A declaração de independência do Kosovo completa uma década em fevereiro de 2018. Desdobramento de um dos episódios mais controversos do Pós-Guerra Fria, a Guerra do Kosovo de 1999, a secessão da província sérvia de maioria étnica albanesa constitui objeto de discórdia internacional, o que se traduz no contestado reconhecimento diplomático do novo Estado e no bloqueio de seu acesso à ONU e a outros organismos multilaterais.

Enquanto os EUA e as principais potências europeias, patronos da separação kosovar, reconhecem formalmente a independência do país, a Sérvia continua a reivindicar a soberania sobre o Kosovo, ostensivamente tendo a Rússia como sua principal apoiadora. Todavia, os esforços de Belgrado nesse sentido têm tido pouco sucesso ao longo dos últimos anos. Além de reveses como o veredicto da Corte Internacional de Justiça (CIJ) de 2010, que não considerou ilegal a declaração de independência, a própria Sérvia, levando em conta sua desfavorável posição internacional, concordou em fazer substanciais concessões à soberania de Pristina, a capital do novo Estado, sobre o território kosovar. Exemplo maior nesse sentido são as negociações mediadas pela União Europeia (UE), que considera a “normalização” das relações entre a Sérvia e o Kosovo, possivelmente na forma de um acordo, uma condição para o desejado acesso, por parte de Belgrado, ao bloco.

Com a continuidade de tal quadro, a estagnação no cumprimento de suas principais demandas nas negociações e as expectativas de que a UE defina 2019 como prazo final para a “normalização”, a Sérvia acena para uma revisão de abordagem para a questão do Kosovo a partir de 2018. É possível que se dê início, desse modo, a um processo que pode resultar em mudanças de impacto quanto à reivindicação da soberania sérvia sobre a antiga província, bem como ao reconhecimento internacional da individualidade política desta última.

O impulso nessa direção partiu do presidente sérvio Aleksandar Vučić, líder do Partido Progressista Sérvio (SNS). No final de julho de 2017, ele publicou texto no Blic, o jornal mais lido da Sérvia, no qual lançou o que seu governo chama de “diálogo interno sobre o Kosovo e Metohija” (denominação comum entre os sérvios, com uso oficial pelo governo. Metohija é o nome sérvio para o oeste do Kosovo, e os sérvios frequentemente se referem à região inteira como “Kosmet”). Na mensagem, Vučić convida a sociedade sérvia a tentar resolver “de uma vez por todas” o conflito com a população albanesa do Kosovo. Para tanto, de acordo com o presidente, seria necessária uma postura pragmática e despida dos mitos históricos e atuais sobre a presença sérvia na região. “É tempo para, como nação, pararmos de enfiar a cabeça na areia como avestruzes e tentar ser realistas”, disse Vučić, complementando que “não devemos nem nos permitir perder ou entregar a alguém o que temos, nem esperar que caia em nossas mãos o que perdemos há muito tempo”.

Como esperado, a iniciativa tem tido recepção mista no cenário político e social sérvio, atraindo apoio e engajamento, de um lado, e rejeição, do outro. Meses depois, Vučić, falando em dolorosos compromissos tanto para Belgrado, quanto para Pristina, anunciou que divulgará sua proposta de solução da questão do Kosovo em março de 2018. Para considerar em maior profundidade a repercussão e os possíveis desdobramentos práticos desse processo, é crucial compreender de antemão o que a Sérvia “tem” e o que “perdeu” no Kosovo desde a guerra de 1999, o que requer uma digressão histórica.

