A agitação na Etiópia pode causar instabilidades no Chifre da África | Crédito: Eduardo Soteras / AFP via Getty Images

Foi muito bem construída no imaginário comum a associação da Etiópia à extrema pobreza, fome endêmica e conflitos sangrentos. De fato, a carestia da década de 1980, a guerra civil (1974–1991) e a guerra com a Eritréia (1998–2000) são acontecimentos da história etíope recente que contribuíram para essa imagem até os dias de hoje. Entretanto, o país passou por transformações profundas nos últimos 40 anos.

Os dados do Fundo Monetário Internacional revelam, por exemplo, que a renda per capita da população etíope (em poder de paridade de compra – ppp) era US$ 727,41 na década de 1980 e decresceu para US$ 653,23 em 2000, mas, em 2018, atingiu  US$ 2.102,76. Entre 2003 e 2018, o crescimento da renda foi de 3,4 vezes ou de 8,5% ao ano. Em termos demográficos, a Etiópia tinha, em 1950, uma população de 18,1 milhões de habitantes, que saltou para 87,7 milhões, em 2000 e, pela projeção média da ONU, terá 190,9 milhões em 2050. Em 2100, o país terá 250 milhões de habitantes. Estes dados, além da história e cultura milenares, levaram muitos estudiosos a chamar a Etiópia de “China da África”.

É importante salientar também que o país só atingiu esses números porque estava relativamente estável após o fim da guerra com a Eritreia. Dessa forma,  conseguiu se organizar e, mesmo com as suas dificuldades, crescer e se tornar referência no Chifre da África (porção noroeste do continente que inclui Sudão, Sudão do Sul, Etiópia, Eritreia, Somália, Djibouti, Quênia e Uganda). Em decorrência disso,  a capital do país, Adis Abeba, é a sede da União Africana e Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro Etíope, recebeu o Prêmio Nobel da Paz pela sua contribuição ao fim das guerras civil e com a Eritreia, em 2019.

O Chifre da África

Fonte: Intergovernmental Authority on Drought and Development (IGAD)

Ainda assim, em novembro de 2020, noticiou-se um ataque ao quartel general do Comando da Força de Defesa Nacional Etíope, ataque este organizado  pela Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF), um grupo político com braço armado, fundado em 1975 para lutar na guerra civil etíope. Como resposta, as Forças Armadas Etíopes lançaram uma série de bombardeios em Tigré, atingindo a região de Amhara e a Eritreia. É importante considerar que, apesar dos recentes ataques, as tensões entre o TPLF e o governo etíope estavam acirradas há algum tempo.

As regiões administrativas da Etiópia.

Fonte: Elaboração própria, com dados extraído do Banco Mundial

A guerra civil etíope e a crise de 2020

Para compreendermos o contexto recente, é necessário um breve retrospecto. A guerra civil etíope começou em 12 de setembro de 1974, quando um golpe derrubou Hailé Selassié (1916–1930; 1930–1974). Insatisfeitos com o governo e enfrentando grave crise, militares de média patente se organizaram e retiraram Selassié do poder, quando assumiu Mengistu Mariam (1974–1991). Posteriormente, esses grupos deflagraram uma série de conflitos internos devido a discordâncias estruturais entre os distintos braços armados (Guerrilhas de Ogaden, Tigray, Eritreia, Oromo, somali e Afar) e as Forças Armadas, sob controle de Mariam. Este foi um período de grave instabilidade na Etiópia, o que inclusive contribuiu para a independência da Eritreia, em 1991. No mesmo ano, Mengistu Mariam foi deposto pela Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE), de Meles Zenawi, que se consagrou como o primeiro primeiro-ministro do país, em 1995.

Após o fim da guerra civil, a Etiópia tornou-se um Estado de partido dominante, sob o regime da FDRPE e da presidência de Zenawi, até à sua morte em 2012. Hailemariam Dessalegn (2012–2018) assumiu e permaneceu no poder até 2018, quando renunciou ao cargo de primeiro-ministro e de presidente da coalizão devido aos protestos populares, que demandavam uma ampla reforma política e econômica no país. Em resposta ao requerimento popular, Abiy Ahmed foi eleito, em 2018, com uma plataforma política que buscou absorver o descontentamento popular e se tornou o primeiro-ministro etíope.

A TPLF fazia parte da coalizão até a sua recusa, em 2019, em se fundir com o Partido da Prosperidade — fundado por Abiy Ahmed, em substituição à FDRPE. Abiy havia fundado essa nova legenda com o objetivo de reformar o sistema político etíope, atendendo aos anseios da população de Adis Abeba, mas que, por consequência, acabou  retirando cargos bastante importantes do TPLF, considerado um partido muito expressivo em todo o país e quase unânime no Tigré.

