as narrativas que pretende encampar. Não se furtou de endereçar parte fundamental do conteúdo a sociedade brasileira, reforçando seu compromisso com a agenda de responsabilidade fiscal, social e recuperação do crescimento econômico, que tem sido temas sensíveis e de grande controvérsia pelo conteúdo de algumas das reformas propostas. Temer apresentou também a sua versão do reformismo em política externa, viés onipresente nas apresentações de chefes de Estado brasileiros na Assembleia Geral das últimas décadas, além de indicar as observações do seu governo acerca do ordenamento mundial. Sobressaiu, no entanto, a ênfase em algumas temáticas, ao mesmo tempo que posicionamentos ocultos e ausências acabaram por expressar facetas da diplomacia do novo governo.

Inicialmente em sua descrição do sistema internacional, o apresentou como um espaço de incertezas e instabilidades, que vem experimentando um déficit de ordem, em que a realidade teria sobrepujado os instrumentos de governança, resultando assim em focos de tesão que não dariam sinais de dissipar-se. O mundo careceria, portanto, de normas para novas e velhas ameaças, incluindo as de natureza econômica, para que assim pudessem ser revertidas. Nacionalismos, protecionismo, terrorismo, a crise dos refugiados, entre outros, seriam consequências da paralisia política e daquilo que denominou de ‘assimetrias da globalização’. A diplomacia brasileira nesse contexto seria um eixo de ação para lidar com essa realidade assimétrica – uma “diplomacia equilibrada, mas firme”; “sóbria, mas determinada” – guiada “com pés no chão, mas com sede de mudança”.

Recuperando a imagem da ‘globalização assimétrica’, famosa expressão empregada por Fernando Henrique Cardoso na ocasião da abertura da Assembleia Geral de 2001, Temer parece tentar demonstrar que a sua política externa, ao menos do plano simbólico, começa no ponto onde FHC havia terminado. Amparando sua argumentação em diagnóstico similar e na necessidade de mudança, ainda que sem rompimento com as bases do status quo, sua versão das ‘assimetrias da globalização’ é eminentemente menos reformista, não ousando propor mecanismos como a “taxa Tobin” ou a renovação das instituições de Bretton Woods, como fez FHC naquela oportunidade, se limitando ao tema constante de reestruturação do Conselho de Segurança.

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No mais, perpassou por matérias diversas durante todo o discurso, seguindo a tradição de apresentar o país como a pátria da diversidade e do diálogo, além de defensora do multilateralismo e da diplomacia. Definiu na tríade “paz, desenvolvimento sustentável e respeito aos direitos humanos” os valores máximos e o sentido de orientação no plano internacional. Defendeu também o ‘desenvolvimento’ como imperativo, criando pontes dessa temática com as do desenvolvimento sustentável e do protecionismo que trava as negociações multilaterais de comércio.

Temer também procurou responder aos críticos de sua ascensão ao cargo de titular da presidência, já que discordâncias acerca da sua legitimidade tem sido o principal eixo dos movimentos ‘Fora Temer’. No mais, uma parcela dos governos da região ainda se coloca explicitamente contra o resultado do processo de impedimento de Dilma Rousseff, o que resultou em diversas delegações se retirando durante o discurso ou outras que só entraram quando já havia terminado a fala. Atendendo a esse imperativo, o governo e sua chancelaria procuraram responder a essas desconfianças. Invocando um “compromisso inegociável com a democracia”, Temer procurou dar uma áurea de normalidade institucional e constitucional, flertando com um tom triunfalista ao defender a tese de que o Brasil teria dado um exemplo ao mundo por meio da pujança de sua democracia e do seu Estado de direito – aplicado inclusive aos mais poderosos e como instrumento de depuração do sistema político.

A lembrança de que coexistem hoje na América Latina “governos de diferentes inclinações políticas” não foi inocente. Mesmo se referindo a essa situação como sendo “natural e salutar”, afirmou que o respeito mútuo anda em paralelo à convergência “em função de objetivos básicos, como o crescimento econômico, os direitos humanos, os avanços sociais, a segurança e a liberdade de nossos cidadãos”. Ao enumerar essas dimensões, Temer apresenta precondições aos vizinhos para uma sociabilização virtuosa, em meio à crise na presidência do Mercosul e episódios condenáveis na retórica usada pelo seu ministro José Serra. Em outro momento ressaltou a temática de perseguições políticas, recado que parece ter como destino especial Caracas, centro das principais iniciativas condenatórias do governo brasileiro sobre direitos humanos. A ênfase em temáticas positivas usando a Argentina como interlocutora denota o eixo de preferências, assinalando afinidades frente aos velados desafetos.

A ênfase em uma diplomacia que perseguirá “seus interesses sem abrir mão de seus princípios” chama atenção, especialmente pela ausência dos princípios consagrados da autodeterminação e não-interferência. Além disso, outras ausências como menções aos BRICS, ao G-20, ao IBAS e a UNASUL, entre outros, surpreenderam negativamente por negligenciar espaços de inserção internacional até então prioritários. Ao invés de contemplar essas instâncias, Temer usou de maneira ostensiva o tempo de discurso para enumerar ameaças e violações aos direitos humanos no sistema internacional, referendando uma dimensão de ‘não-indiferença’ até então artificial. O completo esquecimento dessas temáticas preocupa, especialmente quando somado às hipotéticas consequências práticas dos princípios anunciados.