A posição da Sérvia e os antecedentes históricos do “diálogo interno”
Apesar de ainda hoje reclamar a soberania sobre o território do Kosovo, a autoridade da Sérvia sobre a quase totalidade da província já foi efetivamente cerceada ao fim do conflito de 1999 por meio da Resolução 1244 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Muito embora o documento, ainda formalmente em vigor, reconheça a soberania e a integridade territorial da então República Federal da Iugoslávia (Estado do qual a Sérvia é herdeira), a resolução determinou também a retirada dos aparatos policial e militar sérvios/iugoslavos da região, além de estabelecer a ocupação de tropas internacionais em missão de peacekeeping liderada pela OTAN (KFOR). A administração civil, por sua vez, ficou sob os auspícios de missão da ONU (UNMIK).

A autonomia do Kosovo albanês, ainda sob administração internacional, começou a se desenhar pouco tempo depois. Em 2001, foram criadas as chamadas Instituições Provisórias de Autogoverno (PISG, na sigla em inglês), que incluíam a formação de parlamento e governo kosovares. No entanto, a crescente insatisfação albanesa com a administração internacional, bem como episódios de violência interétnica – notadamente o chamado pogrom antissérvia de março de 2004 –, serviram de impulso para negociações sobre o status final do Kosovo patrocinadas pela ONU, lançadas em 2006. Como resultado desse processo, foi apresentado, no ano seguinte, o chamado Plano Ahtisaari, acompanhado de relatório do enviado especial da ONU (o diplomata e político finlandês Marti Ahtisaari) que recomendou a concessão de “independência supervisionada” ao Kosovo. Sugeriu-se, nesse sentido, a soberania da província sérvia, auxiliada por missões internacionais na gestão de determinadas funções civis, policiais, judiciárias, militares e de proteção de minorias.

A sugestão da independência, como esperado, foi categoricamente rejeitada pela Sérvia. Nas discussões sobre o status final do Kosovo, os governos em Belgrado propuseram diversas modalidades de autonomia para a província, conjugadas a certas prerrogativas de autonomia para a população sérvia da região. Nos estágios derradeiros de negociação, no final de 2007, a Sérvia chegou a apresentar proposta inspirada nos casos de Hong Kong e das Ilhas Åland (pertencentes à Finlândia) segundo a qual o Kosovo teria direitos exclusivos de governo em amplos domínios. As exceções seriam as políticas externa e de defesa, o controle de fronteiras e a proteção do patrimônio cultural-religioso sérvio.

Informalmente, ventilou-se também a possibilidade de partilha do território kosovar em linhas étnicas, com as regiões de maioria sérvia colocadas sob domínio de Belgrado. Os albaneses, no entanto, sempre se mostraram inflexíveis em suas demandas pela independência do Kosovo, rejeitando tanto possibilidades de autonomia dentro da Sérvia, quanto de partilha do território. Dessa forma, passando por cima das objeções sérvias e do processo de negociações no âmbito da ONU, onde encontrariam veto russo, as lideranças albanesas, encorajadas e tuteladas pelos EUA, declararam a independência do Kosovo em fevereiro de 2008. Posteriormente, aprovaram constituição baseada no Plano Ahtisaari.

Nos anos que se seguiram, o mandato da UNMIK, embora ainda hoje formalmente ativo, foi progressivamente esvaziado e as instituições kosovares assumiram cada vez mais funções de Estado. Para monitorar as recomendações do Plano Ahtisaari, o Kosovo recebeu uma missão de “supervisão da independência” na figura do Representante Civil Internacional (cargo extinto em 2012). Com caráter formalmente neutro quanto ao status do Kosovo (embora não de facto), foi estabelecida, com concordância da Sérvia, missão da UE de caráter consultivo e executivo em assuntos policiais, judiciários e alfandegários (EULEX). A KFOR, por sua vez, continua até hoje como responsável primordial por assuntos de segurança e defesa, embora as lideranças albanesas falem cada vez mais em estabelecer o exército do Kosovo – no que ainda encontram reservas de Washington.

Contrariada pela secessão, a Sérvia retaliou com a ruptura de contatos com as autoridades do autodeclarado Estado do Kosovo. Além disso, no final de 2008, requisitou, via ONU, o referido parecer consultivo da CIJ a respeito da legalidade da declaração de independência do ponto de vista do direito internacional e da Resolução 1244 do CSNU. Em julho de 2010, a corte, embora não tenha lidado com a questão do exercício da soberania no Kosovo, não enxergou, por outro lado, violação na declaração de independência, frustrando as esperanças de Belgrado. A Sérvia partiu, então, para o caminho de negociações com o Kosovo mediadas pela UE, seduzida pela promessa de Bruxelas de que a “normalização” das relações com Pristina levaria o país ao desejado ingresso ao bloco. Iniciado em março de 2011, o novo framework possui como marco mais significativo o Acordo de Bruxelas de abril de 2013, por meio do qual a Sérvia assumiu o compromisso de não bloquear o processo de entrada do Kosovo na UE. No que concerne à soberania sérvia sobre o território kosovar, todavia, a dimensão de maior impacto do Acordo de Bruxelas é a posição de Belgrado quanto à minoria sérvia da região.

Apesar de milhares de sérvios terem deixado o Kosovo desde 1999 devido à sensação de insegurança perante os albaneses e às degradadas condições econômicas e sociais locais, estima-se que a comunidade sérvia componha de 4% a 8% dos cerca de 2 milhões de habitantes do território (os albaneses constituem ao redor de 90%). Mesmo com o estabelecimento da administração internacional e a posterior declaração de independência, a Sérvia, com variado grau de efetividade, continuou a operar suas próprias instituições políticas nas regiões majoritariamente habitadas por sérvios. Belgrado também continuou a prover suporte econômico e serviços como saúde e educação a essa população, atividades frequentemente envoltas em corrupção e irregularidades.

Em quatro municípios do extremo norte (Zvečan, Zubin Potok, Leposavić e norte de Mitrovica), concentra-se aproximadamente metade da comunidade sérvia do Kosovo. Ali, a lealdade da população a Belgrado e a contiguidade territorial permitiram que a região funcionasse, em grande medida, como parte da Sérvia. Desde 1999, a indisposição com a administração internacional se traduziu em significativa obstrução do mandato da UNMIK, e a rejeição da independência impediu que Pristina fixasse raízes na região após 2008. Vácuos de autoridade também criaram condições para o florescimento da criminalidade e o nascimento de uma elite sérvia local que frequentemente manteve desavenças com Belgrado.

Já ao sul do rio Ibar, que cruza Mitrovica e simbolicamente tem delimitado a fronteira do “Kosovo sérvio”, vive a outra metade da população sérvia espalhada pelo território kosovar. Carente de elementos que facilitassem laços mais próximos com Belgrado, essa parcela, concentrada em enclaves frequentemente protegidos pelas tropas da KFOR, se viu empurrada pelas circunstâncias desfavoráveis a cooperar em maior grau com as instituições internacionais e kosovares, participando, inclusive, do parlamento e de eleições. É também ao sul do Ibar que se localiza o grosso das construções e mosteiros cristãos ortodoxos medievais que constituem patrimônio cultural sérvio (alguns dos quais reconhecidos também como patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO).

Os resquícios de (auto)governo sérvio no Kosovo, chamados de “instituições/estruturas paralelas” por seus oponentes, são tidos há muito tempo como obstáculo ao acesso da Sérvia à UE, e seu desmonte é um dos objetivos das negociações mediadas pelo bloco. Assim, pelo Acordo de Bruxelas, Sérvia e Kosovo se comprometeram a estabelecer a União dos Municípios Sérvios, ou ZSO, na sigla em sérvio. Objeto de novo acordo selado em agosto de 2015, a ZSO foi concebida como plataforma de autonomia para os municípios de maioria sérvia. Além disso, deve funcionar como canal de sua representação junto às instituições centrais em Pristina em consonância com as leis do Kosovo. Nesse sentido, o Acordo de Bruxelas também lançou as bases para a absorção das estruturas policiais e de segurança dos quatro municípios do norte, em parte operadas pela Sérvia, às instituições kosovares equivalentes. O mesmo processo foi determinado para as estruturas judiciárias sérvias atuantes na região, que funcionavam dentro do sistema de Belgrado. Em ambos os casos, foi acordado que a integração se daria respeitando proporcionalidade étnica.

