Danielle Amaral Makio – NEAI – Núcleo de Estudos e Análises Internacionais https://neai-unesp.org Wed, 28 Jun 2023 19:33:14 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.2 https://neai-unesp.org/wp-content/uploads/2018/05/cropped-logo-neai-icone-32x32.png Danielle Amaral Makio – NEAI – Núcleo de Estudos e Análises Internacionais https://neai-unesp.org 32 32 A contraofensiva ucraniana e a rebelião do Grupo Wagner: avanço, limitações e possíveis desdobramentos https://neai-unesp.org/a-contraofensiva-ucraniana-e-a-rebeliao-do-grupo-wagner-avanco-limitacoes-e-possiveis-desdobramentos/ Wed, 28 Jun 2023 19:33:13 +0000 https://neai-unesp.org/?p=6516 Fonte: El Mundo (2023) 

A contraofensiva ucraniana finalmente teve início após mais de um ano de conflito ativo. Nesse contexto, os principais objetivos da Ucrânia parecem ser (i) a retomada dos territórios ocupados, que hoje representam quase 20% do território de todo o país; e (ii) a quebra da comunicação das tropas russas com o território sul da Ucrânia, ao qual a Rússia está atualmente ligada por um trecho terrestre contínuo que se estende até a Crimeia. Acerca do andamento da empreitada ucraniana, é interessante perceber que, desde o início da contraofensiva, Kiev parece ter feito pequenas alterações em sua estratégia. Se no começo as tropas ucranianas indicavam ter como intuito testar possíveis falhas na frente russa, dividindo-se em diferentes pontos de todo o terreno ocupado, atualmente os ataques indicam estar se concentrando de forma mais clara em regiões da Zaporizhzhia e de Donetsk. 

Progresso e lentidão: desafios à empreitada ucraniana e limites à ação russa

A tomada de decisão do comando militar ucraniano aparenta ter logrado certo sucesso se considerarmos o avanço da contraofensiva, que até o momento retomou o controle sobre 8 territórios. Quando analisamos tais ganhos à luz das perdas, do tempo e dos efetivos dispensados por Kiev, porém, percebemos que o avanço se dá a passos lentos e que ainda parece distante de alcançar vitórias realmente expressivas. Tal lentidão foi recentemente reconhecida pelo próprio presidente dos EUA, Joe Biden, que declarou que “guerras são maratonas e não corridas”. Entendemos que dois fatores principais justificam a morosidade da reação ucraniana: (i) a capacidade defensiva de Moscou, e (ii) a disponibilidade de uso de força militar por parte da Ucrânia. 

Por um lado, a Rússia teve muito tempo para se preparar e montou uma eficiente defesa multinível que se estende desde as linhas de frente dos territórios ocupados até o litoral ucraniano banhado pelos mares de Azov e Negro. No front russo destacam-se o considerável volume de minas terrestres e a superioridade da força aérea, fatores que têm sido responsáveis por grandes baixas no lado ucraniano. A estratégia de Moscou, dessa forma, parece buscar evitar o combate direto e mobilizar esforços orientados ao fortalecimento de medidas de média e longa distâncias. Estas, por outro lado, representam um dos principais desafios ao sucesso ucraniano. O uso de drones altamente tecnológicos vinha sendo um dos trunfos de Kiev, mas os mesmos têm tido seu alcance reduzido pela capacidade de interceptação russa. Ademais, os caças F-16, cujo uso por parte da Ucrânia foi recentemente liberado pelos EUA, só poderão ser operados após o devido treinamento dos pilotos ucranianos, o que não deve ser concluído no curto prazo e pode, no limite, determinar o desfecho da operação de Kiev.

Ainda que a defesa russa pareça estar logrando sucesso ao limitar a expansão da contraofensiva ucraniana, e a despeito de recentes declarações de Putin segundo as quais a estratégia de Kiev é um fracasso, há indícios de que ambos os lados estão se desgastando razoavelmente com os atuais embates. Sergei Shoigu, ministro da defesa da Rússia, declarou na última sexta (16/06) que a produção de tanques deveria ser aumentada para reabastecer as linhas defensivas. A solicitação sugere que, apesar de relativamente bem-sucedida até o momento, a operação russa vem se desgastando frente aos esforços ucranianos, suscitando preocupações no que diz respeito à disponibilidade de recursos militares. 

Possíveis desdobramentos: retomada territorial e além

Mesmo que alguns pesquisadores venham sugerindo que a Ucrânia ainda não usou de todo arsenal que tem à sua disposição, o que poderia significar que Kiev tem capacidade de promover um reforço à contraofensiva a qualquer momento, a retomada completa dos territórios ocupados pela Ucrânia não parece tarefa fácil. Por mais que disponha de tecnologia e efetivo militares ainda não empregados nos esforços atuais, parte crucial de seu poder de fogo, os caças F-16, ainda não pode ser utilizada. Ademais, soldados ucranianos que atualmente estão sendo treinados pela OTAN em campo secreto no Reino Unido não voltarão ao front de imediato. Portanto, se considerarmos o tempo necessário para a conclusão deste período preparatório, podemos concluir que, mesmo que conte com poder contraofensivo não utilizado, Kiev terá ainda de resistir ao front russo por algumas semanas antes de poder revidar com força total, o que pode levar a desgastes importantes. Diante dessas limitações, a retomada integral de territórios ocupados parece improvável sobretudo no curto prazo. Contudo, uma reconquista parcial poderia aumentar o poder de negociação ucraniano, constituindo importante arma para Zelensky, se bem usada.

