Dá para entender a acidez com que o premiê britânico David Cameron recebeu a chegada de Jeremy Corbyn à liderança do Partido Trabalhista. Corbyn foi eleito no último dia 12 de setembro com 60% dos votos dos militantes trabalhistas, uma apoteose que de certo modo põe fim ao que restava da “era Blair”. É um antigo militante de esquerda, 66 anos, deputado há mais de 30 anos,  anticapitalista e intransigentemente contrário às políticas de austeridade. Um outsider dentro do Labour, o que deu tempero especial à sua escolha.

Cameron certamente exagerou quando disse que “o Labour Party é agora uma ameaça à segurança nacional, à nossa segurança econômica e à segurança de suas famílias”. Quis agitar e marcar posição da maneira tradicional, ou seja, fomentando o medo na população. Mas não se trata de anticomunismo clássico, ao estilo Bush, banhado em “ódio de classe” e repulsa doutrinária. Por trás da frase, a preocupação é calculista: e se os Trabalhistas crescerem novamente, agora impulsionados por uma concepção de esquerda que põe em xeque os equilíbrios internos da Grã-Bretanha e a correlação de forças no interior da União Europeia? Cameron quis dizer que teme não a invasão do país por forças comunistas, mas o programa de ação dos trabalhistas, baseado numa recuperação do Welfare State e, portanto, em mais gastos sociais e direitos.

Não foi por acaso que a Europa como um todo se agitou com a vitória de Corbyn. Primeiro, porque ela trouxe consigo uma expectativa de renascimento da esquerda, desta vez não a partir de propostas ainda embrionárias, como o Syriza grego e o Podemos espanhol, mas a partir de um grande partido, o Labour, com suas tradições e seu peso sindical. Segundo, porque se um trabalhismo de esquerda proliferar haverá a volta da regulação dos mercados e da recuperação do Welfare State, com o descarte das políticas de ajuste e austeridade. Terceiro, porque neste caso a UE e o euro serão abalados.

A missão de Corbyn não é fácil, nem se mostra factível no curto ou médio prazo. Por um lado, ela esbarra nas próprias circunstâncias do capitalismo global, em sua natureza eminentemente financeirizada, transnacional e mercantil, que faz com que o sistema escape de controles políticos. Por outro lado, as chances de uma guinada à esquerda não dependem de operações “nacionais”, concentradas em um único país ou mesmo em um único partido. O renascimento da esquerda, hoje, passa por iniciativas que sejam também elas “transnacionais”. Se os trabalhistas não conseguirem se compor com outros partidos europeus – ao menos no interior do universo social-democrata –, sua força tenderá a ser reduzida. Ao menos no que diz respeito à SPD alemã e ao PS francês, tal composição não parece provável. E o Labour, em particular, não está em um momento de grande unidade interna.

Trata-se, pois, de uma meta complexa, ligada à superação da atual crise da esquerda na Europa: de seu fracasso seja no sentido de vencer eleições e compor governos, seja sobretudo no sentido de apresentar alternativas viáveis aos modelos e problemas que se associam à reestruturação empreendida pelo capitalismo global: a concentração da riqueza, a volta da desigualdade e da pobreza, a robotização e digitalização do trabalho, o envelhecimento populacional, o papel do Estado, as mudanças climáticas, as migrações em massa, o terrorismo. A grande tradição social-democrata não tem se mostrado à altura dos tempos, e os comunistas já não mais existem como força política organizada.

No universo da esquerda, há muita divisão entre alas, opiniões e propostas de intervenção, o que a enfraquece como agente político. Não existem partidos com potência suficiente para unificar as diversas forças anticapitalistas tanto em torno de um conjunto de valores claramente proclamados, que indiquem uma ideia de sociedade e de convivência humana, quanto em torno de um programa de governo factível e compreensível para os cidadãos. O Partido da Esquerda Européia, criado em 2004, reúne vários grupos e partidos de perfil comunista e socialista, mas tem atuação fortemente concentrada no Parlamento Europeu. Poderá evidentemente crescer e ganhar musculatura, impulsionado pelos avanços eleitorais de seus integrantes, como o Syriza grego, por exemplo. Há também o Grupo de Esquerda Unitária Europeia-GUE. São diversas siglas, iniciativas e personalidades e a unidade de ação está em permanente construção, o que não ajuda.