Sob os governos do SNS de Vučić, esses compromissos sinalizaram uma significativa mudança de abordagem da Sérvia para a questão do Kosovo. Em vez das tentativas de obstrução legal da independência e dos esforços de governo “paralelo”, a postura de Belgrado passou a ter como foco tentar assegurar influência sobre a situação local e os direitos da minoria sérvia a partir do engajamento com as instituições kosovares. Ao mesmo tempo em que negocia, contudo, a Sérvia evita incorrer no alto custo político do reconhecimento diplomático oficial: entre outras formalidades, Belgrado, por exemplo, ainda hoje se refere às instituições do Kosovo como as PISG.

Como principais fundamentos da nova estratégia figuram, entre outros fatores, as provisões legais de representação da minoria sérvia no Kosovo, assumidas pelas lideranças albanesas de acordo com o Plano Ahtisaari. Dos 120 mandatos no parlamento kosovar, 10 são destinados aos sérvios, aos quais também são garantidos, entre outros direitos políticos, funções executivas em ministérios e coalizões de governo. Mudanças constitucionais no Kosovo, por sua vez, requerem, além de maioria de dois terços do total de parlamentares, dois terços dos votos dos 20 representantes de minorias – o que, em teoria, confere direito de veto aos sérvios com um mínimo de 7 de seus 10 votos.

No contexto do Acordo de Bruxelas, a execução da estratégia de Belgrado envolveu a criação de um partido para concentrar a representação da comunidade sérvia nas instituições do governo central kosovar e no nível municipal. Para tanto, foi criada a Lista Sérvia (Srpska lista, em sérvio), que funciona, na prática, como um apêndice do governo de Aleksandar Vučić no Kosovo. O empreendimento de monopolização da representação política nas mãos da Lista Sérvia encontrou resistência (em especial nos municípios do norte), e sua ascensão política tem sido marcada por acusações de pressão, intimidação e violência contra os representantes de outras correntes políticas dos sérvios do Kosovo. Na esteira das eleições de 2017, a Lista Sérvia assegurou 9 dos 10 mandatos sérvios no parlamento, assim como as prefeituras de todos os municípios de maioria sérvia do Kosovo. Em nome da estratégia adotada por Belgrado, o partido chegou até mesmo a aderir à coalizão governamental formada em 2017 sob a liderança de Ramush Haradinaj, ex-líder do Exército de Libertação do Kosovo (ELK). Haradinaj é acusado pela Sérvia de crimes de guerra e Belgrado ainda hoje alega buscar prendê-lo – mesmo após malsucedidas tentativas.

Passados quase cinco anos da assinatura do Acordo de Bruxelas, a implementação completa dos compromissos assumidos ainda é um prospecto distante. Nesse sentido, um quadro de estagnação nas negociações se consolidou em 2017 com a suspensão do diálogo por parte do Kosovo, em retaliação à tentativa da Sérvia de prender Haradinaj. Ainda assim, houve avanço em tópicos como o sistema judiciário, com a integração de quadros sérvios ocorrendo em outubro de 2017. A absorção das estruturas policiais e de segurança sérvias, por sua vez, encontra-se parcialmente executada, o que Belgrado atribui à obstrução das autoridades albanesas.