Para além das discussões acerca do poder de fogo da operação ucraniana e da possibilidade da concretização efetiva dos objetivos de Kiev, outras questões relacionadas à contraofensiva merecem ser destacadas. Uma dessas é a quebra da barragem de Kakhovka, anunciada entre 6 e 7 de junho. A responsabilidade pelo desastre, fruto de bombardeios ocorridos às vésperas do início efetivo da contraoefensiva, ainda não foi atribuída a nenhuma das partes envolvidas, porém as consequências já são sofridas por muitos. O primeiro resultado catastrófico foi o alagamento de cidades e áreas de cultivo nos arredores da construção, o que levou a perdas materiais, deslocamento de pessoas e danos à produção agrícola. Este último, que afeta tanto o abastecimento local de alimentos quanto a atividade econômica nacional, teve seus efeitos razoavelmente contidos pois boa parte da área afetada se localiza em território ocupado e, consequentemente, isolado do comércio internacional. 

Outro resultado potencialmente mais preocupante é o ocorrido na usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior do tipo na Europa. Parte do volume das piscinas de resfriamento dos reatores da célula é garantido pela barragem de Kakhovka. A queda desta, por conseguinte, levou a uma redução nos níveis das piscinas, aumentando os riscos de possíveis falhas nos reatores. Após alguma resistência por parte de Moscou, representantes da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) visitaram a usina, localizada em território ocupado pela Rússia, para avaliar a situação. Segundo Rafael Grossi, diretor da agência, o cenário é estável e esforços serão realizados para o restabelecimento dos níveis normais das piscinas. Desde o início do conflito em 2022, porém, diversos alertas foram emitidos acerca da segurança da usina, a qual volta a ser foco de atenção com a escalada de manobras militares nos arredores da célula nuclear.

Rebelião do Grupo Wagner e capacidade de resistência russa 

Para além dos fatores discutidos até aqui, o futuro da guerra na Ucrânia ganhou recentemente mais uma variável que pode influenciar a longevidade do conflito: o levante do Grupo Wagner. Exército mercenário comandado por Yevgeny Prigozhin que vem lutando ao lado da Rússia desde o início da guerra na Ucrânia, o grupo se rebelou contra Moscou na última sexta-feira (23/06) e colocou a mídia em alerta acerca da capacidade do Kremlin de manter a eficácia de suas defesas. A tomada da cidade de Rostov e a ameaça de marcha até a capital russa, no entanto, logo foram contidas e, ao final de algumas horas de alerta, a desavença entre as tropas particulares de Prigozhin e o alto comando moscovita parece ter sido controlada. As reais consequências do ocorrido para o contexto da contraofensiva de Kiev, contudo, ainda estão por vir.

Em recente declaração, Vladimir Putin ofereceu aos soldados do Grupo Wagner a possibilidade de se juntarem ao exército moscovita ou se mudaram para a Bielorrússia. A reação ao discurso do presidente é de suma importância, pois definirá não somente de que maneira os combatentes de Prigozhin irão se portar, mas também como isso irá impactar a operação militar russa. Se optarem por aceitar o convite e se tornarem soldados da Federação, esta continuará a ter disponíveis para si soldados altamente treinados e com experiência de guerra. Caso se recusem a adentrar o Exército de Moscou, poderão implicar em defasagem do front russo. A dimensão desta, porém, apenas poderá ser calculada com maior precisão uma vez que se saiba com mais clareza qual a porcentagem de mercenários que se manterão fiéis ao comando do Wagner. A despeito dessas incertezas, parece seguro dizer que o evento concedeu pequena vantagem, ao menos temporária, aos soldados ucranianos.

Para além do contexto essencialmente estratégico e militar que permeia o episódio, devemos, ainda, considerar a forma com que Putin vem lidando com a situação. Desde o começo, o presidente foi cauteloso ao evitar uma resposta violenta à rebelião. Apesar de ter mantido um tom duro em suas declarações, nas quais diversas vezes cita o evento como fruto de ação terrorista organizada por traidores, o líder do Kremlin evitou que sangue russo fosse derramado. Ademais, as ameaças de retaliação mais severas foram, até o momento, nomeadamente destinadas àqueles que ocupam posições de chefia no grupo mercenário, traçando uma clara divisão entre estes e os demais membros da milícia. Ao conter um eminente fratricídio como forma de contenção do motim de Prigozhin, Putin reforça o devir moscovita de proteger seu povo, o “mundo russo”, e procura evitar novos desgastes à sua figura. Até o momento, a saída encontrada pelo presidente para ter de fato evitado que a situação tomasse maiores proporções sociais. As desavenças entre o comandante do Grupo Wagner e grupos do alto escalão do Kremlin, contudo, contrapõem a ideia de inquestionabilidade das decisões de Putin no contexto da guerra na Ucrânia, indicando um cenário potencialmente menos uníssono na Praça Vermelha. Sabemos que a rebelião parece ter sido mais um protesto do que uma real ameaça de golpe de Estado. Contudo, (i) a proximidade das eleições na Rússia; (ii) a condução da operação especial na Ucrânia, cuja liderança foi usada como estopim do levante e cuja organização não foi capaz de evitar o mesmo; (iii) e a aparentemente efetiva reação do governo à rebelião fazem com que os efeitos deste cenário sobre o futuro da guerra no momento continuem incertos.

A eficácia da contraofensiva ucraniana e, por conseguinte, a longevidade do conflito, portanto, parecem estar atreladas a inúmeras variáveis de difícil precisão. Do ponto de vista estratégico, a capacidade de empregabilidade de arsenal militar por parte da Ucrânia e a real defasagem que a rebelião do Grupo Wagner causará à Rússia dificultam qualquer estimativa mais certeira acerca da possibilidade de continuidade da contenda em termos bélicos. Do ponto de vista político, o baque das desavenças entre Prigozhin, Shoigu e Putin, ainda que possivelmente minimizado pela estratégia de contenção adotada pelo Kremlin, pode vir a impor novos desafios à manutenção do conflito nos moldes atuais por parte de Moscou. Por fim, a ameaça de desastre nuclear, agravada pela intensa mobilização de tropas e armamentos nas proximidades de Zaporizhzhia, aumenta a lista de possíveis consequências de uma guerra que, apesar de limitada espacialmente, tem dimensões muito mais alargadas.

