A viabilização do uso generalizado da tecnologia de manufatura aditiva, popularmente conhecida como impressão 3D, traz possibilidades reais de revolução no modo como nos relacionamos com produtos industrializados. A progressiva adoção da tecnologia fará com que seja mais prático gerar em casa muitos objetos e arcar apenas com os custos da matéria-prima. No entanto, esta liberdade de fabricação poderá abrir as portas para que objetos de uso controlado sejam produzidos por qualquer indivíduo, incluídas aqui as armas de fogo. É fácil imaginar o efeito que isso terá sobre os sistemas nacionais de segurança, sobre as relações internacionais e sobre a vida social em seu todo.

O processo de impressão 3D é conceitualmente simples. Utiliza-se um software de modelagem em 3D para desenhar o objeto desejado ou suas múltiplas partes e escolhe-se um material base no qual ele será impresso – normalmente algum tipo de plástico, que equivaleria às tintas que usamos em impressoras comuns. Essa categoria de impressora possui em seu centro um vão com apenas uma base, e é em cima da base que uma cabeça móvel carregada com a matéria-prima vai depositando camada por camada uma cópia do objeto desenhado no software e, ao longo de algumas horas, esse processo é repetido com precisão e sem desperdícios, até o surgimento do objeto final.

Para a indústria, esse processo não é novo, existindo desde o fim da década de 1980 (ver aqui). No entanto, o preço proibitivo das impressoras 3D fez com que seu uso não se disseminasse. Isso mudou em 2008 com o lançamento da linha de impressoras de código aberto RepRap, capazes de imprimir cópias de si mesmas. Dessa forma, uma única máquina serve como base para que toda uma rede delas se construa em uma região ou dentro de uma comunidade. A consolidação do conceito ocorreu no ano seguinte, quando a empresa MakerBot Industries entrou no mercado e popularizou impressoras de boa qualidade vendidas a preços relativamente acessíveis, das quais existem mais de 30 mil em circulação atualmente.

Os mais diversos usos estão sendo encontrados para essa tecnologia, variando desde simples hobbies, passando pela impressão de objetos de uso doméstico, e chegando à área da saúde onde possui aplicações como a impressão de próteses baratas, leves e eficientes. Isso demonstra o potencial da impressão 3D de democratizar o acesso a bens até então restritos às elites. Tais bens podem ser até mesmo mais eficazes, já que com algum empenho podem ser customizados e totalmente adaptados a cada usuário. Além disso, a maior parte das matérias-primas utilizadas é reciclável.

No entanto, liberdades carregam um custo em termos de responsabilidade igual ou maior do que as vantagens que estão atreladas a elas. Poder produzir qualquer objeto significa que também é possível produzir armas dos mais variados tipos. Hoje, a produção delas já se encontra em estado avançado. O estadunidense Cody Wilson é fundador da Defense Distributed, um grupo sem fins lucrativos sustentado por doadores, voltado ao desenvolvimento de projetos de código aberto de armas de fogo, também chamadas de “wiki weapons”. Eles não são os primeiros ou únicos a embarcar no desenvolvimento de armas de fogo impressas, mas se tornaram peça central de lobby a favor da distribuição destas, com seu líder fazendo frequentes aparições na mídia.

Inicialmente seus esforços eram focados na fabricação de partes específicas de armas, mas em 2013 o grupo lançou o primeiro projeto conhecido de arma de fogo totalmente impressa. A Liberator possui código aberto de fácil obtenção e é capaz de conter apenas uma bala por vez. Enquanto fontes como a Popular Mechanics consideram a arma de baixo risco (ver aqui), testes feitos pelo próprio governo dos EUA apontam a eficiência do modelo (ver aqui). Essa arma foi seguida por uma série de outros modelos que aperfeiçoaram o conceito, incluindo desenhos totalmente em plástico, tornando as armas invisíveis a detectores de metal comuns.

Leia mais:  Prós e contras do capitalismo de dados

A impressão em metal progride a passos rápidos, e apesar de seu acesso ao grande público ainda não ser uma realidade, já existem armas sendo criadas com capacidade comparável a armas de fogo industriais. A tendência é que nos próximos anos impressoras capazes de administrar os processos necessários para imprimir uma arma dessa categoria se tornem cada vez mais acessíveis, conforme as técnicas de fabricação sejam aperfeiçoadas pela comunidade. Enquanto no passado recente o custo de uma unidade chegava aos milhões de dólares, hoje em dia já é possível fazer a compra por 500 mil dólares, um preço ainda proibitivo, mas que certamente será rapidamente fracionado.

Casos de armas impressas chamando o interesse de criminosos começam lentamente a surgir. Em fevereiro de 2015, a polícia australiana encontrou em Queensland, na casa de um homem acusado de crimes relacionados a violência e armas, diversas peças impressas em 3D prontas para serem montadas e transformadas em várias armas (ver aqui). Em junho de 2015 a polícia de Hong Kong prendeu um grupo terrorista local que estocava em um galpão diversos explosivos, máscaras, réplicas de rifles, material anti-governo e junto a todos estes materiais, uma impressora 3D (ver aqui). A crença da polícia é que a intenção dos terroristas era usar a impressora para modificar as réplicas de rifles, de modo a transformá-las em armas com poder de fogo real.

Tudo indica, portanto, que armas de fogo impressas em 3D se converterão em ameaça real. Progressivamente, estas armas estão ficando mais sofisticadas e plausíveis de serem empregadas em situações criminosas ou terroristas. Se o ritmo de progresso seguir como está, em poucos anos estará concluído o projeto de arma com letalidade alta. Integrada à dinâmica das novas guerras, tal tecnologia pode se provar de natureza transformadora. Uma vez amadurecido o processo, grupos terroristas poderão dispensar o contrabando de armas e privilegiar a produção em escala de suas próprias armas, tanto por questões de segurança quanto de economia.

Não será possível rastrear essas armas nem interromper a linha de suprimentos, pois será difícil limitar a produção das matérias primas relativamente simples necessárias ao processo. Para que algo assim acontecesse, seria necessário aumentar o já extremamente extenso sistema de espionagem digital estadunidense, buscando monitorar a produção e a impressão de tais armas, algo que poderia ser combatido fazendo com que as máquinas ficassem totalmente desconectadas da Internet. O jogo de gato e rato originário dessa configuração traria uma nova dimensão para o entendimento do terrorismo e avançaria o conceito de guerra digital.

Em países como o Brasil, ainda continuará fazendo mais sentido desviar armas dos órgãos públicos de defesa no caso de grupos criminosos. Criminosos menores continuarão a comprar armas de calibre baixo, facilmente adquiridas de modo ilegal no próprio País ou em países vizinhos. Por enquanto as armas impressas vão se apresentar como uma alternativa, e não como substitutas para as armas tradicionais, mas no longo prazo é plausível pensar em uma maior disseminação. Esse é um assunto que tende a ganhar espaço na agenda dos pesquisadores de Relações Internacionais na próxima década.

Caso queira complementar seu conhecimento a respeito do tema, assista ao documentário produzido para o programa Motherboard e publicado no canal VICE, em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=DconsfGsXyA