As tensões entre o governo e a TPLF aumentaram nos meses que antecederam a intervenção militar do Tigré. O primeiro-ministro Abiy Ahmed acusou os membros do Partido TPLF no Governo Regional do Tigré de minar a sua autoridade. Por sua vez, as autoridades do Tigré viram a recusa em reconhecer as eleições de setembro de 2020 para o Parlamento do Tigré (que, juntamente com todas as eleições na Etiópia, tinham sido adiadas pelo governo federal e pelo conselho eleitoral até ao fim da pandemia da COVID-19 na Etiópia) como a razão para o deflagrar do conflito. O governo de Abiy Ahmed considerou as eleições de setembro no Tigré ilegais. O bom relacionamento entre Abiy Ahmed e o Presidente da Eritreia, Isaias Afwerki, que é mal visto em Tigré, também foi considerado como uma das causas para o aumento da tensão.

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No dia anterior ao alegado ataque da TPLF ao campo militar, o parlamento federal da Etiópia tinha sugerido classificar a TPLF como uma organização terrorista. Como a tensão aumentava paulatinamente, um general nomeado por Ahmed foi impedido pelo governo tigreano de assumir o seu posto militar.

No final de setembro de 2020, o TPLF declarou que o limite constitucional do mandato da casa federativa, da Câmara dos Representantes dos Povos (HoPR), do Primeiro Ministro e do Conselho de Ministros era 5 de outubro de 2020, e que, por esta razão, consideraria “o titular” constitucionalmente ilegítimo após 5 de outubro. A TPLF propôs a substituição do governo por um governo tecnocrático de gestão, conforme detalhado num plano publicado no Facebook pela Coligação das Forças Federalistas Etíopes. É interessante pontuar que a Constituição da Etiópia, de 1995, garante o direito à autodeterminação e, se for o caso, de secessão; e, ao mesmo tempo, concede à sua casa federativa o direito de intervir em qualquer estado que puser em perigo a ordem constitucional.

Até agora, a disputa de narrativas não nos leva a crer que o conflito será breve. A disputa atual em questão é sobre a base na capital de Tigré, Mekele, e o controle sobre a base e a capital: o governo de Abiy diz ter recuperado o controle de Mekele e o conflito, findado. Por outro lado, o TPFL diz que Mekele continua sob domínio do partido e o conflito ainda não está terminado.

Para além da disputa de narrativas, ambos os lados são consideravelmente intransigentes em relação aos seus posicionamentos e, no nível pessoal, segundo a Anistia Internacional, não há uma relação amistosa. Soma-se a isso o fato de o TPFL ter sido bastante crítico no que se refere à secessão da Eritreia (tendo em vista que parte do território era do Tigré) e as boas relações de Abiy com Afwerki estrangulam o TPFL naquele território.

As implicações do conflito 

Deve-se observar este conflito com bastante atenção por algumas razões. Em primeiro lugar, porque, simbolicamente, a Etiópia é o grande bastião de estabilidade no Chifre da África. A Somália vive intensamente uma luta para vencer o Al-Shabaab; o Sudão do Sul encontra-se em guerra civil; o Sudão ainda não resolveu suas pendências com o Darfur e, atualmente, precisa lidar com pressões dos estados do sul de seu país; e Uganda vive um momento delicado e conturbado com relação a protestos em período de eleições. Todos esses países, e a própria União Africana, têm  (ou tinham) a Etiópia como um exemplo de estabilidade político-institucional e econômica para o Chifre da África.

Em segundo lugar, o conflito é preocupante porque o território é o destino imediato de um importante contingente de refugiados do entorno regional. Hoje, já se sabe que mais de 25 mil etíopes fugiram para o Sudão. A instabilidade na Etiópia também traria mais instabilidade aos indivíduos em situação de refúgio dos outros países, tendo em vista que não haveria um lugar seguro o suficiente para ir. Posto isso, a opção seria se arriscar no mar em busca de terras europeias, onde se tem um crescimento de comportamento racista e xenofóbico, ou no Oriente Médio, território que também sofre de instabilidades.

E, em terceiro lugar, é preocupante percebermos a etnização do conflito na mídia ocidental. Apesar das diferenças étnicas dentro da Etiópia, trata-se de uma questão política e que, portanto, deve ser tratada como tal. Nesse sentido, cabe mencionar que a China possui base militar no Djibouti, a primeira desse tipo, desde 2017; é nítido o retorno da Rússia ao continente, especialmente com os planejamentos de construção de uma base naval no Sudão; e os Estados Unidos estão presentes em diversos pontos do continente, entre eles, na Somália e no Quênia. O movimento de compreensão de um conflito como étnico, clássico quando se pensa guerra em África, é perigoso porque legitima essa narrativa como causa do conflito e facilita a busca por apoio estrangeiro. O apoio estrangeiro invariavelmente aumenta as capacidades de combate dos entes armados, o que, consequentemente, amplia a letalidade do conflito. Isso sem mencionar as possibilidades de spillover retroalimentadas, tendo em vista as já instáveis nações do seu entorno.

O bastião do Chifre está com seu alicerce enfraquecido. É provável que este seja o grande teste para a União Africana e para a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD), bloco econômico com sede no Djibouti. Uma guerra civil na Etiópia pode desencadear uma situação ainda mais complexa para os seus vizinhos, tornar o Chifre uma região geopoliticamente essencial às grandes potências internacionais e solapar um povo que, apesar de todas as dificuldades, (r)existe.


*Revisão: Marcela Franzoni

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”