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Uma águia caída? Entendendo a crise no Cazaquistão https://neai-unesp.org/uma-aguia-caida-entendendo-a-crise-no-cazaquistao/ Thu, 06 Jan 2022 14:37:50 +0000 https://neai-unesp.org/?p=6194 Crédito da imagem: News.am

A estátua caída de Nazarbaev no coração de Almaty sugere algo de anormal. Presidente do Cazaquistão desde a independência do país em 1991 até sua renúncia, em 2019, o político ainda hoje é um dos principais símbolos do estado. Imortalizado pela narrativa oficial do governo como o grande líder da nação, é celebrado como o responsável por diversos avanços no país e cultuado quase como uma entidade sobre-humana – as reverências vão desde murais imensos pintados em estações de metrô a livros e celebrações nacionais atrelados à sua figura. Seu retrato estilhaçado nas ruas, derrubado por protestantes que se mobilizam contra o governo desde 4 de janeiro de 2022, é, pois, um recado muito mais forte do que se pode imaginar à primeira vista, trata-se de um manifesto de uma sociedade que clama por mudança.

Embalados por uma nuvem de gás lacrimogênio e pelos sons de bombas, tiros e vidros se quebrando, cazaques travam uma luta contra um regime ensimesmado que, em nome da glória, prefere se voltar a grandiosos projetos estatais do que à construção de um tecido social mais coeso. O governo altamente personificado do Cazaquistão, típico das outras repúblicas da Ásia Central, sofre de um profundo distanciamento entre as elites que governam o país e a população a quem deveriam favorecer. Nesse contexto, é comum vermos, ao mesmo tempo, projetos nacionais de grande magnitude, como as complexas relações com a China, responsáveis por atrair milhões de dólares ao país, e políticas públicas questionáveis, como aquelas que classificam como terroristas movimentos populares que contrariem o regime. De um lado, um dos principais parceiros da China para a ambiciosa Nova Rota da Seda, uma terra de potencialidades, do outro, um país que nega a população de acesso à internet ao menor sinal de mobilização popular – vivendo em Almaty há quatro meses fiquei sem sinal algum no celular pelo menos uma vez ao mês.

Os recentes protestos em cujo contexto se deu a derrubada da estátua de Nazarbaev, pois, não se dão sem justificativa e muito menos se agravaram por culpa dos manifestantes. É preciso ter em mente que se trata de um país que vem de um histórico de repressão truculenta de levantes populares, haja vista o indelével massacre de Zhanaozen, episódio ocorrido em 2011 que terminou na morte de 14 cidadãos por tiros disparados por policiais. As mãos ensanguentadas e os olhares de terror de muitos dos manifestantes parecem dizer-me que, dessa vez, nada mudou. Ademais, as recentes declarações do governo reiteram a opção pela violência: Tokayev, atual presidente, no dia 5 de janeiro de 2022, solicitou auxílio militar da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) para lutar contra seu próprio povo. Um regime sem legitimação. Um líder pedindo intervenção militar para se proteger de sua própria população já vulnerável. Esta, vale lembrar, que, dado o estado de emergência decretado no país, encontra-se privada de acesso à internet, privada do direito de sair de suas cidades, de sair de suas casas para além do toque de recolher instituído pelo regime. Algumas regiões de Almaty nesse momento funcionam à margem da lei.

Em vista dos embates entre oficiais e manifestantes já não há espaço para a ordem, e a violência se alastra entre polícia e protestantes e entre aproveitadores que se se valem da situação para atentar contra a população em geral. Há relatos não oficiais de cidadãos tendo suas residências invadidas por militares e civis empunhando armas de alto calibre e fazendo demandas de diversas naturezas. Tudo isso pelo preço do petróleo e da gasolina? Ouso dizer que não. Tudo isso por anos de um regime corrupto e deliberadamente distante de sua população, que sofre com altos níveis de desigualdade e baixa capacidade de mobilização. Tudo isso por um governo que sistematicamente se negou a ouvir seus cidadãos, a não ser, claro, aqueles que lhe apoiam. Tudo isso por um corpo político que, em detrimento da resolução de questões sociais internas, parece sempre muito mais interessado em servir a interesses externos como forma de aumentar o prestígio da nação.

A recente resignação do governo nesta quarta-feira, 5 de janeiro 2022, e a aparente redução na violência policial parecem apontar para um cenário de evolução no qual o regime reconhece sua inabilidade em lidar com a situação. Contudo, é preciso um olhar mais atento. O Cazaquistão, assim como toda a Ásia Central e muitas ex-repúblicas soviéticas, vem de um histórico de instrumentalização da atitude de renúncia e/ou resignação de cargos oficiais. Em outras palavras, é comum, no léxico político do Cazaquistão e demais estados, que líderes renunciem como forma de apaziguar manifestantes e demonstrar certo grau de controle para demais atores internacionais como forma de controlar a crise e minimizar os efeitos da mesma. O Quirguistão talvez seja o exemplo mais recente de tal manobra, que sempre é adotada de forma isolada, sem que demais medidas substanciais, que realmente teriam potencial de mudar o regime, sejam debatidas.

Portanto, ao pensar os recentes acontecimentos em Almaty e no Cazaquistão, entendamos que é preciso, antes de proferir qualquer afirmação, ter em mente o contexto político no qual o país se encontra. É preciso compreender que as razões por trás das tensões atuais vão muito além de uma alta nos preços, assim como é preciso ter um olhar crítico para o que a mídia cazaque oficial nos diz e para o que as declarações do governo realmente significam.


