Novo acordo reafirmou os EUA e o Canadá como polos tecnológicos

O Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), que substitui o Nafta e entrou em vigor em 1º de julho, não é tema na disputa eleitoral nos Estados Unidos. Depois da retórica agressiva no início do mandato, Trump parece satisfeito e abandonou as ameaças ao vizinho. Imposto com o argumento de reduzir o déficit comercial com o México, o USMCA quer conter as exportações chinesas para a América do Norte e proteger o emprego nas fábricas de automóveis americanas.

O USMCA foi negociado no final do governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018), com apoio imediato do então presidente eleito, Andrés Manuel López Obrador, e é agora sua principal aposta para a recuperação da economia mexicana, às voltas com a previsão de queda de 8% do PIB em 2020.

O acordo proíbe as partes de firmar acordos de livre comércio com países que não sejam considerados economias de mercado. Embora não tenha sido proposto formalmente, um acordo de livre comércio entre a China e o México era cogitado como uma via de diversificação das relações econômicas externas mexicanas.

O USMCA busca elevar o grau de integração das cadeias regionais de valor e conter a participação crescente de produtos chineses, 18% das importações do México em 2019, contra apenas 0,5% em 1993. Parte significativa destas importações deve ser de bens intermediários, 77% do total das importações do México em 2019. O país agrega valor a estes produtos e os revende para os EUA, destino de 80% de suas exportações.

A participação crescente dos produtos chineses nas importações de bens intermediários da região aprofundou a desintegração industrial na América do Norte. As medidas de Trump e as expectativas com o USMCA tiveram um efeito notável no curto prazo: a participação da China nas importações dos EUA caiu de 21,5% em 2017 para 18,1% em 2019, enquanto as importações totais aumentaram de US$ 2,3 trilhões para US$ 2,5 trilhões. A menor participação da China abriu espaço para outros países. A fatia do México subiu de 13,2% do total adquirido pelos EUA em 2017 para 14% em 2019. Em fevereiro de 2020 o México se tornou o principal parceiro comercial dos EUA, um feito histórico.

Além de outras medidas normativas, o essencial do USMCA são as novas diretrizes para a indústria automobilística dos EUA. Até 2023, para que o automóvel seja comercializado sem taxas o valor de conteúdo regional (VCR) passa de 62,5% do custo líquido para 75%, nas partes essenciais; 70%, nas principais; e 65%, nas complementares. Se este nível não for atingido, as vendas estarão sujeitas às medidas tarifárias aplicadas a produtos de fora do bloco. O alvo é claro: reduzir importações da China em prol da produção nos EUA. É pouco provável que a medida seja suficiente para realocar a produção. Mesmo com os incentivos tarifários, os custos nos Estados Unidos e no Canadá são altos.

 

Outra medida do USMCA é a criação da cláusula de valor de conteúdo laboral (VCL): 40% do valor agregado dos veículos leves deve ser produzido por trabalhadores que ganhem ao menos US$ 16 por hora, condição atendida apenas por EUA e Canadá. À primeira vista, a exportação sem tarifas de automóveis produzidos no México estaria inviabilizada – mesmo com a política de aumento de salários de López Obrador, o salário mínimo por hora no setor manufatureiro mexicano é US$ 2,4.

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Contudo, a fórmula de cálculo parece admitir procedimentos mais flexíveis, além de um período de transição para as companhias que solicitarem. Indica-se que o cumprimento dos 40% será: no mínimo 25% dos altos salários devem estar ligados a gastos com materiais e manufaturas; não mais de 10% dos salários, em gastos com tecnologia; e não mais de 5% em gastos na produção de motores, transmissão e baterias na região.

O VCL tende a reforçar a concentração de atividades de inovação e tecnologia nos EUA e no Canadá, frustrando o objetivo do México de gerar empregos qualificados pela atração de atividades de maior conteúdo tecnológico. O resultado pode ser o reforço da posição do México como produtor de bens de média tecnologia, agravando a “maquilização” de segmentos cada vez mais amplos da estrutura industrial mexicana. O setor de autopeças seria um exemplo deste processo.

Neste contexto, o USMCA reafirmou os EUA e o Canadá como polos tecnológicos e o México como plataforma de exportação de bens manufaturados trabalho-intensivos, produzidos nas maquiladoras e integrados às cadeias regionais de valor. Os procedimentos mais flexíveis para o cálculo do VCL favorecem as maquiladoras, mas aumentam os custos sociais para o governo de centro-esquerda de López Obrador, que prometeu a ‘quarta transformação’ do país, depois da Independência, de 1821, da Reforma, de 1858-1861, e da Revolução, de 1910.

O conceito de maquiladora designa a combinação de mão de obra barata, precarização do trabalho e baixa integração com outros setores da economia nacional. O governo do México classifica como maquiladoras as empresas cadastradas no programa Indústria Manufatureira, Maquiladora e de Serviços de Exportação (IMMEX), que outorga benefícios tarifários para empresas ligadas a produção, transformação ou reparo para exportação

O setor de maquiladoras é muito heterogêneo. As de terceira geração, com maior grau de inovação, formam pólos industriais em sinergia com a produção nos Estados Unidos (clusters). É o caso de Baja California, especializada na produção de eletrônicos para as empresas de tecnologia da Califórnia. Em 2019, 10% das exportações mexicanas partiram deste estado. A concentração das maquiladoras no norte do México contribui para as assimetrias regionais no país, inclusive como um vetor que promove a migração interna.


* Este artigo foi originalmente publicado pelo jornal Valor Econômico

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”


Marcela Franzoni é mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP). Fez estágio de pesquisa na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e na Universidade da Califórnia, San Diego (UCSD). Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Carlos Eduardo Carvalho é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC).