A Europa há décadas tornou-se um destino visado por imigrantes, tanto para os que procuram trabalho e melhores condições, quanto para os que não têm outra opção para salvar suas vidas.

Os países do continente lidam com os fluxos migratórios de acordo com suas demandas e seus interesses. Quando convém, abrem as fronteiras e incentivam a entrada da mão de obra necessária. Quando não lhes é mais pertinente, dificultam o ingresso e a permanência regular, criminalizam as entradas irregulares e investem milhões de euros em controle fronteiriço.

Em períodos de recessão econômica, justificativa utilizada por muitos países por sua omissão na acolhida de imigrantes, o orçamento da agência de controle fronteiriço (Frontex) e do Sistema de Vigilância de Fronteiras (Eurosur) recebe significativo aumento. Em 2015, o Frontex recebeu 17,5%, passando de 97 milhões de euros para 114 milhões de euros. A maior parte desse dinheiro vai para operações conjuntas nas fronteiras marítimas. Já a EUROSUR recebeu um aumento de 5 milhões e 300 mil euros (veja aqui). A Agência para Direitos Fundamentais, por sua vez, teve seu orçamento decrescido em 1% com relação a 2014, de acordo com o documento Statement of revenue and expenditure de 2015 (veja aqui). Neste âmbito, a Operação Mare Nostrum, estruturada para ações de resgate no mar, foi substituída em novembro de 2014 pela Operação Triton, cujo objetivo primordial é o controle das fronteiras.

Assim, o aumento nos orçamentos das atividades supracitadas serve para reflexões acerca das respostas prioritárias da União Europeia e de seus membros diante da crise humanitária que se instaura na região. O apreço pelo aumento da vigilância nas regiões de fronteira não significa o cumprimento de normativas internacionais que prezam pela proteção dos direitos humanos, como a Convenção Internacional sobre Procura e Resgate Marítimo e a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre a lei do Mar, que tratam do compromisso que os Estados devem ter de prestar assistência, independentemente de nacionalidade ou condição migratória.

A proteção dos direitos humanos dos imigrantes, que arriscam diariamente suas vidas atravessando o Mediterrâneo, não é a prioridade e isso é notório quando lidamos com o fato de que mais de 2 mil pessoas morreram na travessia do Mediterrâneo, apenas no ano de 2015. A União Europeia ignora a concretização de um de seus fundamentos basilares: a proteção do regime internacional de direitos humanos.

Até o final do mês de julho, 224 mil imigrantes havia atravessado o Mediterrâneo e chegado à Europa, mais de 98 mil foram rumo à Itália e 124 mil com destino à Grécia. Milhares de imigrantes em busca do Eldorado europeu, que veem nesses países a chance de adentrar na Europa do estado de bem-estar social, da proteção dos direitos humanos e da democracia. Parte considerável dos imigrantes deseja ir para outros países da Europa, mas a dificuldade de obtenção do visto força a opção por vias irregulares perigosas, nas quais funciona um lucrativo mercado de tráfico humano. Na busca pela sobrevivência e por finalmente alcançar condições mínimas de dignidade, muito imigrantes embarcam em jornadas arriscadas e se submetem à ação de contrabandistas.

França, Inglaterra e especialmente Alemanha são os principais destinos visados, quer seja em razão da língua, da presença de parentes ou da expectativa de uma acolhida melhor, com mais chances de obtenção de empregos. Em Calais, região de fronteira entre Inglaterra e França, a crise humanitária está insustentável. O centro de acolhida da cidade chamado Sangatte, aberto em 1999, foi fechado em 2002, pelo então ministro do interior, Nicolas Sarkozy. Em seu lugar, campos temporários são constantemente construídos pelos imigrantes que não param de chegar. Mesmo com o desmantelamento das barracas por meio de ações policiais, outros campos são estruturados. Afinal, se as causas não são combatidas, a situação não muda.

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Atualmente, The jungle (“a selva”) é um dos campos mais emblemáticos da região: abriga cerca de 3 mil imigrantes de diversos países, tais como Afeganistão, Síria, Sudão e Eritreia. Destes, cerca de 1% chegou pelo Mediterrâneo em 2015. O campo fica localizado em um antigo depósito de lixo sobre uma área de dunas, o que acarreta consequências problemáticas para os moradores, tais como doenças respiratórias e escabiose, que se tornaram comuns, em razão das péssimas condições.

Muitos dos que se encontram na França desejam partir para a Inglaterra em busca de melhores condições de vida. Como a entrada no território britânico é rigidamente controlada, as tentativas de atravessar a fronteira ocorrem geralmente pela noite, escondendo-se em veículos que circulam pelo Eurotunel. Diante das 37 mil tentativas de travessia interrompidas, o próprio Eurotunel tem investido cada vez mais no fortalecimento da segurança, com a compra de equipamentos (câmeras, infravermelhos), a contratação de mais guardas e a construção de cercas, o que não necessariamente tem impedido outras ações semelhantes.

Na Alemanha, além da retórica de “não podemos acolher a miséria do mundo, instituiu-se uma lista de “países seguros”, nos quais não haveria motivos para que pessoas solicitassem o estatuto de refugiados. Em tese, isso abriria caminho mais rápido para os imigrantes provenientes de países que estão sem dúvida em guerra, como a Síria ou o Afeganistão. Essa categorização é bastante enviesada e insere nesse grupo imigrantes provenientes do leste europeu e dos Bálcãs. A utilização dessa lista serviria para diferenciar os que realmente necessitam de ajuda por sofrerem perseguição ou serem vítimas de conflitos, dos migrantes econômicos. Todavia, ignora-se a situação de grupos étnicos como os roma e os sinti, que sofrem histórica discriminação e perseguição no continente europeu.

Essa medida não implica tampouco o aumento de respostas positivas para os solicitantes de refúgio fora desse eixo de “países seguros”. Até o primeiro semestre do ano corrente (2015), apenas 0,5% dos pedidos de refúgio haviam sido aprovados na Alemanha.

Diante do exposto, é urgente a concretização de uma política efetiva de burden-sharing, em que os países compartilhem o ônus da ajuda humanitária aos imigrantes. Até agora o que se tem visto é a profunda contradição entre os valores basilares da constituição do bloco europeu e uma realidade de violência e omissão.

Em meio a isso, a deturpação de valores de uma sociedade que – acometida pelo medo da invasão de estrangeiros – encontra cada vez mais espaço nos debates públicos e nas ações governamentais. Os direitos humanos tornam-se cada vez mais voltados a “humanos direitos” e isso exclui os que violam a soberania estatal. Como se fosse possível nas atuais circunstâncias não o fazer, quando enquadrados na categoria dos indesejáveis.