*Revisão: Giovanna Bertolaccini

** Artigo de opinião

*** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)

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A última dança entre Merkel e Putin https://neai-unesp.org/a-ultima-danca-entre-merkel-e-putin/ Thu, 19 Aug 2021 17:23:21 +0000 https://neai-unesp.org/?p=5969 Merkel e Putin em encontro ocorrido em Berlin em outubro do ano passado. Crédito: Odd Andersen/AFP Photo

O tabuleiro geopolítico europeu continua a ser desenhado às vésperas da saída de Angela Merkel da Chancelaria alemã, após 16 anos no cargo. Sua visita a Moscou e a Kiev, a partir de amanhã, demonstra que a Alemanha – ao contrário do que muitos acreditam – continua a pensar e a agir realisticamente. Merkel se orienta pelo cálculo racional de meios e fins travestido de uma postura não agressiva e de acomodação, mas nunca de subserviência. Voltada para a defesa dos interesses energéticos europeus e, principalmente, alemães, a chanceler quer garantir a continuidade do diálogo teuto-russo mesmo após sua saída, ainda que essa relação tenha sido marcada por momentos de tensão e de cooperação. Já a Rússia pretende conquistar novas posições na Europa Central e Oriental, aumentando sua zona de influência e ingerência na região.

A Alemanha lida com a difícil tarefa de acomodar os interesses divergentes de seus tradicionais parceiros políticos (Ucrânia, França e Estados Unidos) com a essencial necessidade de suprir – ainda que a curto prazo – a deficiência energética europeia, evitando que novas interrupções no fornecimento de gás natural ocorram. Finalizar o gasoduto Nord Stream 2, em construção desde 2011, parece ser o desfecho perfeito para o encerramento do seu mandato. A realidade é que a União Europeia (UE), apesar dos seus múltiplos compromissos ambientais de produção de energia limpa e renovável, permanece refém das importações dos hidrocarbonetos russos.

A escolha alemã

Desde a crise financeira de 2008, o bloco europeu sofre com índices muito baixos de crescimento econômico e sucessivas recessões. O endividamento dos países do mediterrâneo – Portugal, Espanha, Itália e Grécia – soma-se às sucessivas crises políticas, sociais e migratórias, o que pressiona ainda mais o orçamento da União e reduz sua capacidade de investir e produzir avanços tecnológicos e científicos significativos no setor de energia limpa. Merkel tenta, como último movimento, garantir maior segurança no aprovisionamento de energia para os países europeus, ainda que isso custe maior dependência da Rússia e uma situação de fragilidade nos processos de paz que patrocina com a França na Ucrânia. Como se nota, soluções fáceis não existem nas relações internacionais, e a chanceler possivelmente tem em mente que o acesso ininterrupto a uma fonte de energia garantirá maior segurança, estabilidade e bem-estar nas sociedades europeias. Isso é tudo de que o bloco mais necessita após suas constantes e recentes turbulências socioeconômicas.

Merkel parece não confiar plenamente no seu sucessor para encerrar o projeto em curso, uma vez que as eleições parlamentares alemãs ainda estão incertas, e o Partido Verde avança na disputa eleitoral. Caso ganhe, o projeto do gasoduto Nord Stream 2 poderia ser comprometido. Ao que tudo indica, porém, apesar das críticas públicas do partido e dos ecologistas à construção do gasoduto, a verdade é que a UE não pode se dar ao luxo de interromper a parceria com a Rússia, já que seus atuais índices de abastecimento são desproporcionais quando comparados à produção. Mesmo investindo no desenvolvimento tecnológico e científico de energia limpa, a matriz energética de 27 Estados-membros europeus não poderia mudar de imediato, e as demandas dos consumidores não param.

Nesse sentido, o investimento na diversificação energética é fundamental, mas a manutenção da parceria teuto-russa também é, ainda que isso custe um quadro temporário de dependência externa. Merkel entende com clareza todo esse cenário estratégico e, por isso, mantém uma postura de negociação frente às desavenças políticas entre Rússia e Ucrânia e se coloca na linha de frente para resolver as sanções norte-americanas. No jogo político europeu, a Alemanha sempre desempenhou – e provavelmente continuará desempenhando – uma posição semi-hegemônica, mantendo seu núcleo de poder e fortalecimento interno, ainda que sob a égide ilusória de um perfil de não confrontação.

O fator russo

Desde o início de suas obras, em 2011, o Nord Stream 2 tem causado controvérsia entre a comunidade internacional. Contudo, é a partir de 2014, face ao conflito na Ucrânia, que as polêmicas envolvidas com a empreitada tomam novas proporções. A presença russa no contexto ucraniano, cuja assertividade fora explicitada com a anexação da Crimeia, colocou o Ocidente em alerta em relação ao papel da Rússia no tabuleiro da segurança internacional. Nesse cenário, questões ligadas à segurança energética e à ameaça posta pelo tom empregado pelo presidente Vladimir Putin no trato com grandes atores ocidentais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os EUA, vieram à tona e continuam polarizando as opiniões em torno da construção do novo gasoduto. O episódio da Ucrânia rendeu duras sanções à Rússia, as quais seriam novamente asseveradas anos mais tarde em diferentes contextos. Entre eles, podemos destacar a polêmica envolvendo Alexei Navalny e os protestos anti-Putin organizados por grupos contrários ao governo russo.