Como esperado, a implementação da ZSO tem sido o ponto de maior discórdia entre a Sérvia e o Kosovo. Ao contrário do que propõe Belgrado, as lideranças albanesas interpretam a ZSO como simples órgão de coordenação política para a comunidade sérvia, sem competências executivas. Nesse sentido, veredicto da corte constitucional kosovar, em dezembro de 2015, enxergou que a ZSO fere parcialmente a carta magna do Kosovo. A indisposição reflete os temores, mais acentuados entre membros da oposição albanesa, de que a ZSO sedimentaria uma divisão étnica de viés secessionista. Em consequência, de acordo com esse argumento, a governança no Kosovo se tornaria disfuncional, e a Sérvia garantiria um poderoso instrumento para influenciar assuntos locais. Além desse desacordo crucial, Pristina também condiciona a implementação da ZSO à extinção completa das instituições “paralelas” mantidas pela Sérvia no Kosovo.

De uma perspectiva geral, a estagnação da implementação do Acordo de Bruxelas e de seus complementos se deve às convicções fundamentalmente incongruentes que a Sérvia e o Kosovo têm sobre a natureza das negociações. Para Pristina, trata-se de um caminho sem volta para o reconhecimento diplomático de sua soberania sobre o Kosovo por parte da Sérvia, visão reiterada após o anúncio de Aleksandar Vučić sobre o “diálogo interno”. Além desse obstáculo, a estratégia sérvia possui potenciais fragilidades. Tentativas de influir por dentro do sistema político kosovar a partir da minoria sérvia nem sempre são garantia de sucesso: leis podem ser aprovadas por maioria simples no parlamento, inclusive após passar pelo chamado Comitê de Interesses e Direitos das Comunidades, onde a distribuição de votos elimina a possibilidade de veto sérvio. Nesse sentido, legislação sobre assuntos divisivos entre Belgrado (e os sérvios do Kosovo) e Pristina já foi aprovada ante objeções sérvias. As lideranças albanesas também já indicaram, no passado, disposição de passar por cima de instâncias de veto em questões polêmicas, como a criação do exército do Kosovo.

Por fim, outro ponto de tensão para Vučić diz respeito à legitimidade interna da postura de seu governo. Parte significativa da sociedade e setores da oposição sérvia, em especial as parcelas mais nacionalistas, enxergam a política do atual presidente para o Kosovo como uma forma de reconhecimento velado da independência da província. Já do ponto de vista dos sérvios do Kosovo, é comum a percepção de que as negociações são um processo não democrático e não transparente do qual são excluídos por Belgrado. Esses ressentimentos ganharam novas dimensões com a criação da Lista Sérvia e seus controversos métodos de atuação, que fortalecem o sentimento de que os sérvios do Kosovo são mera moeda de troca na barganha de Vučić pelo acesso da Sérvia à UE.

O “diálogo interno”: repercussão e possíveis desdobramentos
Sob o peso dessa complicada herança histórica, a agenda do “diálogo interno” na Sérvia tem se desenvolvido em larga medida de acordo com as divisões políticas, partidárias e ideológicas que se sedimentaram no país durante os governos liderados pelo SNS de Vučić, no poder desde 2012. Dessa forma, dificilmente se chegará a um consenso sobre o assunto.

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No cenário político, diversos aliados do presidente se pronunciaram favoravelmente a respeito da iniciativa. O mais proeminente deles foi o ministro de relações exteriores da Sérvia, Ivica Dačić. Líder do Partido Socialista da Sérvia (SPS, ao qual pertencia Slobodan Milošević), Dačić anunciou (vaga) proposta de resolução para a questão do Kosovo. Para o ministro, que tem raízes na antiga província, a manutenção de todo o território sob soberania da Sérvia só se garantiria por meio da guerra, o que, em suas palavras, seria uma batalha de antemão perdida nas atuais condições históricas e geopolíticas. Assim, Dačić falou da necessidade de um histórico acordo por meio do qual se “delimitaria o que é sérvio e o que é albanês”, além de propor a autonomia dos mosteiros sérvios, a criação de uma ZSO para os sérvios do sul do Kosovo e a compensação financeira pelas propriedades privadas e estatais sérvias “usurpadas” na região. Dačić já havia manifestado opinião similar anos antes, e a intencional ambiguidade do termo “delimitação” indica sua abertura para a controversa possibilidade de partilha territorial do Kosovo de acordo com a distribuição étnica de sérvios e albaneses. A ideia da partilha tem longo pedigree na Sérvia e paradoxalmente teve como maior expoente o famoso intelectual nacionalista Dobrica Ćosić. Para Ćosić, a permanência no território sérvio de uma larga população albanesa nacionalista e com aspirações à independência seria uma “ferida cancerígena” para o país.