É sintomático que experiências como Syriza e Podemos gerem tantas expectativas: elas buscam traduzir uma expectativa de reinvenção que habita hoje a mente da esquerda mundial, particularmente da europeia. Os novos partidos anunciam novos modelos de organização, outras narrativas e formas de falar com a população, e vem procurando apresentar propostas concretas de questionamento ou negação das políticas de austeridade. Até agora, não conseguiram avançar. Syriza foi derrotado em julho, no braço de ferro que tentou disputar com a União Europeia. No próximo domingo, haverá eleições na Grécia e Tsipras poderá sair fortalecido para tentar compor novo governo. Suas dificuldades, porém, continuarão as mesmas. Na Espanha, o Podemos ainda não foi posto de fato à prova em escala nacional. Em toda a Europa, há muita movimentação e a ideia de um partido que unifique as esquerdas permanece ativa.

No mesmo dia em Corbyn foi escolhido para liderar os trabalhistas britânicos, em 12 de setembro, quatro protagonistas da atual esquerda europeia apresentaram uma proposta para que se viabilize um “Plano B na Europa”. O eurodeputado francês Jean-Luc Mélenchon e os ex-ministros das Finanças da Grécia, Alemanha e Itália – Yanis Varoufakis, Oskar Lafontaine e Stefano Fassina, respetivamente -, com a companhia da líder do parlamento grego Zoe Konstantopoulou, se associaram em uma conferência para lançar um brado de alerta e propor algo que possa servir de referência ao renascimento da esquerda. O evento ocorreu durante a Fête de L’Humanité – festa promovida tradicionalmente pelo jornal do Partido Comunista Francês.

O documento por eles apresentado parte da constatação de que Alexis Tsipras sofreu um verdadeiro golpe de Estado desencadeado pela UE e facilitado pelo fato de que a esquerda não possuía um plano alternativo para sair da crise. A ameaça feita por Angela Merkel de fazer com a Grécia saísse do Euro acabou por funcionar como uma chantagem. “A Europa oficial não podia tolerar que um povo prostrado por suas políticas de austeridade autodestrutivas ousasse eleger um governo determinado a dizer ‘Não!’”.

Fazer a crítica radical da União Europeia e do modo como o euro tem sido administrado passou a ser, assim, para a parte mais radical da esquerda, uma estratégia de sobrevivência e de retomada. “O euro se tornou um instrumento de domínio econômico e político por parte de uma oligarquia europeia submissa ao governo alemão, bem satisfeita em deixar para a chanceler Merkel o trabalho sujo que os demais governos não são capazes de fazer. Esta Europa gera somente violência nos países e entre eles: desemprego em massa, brutal dumping social e insultos contra a periferia europeia, atribuídos à liderança alemã mas na realidade repetidos como papagaio por todas as elites europeias, inclusive as da própria periferia. Deste modo, a União Europeia tornou-se portadora de um ethos de extrema-direita e meio para tornar impossível na Europa o controle democrático da produção e da distribuição”.

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Os signatários do documento declaram-se determinados a romper com “esta Europa”, agindo nos diversos países e na Europa por “uma total renegociação dos tratados europeus, sustentando uma campanha de desobediência civil contra as escolhas europeias arbitrárias e suas regras irracionais”.

O documento não descarta que se tenha de negociar para frear o prosseguimento de “políticas que sacrificam os interesses da maioria em benefício de uma exígua minoria”. Admitem que “se o euro não puder ser democratizado, e se insistirem em usá-lo para estrangular os povos”, então não haverá outra hipótese que não seja a de resistir. Propõem-se a guardar os poderes europeus nos olhos e dizer: “sigam em frente, vossas ameaças não nos assustam. Encontaremos um modo de assegurar que os europeus tenham um sistema monetário que jogue a favor deles, e não contra”. Foi mais ou menos o que Tsipras fez depois de ter sido derrotado em julho: assinou um acordo, recuou para ganhar tempo e voltar quem sabe com mais força.