A cautela com que o Ocidente lida com a Rússia desde o estopim do conflito de 2014 traz efeitos diversos. No que diz respeito ao projeto do Nord Stream 2, há duas questões centrais a serem consideradas. A primeira delas diz respeito ao fator econômico. A venda de hidrocarbonetos é responsável por mais de 60% das exportações russas, revelando uma clara dependência do país em relação a tais commodities. Estas, por sua vez, têm o mercado europeu como principal destino, fato que evidencia a centralidade dos negócios estabelecidos com os países-membros da UE, que, da mesma forma, permanecem amplamente dependentes do gás e do óleo russos. Os cortes no fornecimento de gás à Ucrânia impostos pela Gazprom em 2014 prejudicaram a economia ucraniana e ameaçaram o abastecimento europeu, alertando a Europa dos riscos de se manter à mercê das investidas de Putin. Isso, somado aos escândalos envolvendo perseguições políticas e desrespeito aos direitos humanos, levou a uma maior assertividade do bloco quanto à diversificação energética voltada à redução da dependência estabelecida com o mercado russo. Nesse contexto, a construção do Nord Stream 2 é de central importância também para Moscou, pois garante a continuidade de uma de suas mais rentáveis rotas comerciais frente às ameaças impostas pelo cenário securitário regional.

Outra questão central para compreender as polêmicas que circundam o projeto encabeçado por Rússia e Alemanha diz respeito à geoestratégia que se esboça com a empreitada. Um dos principais pilares da política de Putin é a manutenção de sua presença em territórios historicamente próximos do entorno russo, como Ucrânia e Belarus, e expandir sua zona de influência. Nesse cenário, o Nord Stream 2 serve aos interesses de Moscou, ao menos, de duas maneiras principais: (i) aumenta a presença da Rússia na Europa, fato que, dado o cenário atual, torna-se ainda mais relevante, e (ii) aumenta o poder de manobra de Putin nos países que têm dutos russos operantes. Atualmente, grande parte dos gasodutos que transportam gás da Rússia para o mundo são superficiais, o que significa que, efetivamente, passam por territórios de diversos países. Do ponto de vista prático, essa disposição requer trâmites legais específicos, como  o pagamento pelo direito de uso do território estrangeiro. Do ponto de vista estratégico-militar, incorre em uma maior vulnerabilidade dos dutos, que ficam mais sujeitos às interferências no fluxo de transporte causadas, por exemplo, por danos decorrentes de atividades bélicas, ou por ação humana deliberada.

O Nord Stream 2 é formado por túneis subterrâneos que não só dispensam o pagamento por uso de terreno como também são mais seguros às agressões da superfície. Por um lado, essa composição protege a segurança do escoamento do gás russo e, por outro, dá a Putin maior possibilidade de impor retaliações a determinados países sem prejudicar o escoamento para seu mais importante mercado consumidor. Portanto, a empreitada da Gazprom ganha toques geopolíticos, ao garantir à Rússia: (i) maior presença em um território que vem-se mostrando avesso às suas demandas; e (ii) concede ao Kremlin maior margem de atuação sobre países, cujos territórios têm trechos superficiais de dutos russos.

Resistência e interesse

A postura de Merkel em relação ao Nord Stream 2 não encontra resistência somente em casa. A cooperação com a Rússia causa incômodo em atores internacionais que veem na empreitada uma estratégia russa de expansão de poder. Ucrânia, Estados Unidos, Polônia e Eslováquia, entre outros, já se posicionaram contrários à continuidade da construção. Ucrânia, Polônia e Eslováquia, países que atualmente possuem gasodutos operados pela Gazprom que seriam, em certa medida, substituídos pelo novo sistema, compartilham realidades similares. Os três deixariam de lucrar alguns bilhões de dólares ao ano por perderem aportes oriundos do pagamento do direito de uso de território estrangeiro. Ademais, todos temem o aumento da margem de manobra russa representado pelo uso reduzido das tubulações já existentes. Já os Estados Unidos, além de temerem o que o Nord Stream 2 representaria para a Rússia em termos de expansão de poder, veem na obra uma ameaça ao comércio de seu gás natural liquefeito, cuja produção tem excedido as demandas interna e externa.

Ainda que a Rússia já seja alvo recorrente da oposição dos atores aqui citados, a Alemanha não tem-se mostrado insensível às demandas internacionais e às ameaças trazidas pelo projeto. Em recente visita a Washington, D.C., Merkel concordou em manter a Ucrânia como país de trânsito de parte do gás escoado da Rússia e elevou o tom, declarando que, caso Putin volte a usar recursos energéticos para ameaçar Kiev, o uso do Nord Stream 2 será suspenso. A postura da chanceler frente às demandas estadunidenses reitera a natureza da opção pelo projeto encabeçado junto ao Kremlin e explicita que Berlim não está cega aos possíveis interesses russos que se obliteram por detrás do imperativo econômico que, a um mesmo tempo, guiam Alemanha e Rússia em sua ambição compartilhada.


*Revisão: Tatiana Teixeira e Stella Bonifácio

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)

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Poder e território entre Armênia e Azerbaijão: a escalada do conflito de Nagorno-Karabakh https://neai-unesp.org/poder-e-territorio-entre-armenia-e-azerbaijao-a-escalada-do-conflito-de-nagorno-karabakh/ Fri, 09 Oct 2020 18:23:31 +0000 https://neai-unesp.org/?p=4993 Bombardeio causou danos a residências na cidade de Martuni. Fonte: BBC/ Crédito: EPA

Em maio de 2018, após a chamada Revolução de Veludo, Nikol Pashinyan foi eleito primeiro-ministro da Armênia. O movimento que colocou o então líder do levante no poder foi fruto da insatisfação popular em relação ao “antigo regime” que comandava o país e mantinha resquícios do autoritarismo soviético. Fortemente caracterizado por seu viés pacífico e pela aparente ausência de interferências de agentes externos, o protesto que tomou as ruas da capital, Yerevan, durante um mês parece ter representado o marco de um novo período de modernização para a Armênia. Ainda é cedo para afirmar se o novo regime proposto por Pashinyan se sustentará o suficiente para que os armênios possam categoricamente afirmar o desbanque do regime anterior, mas importantes reverberações ligadas às novas posturas tomadas pelo primeiro-ministro vêm chamando a atenção para a região. Neste contexto, a recente escalada do conflito de Nagorno-Karabakh (N-K) é, talvez, o evento atual que mais se sobressai no cenário político local.