Além de Dačić e sua alusão à partilha, figuras menores da coalizão de Vučić também se pronunciaram. Rasim Ljajić, ministro de comércio, turismo e telecomunicações, sugeriu a continuidade dos atuais pilares das negociações com Pristina. Embora sem incorrer no reconhecimento, a Sérvia negociaria o ingresso do Kosovo em diversas organizações internacionais – à exceção da ONU – e receberia, em troca, compensações financeiras e a aceleração de sua entrada na UE. Já Vuk Drašković, veterano da política sérvia e convicto defensor da integração do país à UE e à OTAN, defendeu, sem falar explicitamente em reconhecimento, a “normalização” completa das relações com aceitação do Plano Ahtisaari. Para Drašković, o Kosovo já foi perdido por Slobodan Milošević em 1999, e a soberania sérvia sobre seu território resta apenas como uma deletéria ficção na constituição do país. A permanência das provisões constitucionais, na visão do político pró-ocidental, é um “muro” para a entrada na UE, de forma que deveriam ser removidas para que a Sérvia tire pleno proveito da paz, das reformas institucionais e da prosperidade alegadamente resultantes da associação ao bloco.

Já do lado dos opositores de Aleksandar Vučić, a recepção foi bastante negativa. Em geral, críticos afirmam que a iniciativa não tem sido democrática e visa tão somente a dar uma fachada de legitimidade a uma eventual decisão de Vučić. Esta, por sua vez, envolveria mais concessões aos albaneses em detrimento dos interesses sérvios, como afirmou o presidente do Partido Democrático (DS), Dragan Šutanovac. Ex-companheiro de Šutanovac no DS, Boris Tadić, presidente da Sérvia à época da declaração de independência e do início das negociações com a UE, acredita que Vučić apenas deseja compartilhar a responsabilidade pelo reconhecimento de facto do Kosovo sinalizado pelo Acordo de Bruxelas.

Terceiro colocado nas eleições presidenciais de 2017, Vuk Jeremić, que foi ministro de relações exteriores de Tadić e presidente da Assembleia Geral da ONU, classificou o “diálogo interno” como uma farsa do autoritário governo de Vučić, cujo resultado final será a aceitação do Kosovo na ONU. Saša Janković, maior rival de Vučić nas eleições de 2017, é de opinião similar. Já Saša Radulović, dissidente dos governos do SNS, criticou a falta de abertura à sociedade civil no “diálogo interno” e defendeu que a execução de qualquer acordo com os albaneses deveria ser submetida a referendo nacional e garantias internacionais. Por fim, o Partido Liberal Democrático (LDP) liderado por Čedomir Jovanović, opção de maior inclinação pró-ocidental no espectro político-partidário sérvio, apresentou posição mais aberta ao “diálogo interno”. O LDP afirma que a Sérvia deveria desistir de obstruir o reconhecimento internacional do Kosovo e, com a aproximação a Pristina, acelerar seu ingresso na UE e na OTAN.

