A emergência sanitária e quarentena em decorrência do surto de COVID-19 se aproxima do seu quinto mês na Bolívia, com um total de 83.361 pessoas contaminadas, entre as quais 25.390 foram recuperadas, e 3.320 faleceram[1]. Entre janeiro e julho de 2020, foram registrados 48.668 focos de calor, número 8,3% maior em relação ao mesmo período em 2019 – ano em que foram registrados mais 5,3 milhões de hectares de terras queimadas em todo país.

Neste contexto, a presidenta interina Jeanine Áñez (MDS) concedeu autorização formal para que se desenvolva – mediante um procedimento abreviado – todo processo de análise e estudos para a liberação de uso no agronegócio de quatro variedades de cada uma das sementes de milho, cana-de-açúcar, algodão, trigo e soja geneticamente modificadas em seus diferentes eventos, com vistas ao atendimento do mercado interno e à comercialização externa.

Dita autorização foi realizada por meio da promulgação do Decreto Supremo nº 4232 de 7 de maio de 2020, reservando excepcionalmente ao Comitê Nacional de Biossegurança a função de aprovar os procedimentos abreviados – inicialmente em um prazo de 10 dias, estendido para 40 em 14 de maio, mediante novo Decreto (nº 4238), que modifica o anterior. De acordo com o documento, o Comitê deve levar em consideração as ações e medidas adotadas pelos países vizinhos em relação aos produtos agrícolas e alimentícios produzidos por técnicas de engenharia genética, ficando o Ministério de Meio Ambiente e Água, em coordenação com o Ministério de Desenvolvimento Rural e Terras, com a responsabilidade de realizar posteriormente as avaliações necessárias.

A medida se inscreve no bojo das iniciativas para a reativação econômica do país, particularmente o desenvolvimento rural, justificada a sua pertinência e necessidade no marco da política de segurança alimentar, de gestão de riscos e o Plano de Emergência de 2020 de atenção de desastres e/ou emergências, em razão do surto de COVID-19. Até o momento, permitia-se na Bolívia apenas a produção agrícola de sementes, processamento e comercialização interna e externa de Soja RR geneticamente modificada resistente ao herbicida glifosato (evento 40-3-2) e seus derivados, cuja aprovação ocorreu em 2005 durante o governo do presidente Carlos Mesa (FRI). A ratificação do texto ficou a cargo de seu sucessor, o presidente interino Eduardo Rodriguez Veltze, através do Decreto Supremo nº 28225.

Durante a gestão do presidente Evo Morales (MAS), em 2011, foi promulgada a Lei 144 de Revolução Produtiva Comunitária Agropecuária, pela qual se proíbe a introdução de sementes geneticamente modificadas de espécies das quais o país é centro de origem – como o milho, do qual existem 77 variedades. Apesar disso, a lei mantém a legalidade dos cultivos transgênicos existentes, abrindo precedentes para a introdução de outros organismos geneticamente modificados. Em abril de 2019, no último ano de seu governo, decretou-se que, de maneira excepcional, ficava o Conselho Nacional de Biossegurança autorizado a estabelecer procedimentos abreviados de avaliação de Soja evento HB4 e Soja evento Intacta, destinados à produção de Aditivos de Origem Vegetal – Biodiesel.

Dois Decretos, muitas reações

A decisão presidencial favorável à promoção dos cultivos transgênicos na Bolívia foi acompanhada de forte reação por parte de diversos grupos de interesse, em um momento em que as condições sanitárias gerais limitam as possibilidades de manifestação e mobilização social. Ela acirra um contexto de crise política instalado no país pelo menos desde a renúncia forçada do então presidente Evo Morales, em novembro de 2019 – qualificada por muitos como um golpe de Estado –, e a postergação pela terceira vez das eleições presidenciais, previstas atualmente para 18 de outubro.

