A última temporada de Game of Thrones fechou alguns arcos interessantes e reforçou o caráter (ou a falta dele) de alguns personagens. Mas o que para muitos pode ser considerado como falta de escrúpulos ou crueldade, para outros pode ser entendido como uma resposta racional aos eventos à medida em que se apresentam.

Conceitos das teorias realistas das Relações Internacionais podem nos ajudar a entender e explicar o comportamento, os acertos e erros dos principais atores envolvidos na disputa de poder em Westeros.

Se levarmos em conta apenas as “grandes potências”, teríamos os seguintes atores: Cersei Lannister representando a Coroa em Porto Real; Daenerys Targaryen, que atuava no continente de Essos e desembarca um contingente enorme de tropas (os Imaculados e os Dothraki) em Pedra do Dragão, além dos três dragões, e cujo objetivo é reaver o trono perdido por sua família; Jon Snow, Rei do Norte, que submeteu a soberania do seu reino à Daenerys; e o Rei da Noite, líder dos Caminhantes Brancos, que não tem um objetivo prático bem definido a não ser o de conquistar Westeros por meio do medo e do gelo.

Para a abordagem realista, os atores são racionais e unitários, ou seja, fazem um cálculo custo/benefício antes de agir, e seus interesses são definidos em termos de segurança e sobrevivência. Isso tudo deriva do ordenamento do sistema, que é anárquico, ou seja, não há outro ator que consiga regular as ações de todos os demais assim como não há um pacto ou norma que estabeleça uma instituição acima desses mesmos atores – logo, não há ninguém a quem procurar no caso de uma ameaça ou invasão, por exemplo. Apresentados os atores e as premissas de que partimos, buscamos entender o que motivou cada um dos personagens. É necessário assumir que o estadista representa de forma unitária (ou seja, totaliza em suas próprias ações) seu Estado (ou reino ou unidade em questão), assim, quando falarmos do personagem estamos falando objetivamente do ator que este representa.

Apontada por muitos e em diversos momentos das últimas três temporadas como “louca” ou “irracional’, as ações de Cersei são provavelmente as mais conectadas com o que proporia o realismo. Ela controla o trono, a capital (cidade mais populosa do continente), as terras mais produtivas (Jardim de Cima) e conseguiu quitar o débito do reino com o Banco de Ferro de Bravos, tomando novo empréstimo para financiar milhares de mercenários a lutar pela sua causa em Westeros. Essa ação é desconhecida dos demais atores, a não ser seu irmão Jayme Lannister e seu aliado, Euron Greyjoy, que controla a maior marinha da região. Cersei reconstruiu paulatinamente as capacidades (o poder efetivo) do reino ao forjar uma aliança que lhe concedeu supremacia naval e, com a compra dos mercenários, equilibrar o poder terrestre. Falaremos mais à frente sobre as negociações retratadas no último episódio da sétima temporada e a manipulação do jogo de poder com os demais atores.

Daenerys é a personagem que tem o arco de maior expansão de capacidades. Ela começa a série “vendida” como esposa a um dos líderes Dothraki, Khal Drogo. Após a morte deste e o nascimento de seus bebês dragões, ela começa uma longa peregrinação pelas cidades de Essos a fim de obter o poder naval necessário para invadir Westeros. Interessante notar que os dragões são sua “vantagem” nas barganhas travadas nas “cidades livres”; são as armas de destruição em massa desse universo fantasioso, mas no estágio inicial da série corresponderiam a uma tecnologia em desenvolvimento. O crescimento dos dragões, a tomada de grandes cidades em Essos e a libertação dos escravos e dos Imaculados possibilitaram a formação de seu poder terrestre que, somado à aliança com Yara Greyjoy, tornou possível a projeção de seu poder em Westeros. Quando desembarca em Pedra do Dragão, Daenerys não só controla um grande poder terrestre e naval como é possuidora do maior avanço “tecnológico” de então, os dragões.

Jon Snow representa o Norte, região que tem prioridades estratégicas e geopolíticas próprias. A ameaça mais latente é apresentada pelos Caminhantes Brancos, por isso a disputa pelo poder em Westeros torna-se secundária. Nesse sentido, a chegada do Rei da Noite significa uma ameaça direta à sobrevivência dos humanos, em geral, e do Norte, em particular, por estarem mais próximos. O grande problema é que os Caminhantes Brancos não podem ser derrotados por armas comuns, o que exigiu a extração de vidro-do-dragão para a fabricação de novas armas e a cooperação com Daenerys para que os dragões sejam utilizados na guerra vindoura uma vez que o fogo também serve a derrota dos mortos-vivos.