Uma luta histórica       

O conflito que opõe Armênia e Azerbaijão pela posse das regiões montanhosas de Karabakh data de 1992, mas suas raízes remontam a um período muito anterior. Em um recorte mais específico, podemos notar que, na década de 1920, as nações transcaucasianas, das quais fazem parte azeris e armênios, deram início a processos autônomos de formação estatal. Neste ínterim, políticas de demarcação territorial representavam uma estratégia crucial para todas as nações que buscavam construir seus próprios Estados, e é neste cenário que as desavenças entre Armênia e Azerbaijão passam por um ponto de virada e se agravam.

Novas posturas do Politburo (Comitê de comando central da URSS) em relação à liberdade concedida às nacionalidades que formavam a URSS suspenderam, contudo, boa parte da autonomia dos povos, no que diz respeito à manutenção de seus processos de formação estatal. Esta nova abordagem viria a impactar Armênia e Azerbaijão,. Em 1923,  a despeito da maioria étnica armênia dos povos que habitavam N-K, o Politburo concedeu aos azeris a posse do território que já vinha sendo tema de disputa entre os países. Neste contexto, porém, ainda que N-K tivesse a alcunha de Oblast (região autônoma inserida dentro de uma república soviética), muitas das decisões continuavam nas mãos do governo azeri. Tem início, assim, um longo período, no qual a população Karabakh seria alvo de sistemáticas medidas discriminatórias adotadas pelo Azerbaijão.

Em vista das hostilidades enfrentadas pelos habitantes de N-K, em 1988 surgiriam demandas locais pela incorporação da região à Armênia, Estado com o qual tinham uma identificação étnica e histórica. Com base em suas políticas de repressão a movimentos irredentistas, e temendo que o caso abrisse precedentes para demais movimentos semelhantes, a URSS silenciaria os pedidos de N-K. No contexto de independência das repúblicas soviéticas que se inaugura em 1991 em virtude da inevitável queda do regime, é declarada a independência de Karabakh. As disputas entre Armênia e Azerbaijão pelo enclave escalam até que, em 1992, com o episódio do Massacre de Khojaly, as animosidades se traduzem em guerra. Desde então, N-K se caracteriza por ser uma região azeri ocupada por uma população armênia.

À época do início dos confrontos militares uma série de negociações se sucederam. Encabeçados sobretudo pela ONU e pelo Grupo de Minsk, ligado à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e liderado por Rússia, EUA e França, os diálogos para a paz conseguiram firmar um cessar-fogo em 1994 e quatro resoluções em 1993. Em relação a estas, destacam-se a necessidade de desocupação e de retirada militar da região para que o processo de negociação pudesse prosseguir. Apesar do desrespeito às definições impostas pela ONU, os trabalhos do Grupo de Minsk continuaram e, em 2007, são aprovados os Princípios de Madrid, que previam, entre outros pontos, a retirada das tropas dos Estados envolvidos e a realização de um novo referendo acerca do status de N-K. Juntos, os princípios definiam a forma, por meio das quais as negociações seguiriam.

Sobre este longo processo de negociação é importante apontar dois fatores. Primeiro, é interessante o fato de que, em alguns momentos ao longo dos diálogos, a posição de N-K oscila entre a independência condicionada pela anexação à Armênia e a autonomia de fato. Outro fator importante para o entendimento da situação diz respeito à representação de N-K, cujos interesses e posicionamentos são defendidos nas negociações pela Armênia. Em muitos momentos, seus líderes e representantes eram armênios de N-K. Em um referendo de 2017, N-K passou a se autointitular “República de Artsakh[1]”, o que sugere uma posição irremediavelmente atrelada à Armênia.

A recente escala no conflito

Desde a adoção dos Princípios de Madrid, o conflito se manteve estável e não apresentou novos eventos preocupantes até 2016, quando acusações da Armênia acerca de investidas militares por parte do Azerbaijão levaram a uma nova escalada do litígio. Após aproximadamente nove dias de tensões, contudo, a OSCE, sobretudo graças à Rússia, conseguiu controlar a situação. O quadro se manteve estável até junho de 2020, quando o presidente azeri, Ilham Aliyev, declarou que o país poderia abandonar o cessar-fogo a fim de buscar uma saída militar para o conflito.

Fonte: BBC

Ao contrário de eventos anteriores, a nova escalada que vem se prolongando desde o fim de setembro já soma centenas de mortos e não parece apresentar grandes perspectivas de amenização. O tabuleiro atual em torno do conflito de N-K soma quatro atores principais: Armênia, Azerbaijão, Rússia e Turquia. Antes de entendermos os papéis de cada um deles, contudo, é preciso compreender algumas mudanças recentes na dinâmica do litígio.

A principal virada na configuração da disputa é fruto da troca de poder na Armênia. À eleição de Pashinyan, seguiu-se o fortalecimento de um sentimento nacionalista patriótico que vem corroborando uma narrativa de busca pela grandiosidade que encontra respaldo no projeto de reconstrução da Grande Armênia. Neste contexto, o governante tem intensificado uma retórica de retomada territorial que não somente reforçou a presente escalada no conflito em N-K, como também está direcionando o interesse armênio em direção a outras regiões ocupadas do Azerbaijão e até mesmo a territórios turcos. Na visão de Pashinyan e de seus apoiadores, estes últimos foram, há séculos, parte da Armênia que se pretende reconstruir hoje.