A favor da decisão manifestaram-se diversas entidades agrícolas empresariais do chamado oriente boliviano, bloco que reúne os departamentos de Pando, Beni, Tarija e, particularmente, Santa Cruz, que, em 2008, por meio do conflito da “Media Luna”, sustentou a oposição ao Estado central unitário sob o governo do presidente Evo Morales, com base na polarização “oriente-ocidente”. Elas alegam, de modo geral, que a aprovação de sementes transgênicas em suas distintas variedades trará ganhos de produtividade e, por conseguinte, de renda ao setor, favorecendo assim a retomada econômica do país no pós-pandemia. Assinala-se, ademais, que apesar da atual proibição de sementes transgênicas à exceção da soja RR, a Bolívia importa milho transgênico principalmente da Argentina pelo menos desde 2006, havendo inclusive o cultivo clandestino da semente em partes do Chaco, na fronteira com a Argentina, assim como em zonas do departamento de Santa Cruz.

Entre as entidades que apoiam a decisão governamental, destacam-se a Associação de Produtores de Oleaginosas e Trigo (ANAPO), a Câmara Agropecuária do Oriente (CAO), a Federação de Pecuaristas de Santa Cruz (FEGASACRUZ), o Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE) e a Associação de Provedores de Insumos Agropecuários (APIA) – que reúne as sucursais bolivianas de empresas de biotecnologia dedicadas à produção de sementes geneticamente modificadas, tais como Monsanto Bolívia, Syngenta Sucursal Bolívia, Bayer Boliviana, Basf Bolívia, Dow AgroScience Bolívia e Agroterra, filial de Dupont Pioneer.

Diversos setores da sociedade se posicionaram contrariamente aos decretos, reivindicando sua revogação sob o argumento de que são inconstitucionais. Segundo indicam, esses textos vão de encontro a um conjunto de instrumentos legais previamente estabelecidos no país, especialmente a Constituição Política do Estado, que defende, em seu artigo 255, inciso 8, segurança e soberania alimentar para toda população, proibindo a importação, a produção e a comercialização de organismos geneticamente modificados, assim como elementos tóxicos que causem dano à saúde e ao meio ambiente. Argumenta-se, ainda, que as medidas colocam em risco a diversidade genética das sementes nativas, a saúde, a segurança e a soberania alimentar da população, abrindo caminho para a expansão da fronteira agrícola sobre áreas protegidas e territórios indígenas.

Um agravante em torno da questão é o curto prazo definido para a realização do procedimento abreviado, tarefa a cargo do Comitê Nacional de Biossegurança conformado basicamente por políticos, em detrimento de cientistas e especialistas no tema. Nesta direção, manifestaram-se o Movimento Agroecológico da Bolívia (MAB), a Associação de Organizações de Produtores Ecológicos da Bolívia (Aopeb), a Coordenação Nacional de Territórios Indígenas Originários Camponeses e Áreas Protegidas (Cantiocap), o Foro Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Fobomade), o Centro de Informação e Documentação Bolívia (CEDIB), entre outros.

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Em observação ao Decreto presidencial de 7 de maio, a Defensoría del Pueblo (equivalente ao Ministério Público brasileiro) emitiu um comunicado, apontando sua inconstitucionalidade e o modo como contraria o direito à segurança alimentar da população boliviana, além de recomendar que a Assembleia Legislativa Plurinacional revise a matéria. O Comitê Nacional de Defesa da Democracia (Conade) apresentou ao governo estudos científicos que atestam os efeitos nocivos do glifosato (herbicida utilizado para a produção com sementes transgênicas) sobre a população e para a diversidade alimentar, bem como os efeitos ambientais negativos que provoca sobre a água, a terra e o ar. Ainda, em 13 de julho, foi apresentada ao Tribunal Departamental de Justiça de Santa Cruz uma Ação Popular movida por ativistas, especialistas e povos indígenas da Bolívia contra a presidenta Jeanine Áñez e seu gabinete de ministros, em razão da promulgação dos Decretos Supremos nº 4232 e 4238 de 2020.

O complexo sojeiro de Santa Cruz e o agroextrativismo na Bolívia

Segundo dados publicados pelo Instituto Boliviano de Comércio Exterior, em 2019 o departamento de Santa Cruz foi o maior exportador da Bolívia, participando de 25% do total das exportações do país, destacadamente pelas vendas de gás natural e de produtos do complexo oleaginoso. Houve crescimento de 6% no volume das Exportações Não Tradicionais (ENT), dentre as quais o principal expoente é a soja e seus derivados. Apesar disso, registra-se um “efeito preço” negativo no setor, responsável pela queda de 6% no valor dessas exportações. Tal fato converge para o quadro de deficits externos consecutivos acumulados pelo país desde 2015, revelando dificuldades estruturais no setor, aprofundadas por fatores externos e internos da atual conjuntura.

