De todas as datas cívicas brasileiras, o Sete de Setembro figura como sendo a mais importante. Embalados pelo hoje onipresente hino nas comemorações oficiais, que brada a escolha entre a liberdade da pátria ou a morte em nome do Brasil independente, somos convidados a relembrar o desfecho de uma conjunção de fatores que determinaram a escolha feita pelas elites coloniais de romper com os laços metropolitanos, em busca de uma trajetória apartada de Portugal.

As circunstâncias da emancipação política da extensa porção lusa na América não podem ser imputadas a um fenômeno isolado: a conquista napoleônica da Península Ibérica resultou no desmantelamento dos laços de lealdade da estrutura colonial, precipitando o desmonte dos impérios americanos; primeiro na porção espanhola, e posteriormente na portuguesa. Apesar do contexto semelhante, o processo brasileiro foi marcado pela originalidade de contar com a presença de um príncipe da antiga metrópole disposto a tomar a liderança do movimento que culminaria com a independência, fato que possibilitou que o Imperador se posicionasse como símbolo máximo de representação e coesão social durante a transição política.

O ciclo de mudanças já havia se iniciado desde a vinda da família real portuguesa, em 1808, acontecimento sem precedentes históricos. Assim que os exércitos napoleônicos adentraram em Portugal, o príncipe regente João fugiu para o Rio de Janeiro, levando consigo não somente a corte, mas toda a estrutura burocrática do governo lusitano. Além de arquivos, da Biblioteca Real e do tesouro público, acompanharam o príncipe aproximadamente quinze mil pessoas, entre funcionários, seus familiares e abastados da sede do Império. A elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal (1815), a criação de dispositivos institucionais próprios e a volta de D. João para Lisboa criaram a circunstância para que D. Pedro, na condição de príncipe regente, declarasse o Brasil independente e coroasse a si mesmo como Imperador da única monarquia dentre os novos países do continente.

A singularidade do processo brasileiro se revela nos fatos imediatos ao Sete de Setembro. Diferente dos vizinhos, especialmente os Estados formados no estuário do Rio da Prata, a transição contou com maior invariabilidade institucional e social, bem como com a manutenção da unidade territorial. A solução pela estabilidade propiciada pela legitimidade dinástica pouco alterou da estrutura social brasileira, conservando a escravidão e o latifúndio como as duas faces proeminentes do Brasil independente. A independência significou, àquela altura, um meio possível de garantir que fosse respeitada a ideologia do corpo dirigente brasileiro, sustentada por um liberalismo de matriz europeu – que influenciou na construção das instituições políticas e na organização da sociedade. Tal fato foi fundamental para a preservação do modelo econômico de pilar escravista, sustentando em última análise os interesses dos grupos ligados à lógica agroexportadora.

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Olhando em perspectiva e valorizando o encaminhamento da história, parece que a Independência é um verdadeiro mal de origem. Ainda que faça pouco sentido esse tipo de análise teleológica da formação do Estado brasileiro – exemplo factual disso foram os violentos embates políticos na Assembleia Constituinte que terminou por ser dissolvida à força pelo Imperador e substituída por um Conselho de Estado que redigiu a primeira constituição, em 1823 -, o caminho emancipatório incita no observador a percepção de um viés conservador, e por vezes, autoritário. No entanto, em que pesem as forças profundas que agiram no epicentro do movimento independentista e as elites que as municiavam, a Independência significou em última instância uma oportunidade histórica de substituir o velho arcabouço colonial por uma constelação de novas possibilidades.

Mesmo que o processo estivesse limitado por um sistema internacional dominado pelo poderio britânico e pelos imperativos livre-cambistas amparados na sua colossal força industrial, que estreitavam as possibilidades de desenvolvimento autônomo, parecem anacrônicas as teses que imputam um caráter eminentemente neocolonial ao status do novo Estado brasileiro, trocando simplesmente o controle rígido e arcaico de Lisboa por uma dominação econômica e mais sofisticada de Londres. A autonomia política significou uma possibilidade real de traçar novos projetos que visassem a uma independência completa, ou seja, sem ocupar posição subsidiária na estrutura de poder internacional.

O Grito do Ipiranga carrega, portanto, contradições próprias do seu tempo e do Brasil das primeiras décadas do século XIX. Mas também guarda elementos importantes de reflexão, inclusive pelas possibilidades criadas e nas outras que poderiam ter sido.