Na terça-feira 25 de setembro de 2018 Michel Temer discursou pela última vez como Presidente na tradicional abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Usualmente muito discutida e reproduzida, a fala presidencial dessa vez quase passou despercebida para a maioria da imprensa e da comunidade acadêmica, imersas nos meandros do tortuoso processo eleitoral brasileiro. A reduzida representatividade também foi favorecida pela frágil posição de Temer no cenário político doméstico, consumido por enorme impopularidade.

Aproveitando da ocasião para reproduzir uma espécie de carta despedida de sua gestão, o discurso foi no geral marcado pela defesa de alicerces tradicionais da diplomacia brasileira, sem deixar de incluir temáticas alçadas ao primeiro plano de importância nos últimos anos, como a questão da abertura comercial e do combate aos crimes transnacionais. Temer buscou nortear o discurso para a defesa daquilo que denominou como “integridade da ordem internacional”, que segundo sua argumentação estaria sofrendo pressões de caráter isolacionista, de velhas intolerâncias e de recaídas unilaterais cada vez mais constantes.

Sua retórica buscou desconstruir essas esferas, argumentando que o isolamento poderia até “dar uma falsa sensação de segurança” e o protecionismo “soar sedutor”, no entanto, apenas com abertura e integração seria possível alcançar “a concórdia, o crescimento, o progresso”. No discurso, enfatizou que seu governo procurou responder ao isolacionismo crescente por meio de uma “política externa universalista”, aprofundando mecanismos como o Mercosul, aproximando-se de países da Aliança do Pacífico e revitalizando ou iniciando negociações comerciais “com todas as regiões” e continentes.

Temer deu destaque individual para as negociações com diversos blocos e países, de modo a reforçar a supramencionada inserção universalista, com destaque para União Europeia, Associação Europeia de Livre Comércio, Canadá, Coreia do Sul, Singapura, Líbano, Marrocos, Tunísia. Aproveitou para reforçar a participação brasileira em foros de cooperação, destacando o G20, o BRICS, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa.

Ao atacar o tema da intolerância, procurou salientar o papel brasileiro de busca por diálogo e solidariedade, honrando e buscando tornar realidade aquilo que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aproveitou também para homenagear Sergio Vieira de Melo, quinze anos após a sua morte em Bagdá. Além disso, procurou destacar o papel do Brasil no contexto latino-americano, segundo ele trabalhando “na preservação da democracia e dos direitos humanos”.

Um dos grandes destaques do discurso foi a tentativa de justificar a ação do governo brasileiro na questão dos refugiados. Mencionou a participação brasileira na conclusão do Pacto Global sobre Migração, assim como as responsabilidades adjacentes àquele dispositivo, e apresentou seu plano de ação e assistência aos venezuelanos que ingressaram em território brasileiro. Temer aproveitou para expor sua política de construção de abrigos, interiorização para outras regiões do país, emissão de documentos e oferta de serviços públicos como escolas, vacinação e estruturas de saúde. Tudo isso em tom de êxito.

Deixando de lado as dificuldades e pressões existentes na região fronteiriça, que culminaram com diversos episódios lamentáveis nos últimos meses, Temer buscou demonstrar orgulho daquilo que denominou como “tradição de acolhimento”, realizado por “um povo forjado na diversidade”, além da instituição da nova Lei de Migração. Ademais, aproveitou para pontuar que uma solução definitiva para a questão só seria possível quando a Venezuela reencontrasse “o caminho da democracia e do desenvolvimento”, atacando publicamente o governo de Nicolás Maduro, imputando a ele um caráter ditatorial em concordância com as diretrizes adotadas pelo Itamaraty desde que assumiu o poder.

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Mantendo a tradição, Temer defendeu o multilateralismo na solução das questões internacionais. Apoiou a histórica posição brasileira da solução de dois Estados para o conflito entre Israel e Palestina, além de mencionar diretamente o respaldo brasileiro no encerramento do conflito na Síria e apoiar soluções diplomáticas que promovam a desnuclearização e a paz na Península Coreana. Defendeu também o fortalecimento da ONU, argumentando sobre a necessidade de torná-la mais legítima e eficaz, especialmente por meio de reformas que representassem o mundo contemporâneo – em clara alusão à requisição brasileira de um assento no Conselho de Segurança. Ademais, pontuou a necessidade de manter e aprofundar tratados ligados à proibição de armas nucleares, ao sistema multilateral comercial e à agenda do desenvolvimento sustentável.

Temer também usou da retórica de defesa da diplomacia e do multilateralismo para abordar questões de segurança coletiva, já que segundo ele, são instrumentos decisivos para alcançar resultados nesse campo. Apontou que para vencer o terrorismo e os crimes transnacionais (colocados no mesmo plano), seria necessário criar e aprofundar mecanismos capazes de combater práticas internacionalizadas, como o tráfico de pessoas, o tráfico de armas, o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro e a exploração sexual. Isto posto, buscou demonstrar o encaminhado da diplomacia brasileira nesse contexto, comunicando sobre as tentativas nesse âmbito no Cone Sul e na intensificação da cooperação com os países vizinhos.

Aproveitando a ocasião de seu último discurso como mandatário, Michel Temer defendeu a vitalidade da democracia brasileira, apresentada como “vibrante e lastreada em instituições sólidas”. Contrapondo-se às narrativas contrárias, reafirmou as determinações da carta constitucional de 1988 e o compromisso com a soberania popular e a alternância de poder, prometendo transmitir ao seu sucessor “as funções presidenciais com a tranquilidade do dever cumprido”.

Aparentemente preocupado em justificar-se e garantir seu legado, advogou a favor da tese de que em seu governo “dissemos não ao populismo e vencemos a pior recessão de nossa História”, melhorando as contas públicas, voltando a crescer, gerar emprego, além de salvar programas sociais ameaçados pelo descontrole dos gastos, devolvendo “o Brasil ao trilho do desenvolvimento”. Para Temer, o país que entregará ao seu sucessor é melhor do que aquele que recebeu, deixando bases consistentes para a construção de “um Brasil mais próspero e mais justo.”.

Michel Temer tentou empregar o discurso como instrumento no embate acerca das narrativas sobre seu governo. De maneira tácita defendeu o impeachment de Dilma Rousseff, rebateu a tese do golpe e argumentou favoravelmente à reforma trabalhista, à contenção dos gastos públicos e à sua gestão fiscal. A melhoria econômica e o ambiente de estabilidade descritos pelo mandatário divergem da realidade, em um país a pouco consumido por uma greve geral e corroído por índices de desemprego expressivos, sem conseguir recuperar o crescimento econômico. Além disso, sua defesa da democracia está descolada da realidade, em um momento de aumento das clivagens, retorno da participação política dos militares e intenso ativismo político do Judiciário, que somados ao seu antipopular e funesto programa ‘Ponte para o Futuro’, deram o tom melancólico da despedida.