Na fragmentada parcela mais nacionalista da cena política sérvia, as críticas foram de sentido similar às mencionadas acima, mas com tom mais forte típico de sua posição intransigente quanto à delicada questão do Kosovo. Em manifesto publicado em outubro, o partido Dveri, em conjunto com alguns antigos líderes políticos do norte do Kosovo, rechaçou o “diálogo interno” como uma cortina de fumaça para o vindouro reconhecimento de facto da independência da província. De fortes convicções pró-russas, o grupo demandou a interrupção do “anticonstitucional” Acordo de Bruxelas e das negociações com a UE, e exigiu o retorno das discussões sobre o Kosovo para o âmbito da CSNU. Implicitamente, acenam, desse modo, para o fortalecimento da posição da Sérvia com o apoio da Rússia. O manifesto também afirma a categórica rejeição a qualquer partilha territorial da província e a necessidade de discussões no parlamento sobre o assunto, bem como a participação popular por meio de referendo.

O antes forte Partido Democrático da Sérvia (DSS), que estava no poder à época da declaração de independência e por muitos anos foi a principal força política no norte do Kosovo, rejeitou o “diálogo interno” por não dar devido peso aos partidos políticos e à Igreja Ortodoxa Sérvia (SPC) nas discussões. No início de 2018, o DSS, em conjunto com importantes membros da SPC e renomados intelectuais nacionalistas sérvios, lançou o “Apelo pela defesa do Kosovo e Metohija”, semelhante ao manifesto do Dveri. Em típica linguagem nacionalista, referindo-se ao Kosovo como a “Jerusalém sérvia”, o documento denuncia as “anticonstitucionais” negociações com a UE e o perigo de “entrega” da província ante as pressões dos EUA e da UE. Defende-se, ainda, a manutenção de um estado de “conflito congelado” no Kosovo (à semelhança do Chipre) e a volta das negociações para o âmbito do CSNU. Curiosamente, as críticas e a sugestão do modelo cipriota são similares à de dissidentes do DSS. Por fim, o Partido Radical Sérvio (SRS), no qual Aleksandar Vučić construiu sua carreira política, defendeu a mesma ideia de interrupção das negociações mediadas pela UE. Outrora forte partido conhecido pela retórica nacionalista extremada, o SRS, liderado pelo polêmico Vojislav Šešelj – ícone das guerras iugoslavas dos anos 1990 – , diz ser favorável a que a questão do Kosovo seja novamente discutida na ONU, onde a Sérvia teria o suporte da Rússia.

No que tange à sociedade sérvia, pesquisa de opinião pública mostrou que pouco mais de dois terços apoiam a iniciativa de Vučić e acreditam na necessidade do diálogo, embora mais da metade considere improvável que se atinja um consenso nacional sobre o assunto. Quase 70% são pessimistas quanto à possibilidade de o “diálogo interno” se desdobrar na solução para a questão do Kosovo. É importante salientar, nesse sentido, a ambiguidade dos sérvios sobre o tema. Embora o euroceticismo tenha índices relativamente altos, por vezes parelhos aos de apoio à entrada na UE, pesquisas mais recentes mostram que uma pluralidade ainda é favorável ao ingresso no bloco. Nesse sentido, 70% são contrários a que a Sérvia reconheça a independência do Kosovo no caso de Bruxelas impor tal ato como condição de acesso. Apenas 3% dos sérvios veem o reconhecimento da independência como solução realista, enquanto que mais de 40% acreditam na partilha e cerca de 30% acham que a solução pode ser postergada até que o país se encontre em situação mais favorável. Mais de 70% se opõem a novo conflito armado para manter a província sob controle sérvio. Entre os sérvios do Kosovo, a opinião prevalecente é negativa: maioria acredita que o “diálogo interno” se desdobrará na “entrega definitiva do Kosovo e Metohija às mãos de Pristina” e na retirada final da Sérvia do território da província, que seria integrada plenamente ao sistema político kosovar.