Será neste cenário que o Labour procurará caminhar para a esquerda. Fará tal giro sob o comando de um político de esquerda à moda antiga, refratário a formas novas de ação política, ascético e avesso a exposições midiáticas. Corbyn é pacifista intransigente, vegetariano, discreto, abstêmio, cultiva suas próprias verduras e não usa automóvel. Anti-norteamericano e contrário a qualquer forma de privatização, defende um Estado forte e que não poupe em gastos sociais. Parece um estranho no mundo dos atuais políticos profissionais. Além disso, é republicano, embora diga que luta mais pela justiça social do que contra a monarquia. Encaixa-se no perfil dos que costumam ser chamados de euro-céticos. Mas é tido por todos como um tipo simpático, que não tem inimigos, defende suas causas e seus desacordos sem palavras agressivas ou excessiva veemência.

Seus adversários costumam criticá-lo como sendo “um político analógico numa era digital”, expressão que David Cameron costumava usar para se opor ao ex-lider trabalhista Gordon Brown, que na visão dele estava “completamente imerso no passado”. Durante os debates internos do Partido Trabalhista, Tony Blair declarou que Corbyn representa uma espécie de “realidade política paralela”, que só apresentaria propostas irrealistas, retóricas e não factíveis.

Denis MacShane, ex-ministro de Blair, em uma entrevista, fez uma análise mais serena. Vê Corbyn como um trabalhista que não representa propriamente uma reviravolta, já que se inscreve na tradição trabalhista de adotar posições mais radicais quando na oposição. Antes da era Blair, não foram poucas as lideranças que seguiram plataformas antiamericanas e anticapitalistas, como Michael Foot e Neil Kinnock. É nesta linhagem que se situa Corbyn.

Para MacShane, depois de ter perdido as eleições de 2010, o Labour “não entendeu realmente que estava na oposição. Enfrentou vários problemas durante os últimos cinco anos. Lutou para encontrar sua identidade com Ed Miliband (líder dos trabalhistas entre 2010 a 2015) mas ele, mesmo buscando marcar suas diferenças com Tony Blair e Gordon Brown, ainda foi um deles. Não foi capaz de se posicionar contra a curiosa coalizão entre conservadores e liberais democratas que estava no poder. Com alguém como Jeremy Corbyn, à esquerda da esquerda, que nunca deixou de se opor, podemos dizer que o partido entra hoje efetivamente a oposição. No entanto, é muito difícil saber onde o Labour estará daqui a dois anos”.

O partido está dividido, mas tenderá a assimilar a nova liderança. Seus parlamentares, que são pragmáticos e mais “centristas”, buscarão se compor de algum modo com Corbyn, ao menos no curto e médio prazo. O próprio Corbyn estará interessado em ser aceito pelo partido. Não parece alguém com vocação para ser uma personalidade dominante. Ele talvez mude certas tradições e deixe de comparecer a alguns eventos rituais com a Rainha. Terá de transitar desta posição para a administração real dos interesses partidários. Como disse MacShane, “não se sabe se conseguirá impor uma maneira totalmente diferente de fazer política que acabe por encontrar ressonância. Corbyn prega aos fiéis da esquerda da esquerda, mas é pouco provável que possa se tornar um verdadeiro chefe que reúna e conquiste o eleitorado”.

Corbyn e seu entusiasta exército de seguidores devem saber disso. A partir de agora, porão à prova um estilo tradicional de fazer política, que tem raízes profundas no trabalhismo inglês mas que não se sabe se funcionará numa sociedade sempre mais midiática e digital. Em seu discurso de posse, Corbyn procurou sugerir que sua aversão midiática irá se combinar com a recuperação do sentido da palavra socialismo, produzindo uma liga que garantirá o sucesso de sua liderança. Sua meta será unir o partido e levá-lo de volta ao movimento social. Para o que algumas palavras-chave de seu vocabulário — como socialismo, paz, igualdade, meio ambiente, solidariedade e desprendimento — poderão ajudar muito.

Os parlamentares trabalhistas estão majoritariamente contra ele. Mas sua vitória foi categórica e retumbante, impulsionada por milhares de voluntários e uma enorme participação da juventude, o que lhe dá condições de construir uma liderança que unifique e projete o partido.

Seja como for, o jogo está em aberto. A ascensão de Corbyn ao cargo de líder do Partido Trabalhista altera a dinâmica política na Grã-Bretanha e cria um novo fato para que os britânicos voltem a analisar sua relação com a Comunidade Europeia. Se isso repercutirá de modo efetivo no conjunto da Europa e representará de fato um momento de renascimento da esquerda, é algo que terá de ser visto nos próximos meses.