O dilema inicial dessa análise diz respeito à cooperação: os Caminhantes Brancos representam uma ameaça à humanidade em geral, ou seja, todo o reino é ameaçado e poderá perecer. Caso não sejam derrotados a tempo, não haverá Westeros para ser regida. Os atores, porém, enxergam essa ameaça de forma distinta: Jon e Daenerys já cooperam entre si e buscam uma trégua com Cersei para que os custos sejam divididos entre todos e os ganhos possam ser compartilhados. A sobrevivência dos humanos torna-se assim a meta mais importante. Porém, a rainha no Trono de Ferro faz uma proposta inteligente, mostrando que soube ler a balança de poder do continente: mostra-se disposta a cooperar em uma trégua desde que o Norte abdicasse de qualquer aliança com Daenerys, ou seja, desde que ela não tivesse que lidar com dois inimigos de uma só vez ao final de uma suposta aliança contra os Caminhantes Brancos. A recusa de Jon Snow e a reafirmação de sua aliança com Daenerys, contudo, demonstraram a incapacidade do Rei do Norte de entender alguns princípios básicos da política internacional, assim como corroboraram o caráter lógico e racional da rainha Lannister.

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Cersei inicialmente nega uma trégua, mas posteriormente resolve negociar com o discurso de que existe uma ameaça maior. Mas, em discussão com seu irmão Jayme, a rainha afirma que não tem intenção de enviar suas tropas para o Norte. Muitos provavelmente afirmarão que ela não tem palavra, que é mentirosa e traiçoeira, mas o ponto é: isso não importa. Em última instância, a grande preocupação de todo estadista é a segurança e sobrevivência de seu Estado (reino, principado, império etc.). E quando Cersei falsamente se compromete, ela altera a balança de poder em seu favor enquanto pode aumentar suas capacidades a fim de enfrentar seus adversários futuramente. Assim, o cálculo é o seguinte: cooperar naquele momento significaria ter que enfrentar inimigos em aliança contra si no futuro; não cooperar significaria enfrentar os inimigos naquele momento sem ter garantido as capacidades para tanto; e fingir cooperar significaria ganhar tempo para garantir essas mesmas capacidades, com a diferença de que as tropas dos inimigos terão se afastado e estarão concentradas em outro cenário.

Os dois primeiros cursos de ação provavelmente acarretariam a derrota de Cersei, uma vez que ela não teria condições de lidar com a aliança de Jon e Daenerys, antes ou depois da luta contra os Caminhantes Brancos. Mentir significa arcar com os custos que isso pode gerar: a possibilidade do Rei da Noite vencer e posteriormente submeter Porto Real ou lidar com os vencedores dessa guerra, o que talvez inclua os dragões. Em qualquer cenário, Cersei percebe que a guerra será o instrumento natural da continuação da política por outros meios, para não deixar de citar Clausewitz. Por isso, a despeito de qualquer indício de crueldade ou maldade, o que pauta seus objetivos são a racionalidade e um cálculo muito apurado quanto aos custos e benefícios de cada ação. Sua sagacidade fica evidente quando ela percebe que se uma das três grandes armas de Daenerys não existe mais, isso significa que alguém ou algo foi capaz de detê-la – e com tempo, é possível que a própria Cersei possa fazer o mesmo e alcançar algum tipo de equilíbrio estratégico.

Daenerys poderia ter evitado tudo isso se tivesse utilizado de seu poder para submeter seus inimigos enquanto teve a oportunidade. Quando desembarcou em Westeros, suas forças estavam concentradas e aptas a um ataque contra Porto Real. A pleiteante, contudo, temia não ser amada ou perpetuar a lógica de destruição levada a cabo por seus antecessores. Mas nesse ponto podemos retomar Maquiavel: é melhor ser temido que amado. Daenerys de fato impõe certo temor, tem as melhores e mais destrutivas armas do continente, mas sua ameaça perdeu credibilidade quando não foi capaz de tomar as decisões mais difíceis, ou seja, ter invadido Porto Real e retirado Cersei do poder. Isso teria encerrado a disputa pelo trono e garantido que as forças poderiam ser concentradas definitivamente contra os Caminhantes Brancos.

Por isso, a partir de uma abordagem realista, é possível afirmar que ao relutar em assumir os custos da guerra no devido momento, Daenerys apenas os aumentou. Terá que enfrentar os Caminhantes Brancos no próximo temporada e lidar com Westeros sob o reino fortalecido de Cersei. A cooperação, portanto, sem garantias ou sem punição possível à deserção, gerará consequências negativas para a posição de Daenerys na balança de poder.

Cersei termina, assim, como a grande vencedora da última temporada. Quem agradece é o Rei da Noite, que terá um inimigo a menos com que lidar.