A figura de Pashinyan, ademais, parece reformular, também, a presença da Rússia no contexto do conflito. Historicamente aliada da Armênia, a Rússia atualmente não tem demonstrado direcionar esforços à situação de N-K com a mesma intensidade e o interesse de outrora. Uma possível razão para isso é o fato de que Pashinyan representa um dos maiores medos de Putin no cenário geopolítico regional. Considerado um outsider, um ator que não conta com uma longa carreira política e que não esteve ligado às elites que compuseram o poder local durante o período soviético e no imediato pós-URSS, Pashinyan, que goza de grande popularidade, incorpora a possibilidade de um novo regime político não mais atrelado às heranças do regime anterior das quais se aproveita a Rússia.

A Armênia de Pashinyan não se trata de uma alternativa de modernização ocidental, de um capitalismo mais agressivo, de uma democracia liberal avançada, ou qualquer “ameaça” deste tipo. Ela representa, simplesmente, a possibilidade de se construir governos e Estados que não mais se apoiam nas instituições e estruturas de poder que, dado o histórico regional, corroboram hoje a manutenção de práticas políticas que já parecem datadas. Neste cenário, a Rússia parece hesitar atuar em demasia, como se ganhos positivos para a Armênia no contexto de N-K pudesse aumentar a popularidade de “populismos à la Pashinyans” ao longo da região.

Outra questão que merece atenção é a decisão de Pashinyan de abandonar os pontos de Madrid e propor uma nova fase de negociações, as quais apenas poderiam ser iniciadas se fossem respeitados alguns (questionáveis) pré-requisitos elaborados pela Armênia. Estes, por fazerem clara alusão ao reconhecimento do Azerbaijão acerca da independência de N-K e à retirada militar azeri da região, não fornecem grandes perspectivas de reconciliação.

A recente escalada do conflito, oriunda da alegação da Armênia de que um avião do país teria sido derrubado por armamento turco (acusação negada pela Turquia, aliada do Azerbaijão), mobiliza inúmeros atores. A França, que conta com grande população étnica entre sua população, já sinalizou a necessidade de um cessar-fogo imediato. Os EUA também declararam preocupação em relação à escalada da disputa e, assim como a Rússia, pede o fim das respostas militares. Todos estes Estados já declararam seu alinhamento à Armênia e têm demonstrado envolvimento diplomático em relação à situação, sobretudo, por intermédio do Grupo de Minsk. Essa decisão parece ter tido algum nível de impacto, tendo em vista a declaração de Pashinyan de que a Armênia está aberta a aceitar um cessar-fogo (O Azerbaijão ainda não se pronunciou). A Turquia rejeita, porém, veementemente a participação de qualquer ator externo ao litígio e defende a posição de que Armênia e Azerbaijão devem resolver a contenda entre si.

Apesar da posição do presidente Recep Tayyip Erdogan, há acusações do envolvimento turco nos enfrentamentos, em especial com o redirecionamento de soldados da Síria em direção a Baku. Nada foi oficialmente confirmado. Em relação a estas especulações, é importante ressaltar que a expansão turca sobre regiões como oCáucaso vem chamando a atenção da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o que faz do monitoramento do envolvimento de Ancara no cenário de N-K uma prática importante para o cenário de segurança regional. Desde a diminuição do nível de importações energéticas russas, a Turquia vem demonstrando certo interesse em galgar maior autonomia regional. Isso pode sugerir a expansão da dinâmica de poder entre Rússia e Turquia, que já se observa na Síria e na Líbia, para o Cáucaso.


[1] Artsakh é a nomenclatura usada pela Armênia para se referir à região de N-K.

*Revisão: Marcel Artioli e Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”

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Protestos em Khabarovsk: a atualidade do passado russo https://neai-unesp.org/protestos-em-khabarovsk-a-atualidade-do-passado-russo/ Sat, 25 Jul 2020 15:14:53 +0000 https://neai-unesp.org/?p=4778 Após ser ameaçado de homicídios, Sergei Furgal, atual governador do krai [1]de Khabarovsk, Rússia, foi levado por agentes das forças especiais do Kremlin até Moscou, onde foi condenado e permanece em prisão. O ocorrido foi o estopim para o início de protestos que tomaram Khabarovsk, cidade localizada no extremo oriente russo próxima à fronteira com a China. A despeito das restrições impostas pela pandemia da Covid-19, dezenas de milhares de habitantes tomaram as ruas no sábado, 17 de julho de 2020, em reação ao episódio. Convencidos de se tratar de uma manobra política desenhada no seio do centralismo político do presidente Vladimir Putin, os manifestantes marcharam embalados por brados que condenavam a arbitrariedade do evento e denunciavam o descaso de Moscou para com a região.

Membro do Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR), Furgal logrou seu posto como governador em 2018, após derrotar o então candidato da Rússia Unida, maior partido político russo da atualidade e ao qual é filiado o presidente Vladimir Putin, Vyacheslav Shport. A vitória impôs uma grande derrota ao Kremlin, que não conseguira eleger seu representante na região, e deu início a um mandato de caráter populista apoiado no discurso anticorrupção à época invocado pelo slogan “Chega de mentiras”, disseminado pelo então candidato do LDPR.

Conflito de interesses

Ainda que o cenário político russo seja marcado por uma tímida oposição ao governo, fato que se agrava ainda mais em regiões afastadas da capital russa, Furgal foi capaz de conduzir um mandato popular. O aumento dos índices de aceitação do governador por parte da população local se deu, contudo, simultâneo à baixa da popularidade de Putin, que demonstrou uma queda de 21 pontos percentuais entre abril de 2018 e 2020. Neste contexto político, que se agrava face à pandemia da Covid-19, a manutenção de um governo bem quisto não alinhado ao Kremlin parece contrariar os interesses da Rússia Unida e, sobretudo, de Putin, cujas recentes manobras constitucionais sugerem uma tentativa de se manter no poder.