A solução para o problema estrutural dos déficits externos da economia boliviana, na perspectiva do Instituto (que representa sete instituições ligadas ao comércio exterior do país, principalmente de Santa Cruz, mas também dos departamentos de La Paz e Cochabamba), passa pela promoção das Exportações Não Tradicionais, pela abertura e consolidação de novos mercados através da sinergia público-privada, bem como pela melhoria da “competitividade sistêmica” do país. Conforme o Instituto, uma das tarefas imprescindíveis, nesta direção, reside precisamente na permissão para o pleno uso da biotecnologia no agronegócio, motivo pelo qual tem apoiado os recentes Decretos Supremos que favorecem à liberação de novos cultivos transgênicos.

Nestes termos, o estabelecimento de procedimentos abreviados para a autorização de novas variedades de sementes transgênicas na Bolívia beneficia diretamente o complexo sojeiro do departamento de Santa Cruz, que há pelo menos 15 anos disputou sem muito sucesso a superação de entraves à matéria junto às gestões do presidente Evo Morales. Segundo se aponta, a atuação organizada do agronegócio cruceño foi uma das forças que influenciaram a renúncia presidencial de 2019 – contando, inclusive, com apoio de empresários brasileiros que atuam no ramo da soja no país. Entretanto, em que pesem as discordâncias existentes entre as gestões do Movimiento Al Socialismo e o complexo sojeiro ligado ao ramo agroindustrial das terras baixas, algumas concessões foram feitas, como aquelas já mencionadas acima (no bojo da Lei 144 de Revolução Produtiva Comunitária Agropecuária e o Decreto Supremo nº 3874) e a expansão da fronteira agrícola em 250 mil hectares adicionais para o cultivo de soja transgênica voltada para a produção de biocombustível.

Somado a isso, tem-se que, desde os anos 1990, a superfície cultivada no departamento de Santa Cruz tem crescido significativamente. Dados sobre a expansão da fronteira agrícola e mudanças no uso do solo revelam que a superfície agrícola cultivada por soja em hectares no departamento passou de 36%, em 1990, para 52%, do total da área cultivada no departamento em 2009. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as atividades humanas com maior impacto sobre a biodiversidade são a mudança no uso do solo e o desmatamento. E, no caso específico da América Latina, um dos principais fatores para a mudança no uso do solo é justamente a expansão do cultivo de soja.

Assim, existe o argumento de que os últimos anos, inclusive nas gestões do Movimiento Al Socialismo, foram marcados na Bolívia por uma espécie de “transformismo” e pela consolidação do capitalismo agrário; que se caminhou para a implementação de um modelo de desenvolvimento extrativista de Estado, no bojo do qual o complexo sojeiro foi convertido em um dos seus pilares, junto com os minerais e os hidrocarbonetos. Este modelo de desenvolvimento potencializou dinâmicas produtivas que dão corpo ao que se tem chamado de extrativismo agrário, identificável a partir de quatro características inter-relacionadas, quais sejam a) produção em larga escala e destinada à exportação com pouco, ou nenhum, processamento; b) concentração da cadeia de valor e desarticulação setorial; c) alta intensidade de degradação ambiental; e d) deterioração das oportunidades e/ou condições de trabalho.

Nesta perspectiva, enquanto modelo produtivo, o extrativismo agrário penetrou as formas de capitalização da agricultura nas terras baixas do país nas últimas décadas, transformando a paisagem rural, modificando as formas sociais de produção, de propriedade e de poder, e colocando em ameaça o acesso (presente e futuro) a terras e a recursos naturais por parte das maiorias rurais, particularmente compostas por pequenas(os) proprietárias(os) e populações indígenas. Tal dinâmica tende a ser intensificada no presente.

Na impossibilidade de se obter a liberação comercial para novos eventos e cultivos transgênicos por meio de ritos propriamente democráticos, ao longo de mais de uma década de tentativas, busca-se consegui-la atualmente em um Estado que segue em situação de emergência sanitária, cujo governo (interino) se exerce por meio de Decretos, à revelia da própria Constituição Política do Estado.


[1]     Dados de 5 de agosto de 2020.

* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”