Para além das desavenças partidárias que se colocam no cenário dos recentes protestos no extremo oriente russo, outra questão tem incitado a revolta contra o governo central. Apesar de  a região de Khabarovsk dispor de recursos naturais caros à economia, como metais preciosos e madeira, a população sofre com uma média salarial mais baixa que a nacional, altos custos de energia e uma carga tributária desproporcional em relação ao ganho per capita. Altas taxas de emigração do local ilustram a disparidade encontrada entre a disponibilidade de recursos e o bem-estar da população. Segundo o cientista político Yevgueni Chadayev, nos últimos 15 anos, um em cada quatro habitantes deixam o local. Para além do caráter predatório com que empresas exploram a região, contudo, estes dados denunciam o desinteresse do Kremlin em relação ao krai, o que incita os manifestantes que, canalizando apoio a Furgal, protestam contra o descaso.

Em resposta aos desdobramentos da prisão do governador, Putin nomeou o político Mikhail Degtyarev, também filiado ao LDPR, ao cargo no dia 20 de julho de 2020. Ainda que a escolha de um nome vindo do mesmo partido de Furgal pareça buscar arrefecer os ânimos da população, os protestos não têm demonstrado indícios de enfraquecimento. A insatisfação da população relação à deliberada escolha do presidente pode ser compreendida a partir de dois pontos principais: (i) Degtyarev é oriundo da região de Samara, e, portanto, não tem relações com a região de Khabarovsk; (ii) o recém-nomeado governador iniciou sua carreira na Rússia Unida, o que poderia indicar maior abertura a uma ingerência completa de Putin.

Estado Russo: centralismo e continuidade

A prisão de Furgal, a nomeação de Degtyarev, a reação  gerada por ambos acontecimentos, as razões que motivam os habitantes a tomarem as ruas não são mero fruto de acontecimentos recentes, nem podem ser de fato compreendidos sem que se entenda aquilo que se encontra no cerne destes desdobramentos. Em uma concepção mais generalista, os atuais eventos, remontam à constituição do Estado Russo e à centralidade política arraigada na região. Desde o chamado Estado kievano, que data do século IX e finda no século XIII com a invasão mongol, uma característica fundamental daquilo que viria a se conhecer como Rússia é sua imensa proporção territorial e sua pluralidade étnica. Desta maneira, seja em pleno Estado moscovita, seja em plena União Soviética (URSS), codificar todas essas dimensões geográfica e cultural foi um fator imprescindível para a formação e a sustentação estatal ao longo da História.

Enquanto a porção oeste da Europa se baseou em um processo de formação estatal que obedece a uma cronologia que, via de regra, prevê o nascimento da nação, do povo, para então haver a institucionalização do Estado, a Rússia se formou, de certa maneira, pela via oposta. Em resposta à diversidade expressiva de povos, foi preciso primeiro criar um forte e centralizado Estado para, então, forjar uma população que com ele se identificasse a despeito das diferenças observadas entre os muitos grupos que a formavam. Portanto, podemos dizer que a constituição política desta região não obedeceu de modo regrado àquilo que tipicamente nos é apresentado como um processo padrão pelos livros de História, que evocam em especial nomes como França e Reino Unido como exemplos de formação estatal.

Construiu-se, assim, um conceito de Estado que não se alinha necessariamente aos valores democrático-liberais, sobretudo, por não se tratar de um Estado-nação aos moldes difundidos pelo Ocidente. As consequências disso se distribuem ao longo da História, do czarismo até os dias atuais. O presente governo russo é um claro exemplo dos desdobramentos de séculos de centralismo. Ao subir ao poder no início dos anos 2000, Putin assumiu uma Rússia devastada pelas inúmeras crises que devastaram o país no decorrer dos anos 1990 e prometeu salvá-la, partindo de um retorno à típica centralidade.

Com o fim da URSS, o então presidente Boris Yeltsin (1991-1999) optara por uma abordagem que aproximasse o país do Ocidente como forma de resgatar uma participação na política e economia mundiais, presença que fora ameaçada com a queda do bloco socialista. Nesse ínterim, houve uma experiência de relativa descentralização do poder que, somada aos inúmeros conflitos territoriais e aos parcos resultados econômicos, cristalizou ainda mais o apreço pelo centralismo no ideário nacional. Com efeito, Putin se elegeu justamente com um discurso de retorno à grandeza invariavelmente atrelada à recentralização política do país. Os bons resultados apresentados logo nos primeiros anos de mandato, decorrentes também da bonança econômica ocasionada pelo aumento do preço do petróleo, alavancaram a popularidade não somente de Putin, mas, também, da dinâmica de governo por ele empreendida: o retorno à centralização típica do Estado Russo.

Os recentes protestos em Khabarovsk representam, portanto, não somente uma insatisfação pontual da população local, mas também uma reação a uma estrutura política secular. Na esteira dessa afirmação, podemos encarar a prisão de Furgal e a nomeação de Degtyarev como símbolo da ingerência do Kremlin em assuntos locais e uma forma de garantir a Putin e à sua Rússia Unida controle pleno sobre a nação. Não nos cabe, aqui, fazer juízos de valor a respeito dos benefícios e malefícios da histórica centralidade política russa e das atuais decisões tomadas pelo governo central, contudo, é indispensável que não se perca de vista a historicidade por trás dos recentes eventos que se desdobram na Rússia em pleno século XXI.


[1] Termo utilizado para designar as unidades administrativas do Estado Russo, as quais somam, no total 85 regiões.


* Revisão: Marcel Artioli e Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”

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