Como em qualquer discussão sobre o Kosovo na Sérvia, o tema do patrimônio cultural-religioso sérvio e o papel da Igreja Ortodoxa Sérvia também tem sido levantado no “diálogo interno”. Tradicionalmente envolvida na política sérvia, a SPC encontra-se dividida quanto à iniciativa. Parte de seus membros, inclusive, se engajaram em aberta polêmica contra Aleksandar Vučić. O patriarca Irinej, chefe da SPC, deu a entender sua oposição ao reconhecimento da independência, mas expressou apoio à iniciativa de Vučić e confiança na política do presidente para o Kosovo. Por outro lado, Amfilohije Radović, influente líder da SPC no Montenegro, foi um dos signatários, em conjunto com outras figuras de alto escalão da igreja, do “Apelo pela defesa do Kosovo e Metohija”. Radović, tido como “político de batina” e conhecido pelo discurso ultranacionalista e conservador, criticou qualquer possibilidade de acordo com os “terroristas que governam o Kosovo e Metohija ocupado”, razão por que foi pesadamente criticado pelo governo do SNS.

Como parte do “diálogo interno”, o governo do SNS organizou uma série de debates com intelectuais, a comunidade acadêmica e associações da sociedade civil na Sérvia. De uma dessas discussões, Aleksandar Vučić chamou atenção publicamente para a sugestão do jurista Vladan Kutlešić, colaborador de Slobodan Milošević nos anos 1990. A proposta consiste na formação de uma união estatal entre a Sérvia e o Kosovo, como dois países independentes, chancelada por acordo internacional fiado pelas grandes potências. Em troca do reconhecimento da independência do Kosovo, a Sérvia seria compensada com extensa autonomia para os sérvios no norte e variados graus menores de autonomia para os sérvios no restante do Kosovo e nas propriedades da SPC. A Sérvia e o Kosovo ainda permaneceriam institucionalmente ligados enquanto união alfandegária e monetária, e formariam um mercado comum. Na ONU, os dois Estados se comprometeriam, por meio de acordo, a não votar um contra o outro.

A partir de um eventual plano surgido do “diálogo interno”, o futuro das negociações quanto ao Kosovo dependerá fundamentalmente, ainda, do elemento externo. Tendo em vista possibilidades de alargamento para os Bálcãs, há indicativos de uma indisposição da UE para “importar conflitos” e disputas bilaterais, razão por que seus representantes saudaram publicamente o “diálogo interno”. Nesse sentido, como já mencionado, especula-se que a UE aumente as pressões para a “normalização” definitiva em 2019. Esta seria, de acordo com a chamada Estratégia de Alargamento, uma condição para que a Sérvia seja admitida até 2025, prazo de ingresso mais otimista do ponto de vista de Bruxelas.

Os albaneses, por sua vez, devem se manter intransigentes na demanda pela aceitação da independência, a extensão da autoridade de Pristina a todo o território kosovar e a limitação das prerrogativas políticas da minoria sérvia. Entre os albaneses do Kosovo, a iniciativa do “diálogo interno” foi recebida como um indicativo de que a Sérvia virá, finalmente, a reconhecer a soberania de seu Estado. Nesse sentido, uma tendência importante no Kosovo nos últimos anos é o fortalecimento do partido Vetëvendosje (“autodeterminação” no idioma albanês), de plataforma nacionalista e crítica da presença e da influência internacionais na política kosovar. Oriundo de círculos externos à elite política originária do ELK (mais aberta a negociações com a Sérvia e à cooperação com os EUA e a UE), o Vetëvendosje se diz contrário ao atual formato de negociações mediado pela UE. Além da demanda pelo reconhecimento, o partido defende que negociações sobre o sistema político do Kosovo devem ser feitas em contato direto com a minoria sérvia, sem interferência de Belgrado.

Para fortalecer sua posição, as atuais lideranças albanesas clamam por presença direta dos EUA nas negociações com a Sérvia. De acordo com o presidente kosovar Hashim Thaçi, Mike Pence, o vice de Donald Trump, já teria dado garantias nesse sentido. No contexto da “ameaça russa” nos Bálcãs, os pedidos albaneses são convergentes com a opinião de círculos intelectuais e políticos próximos ao policy making em Washington, os quais advogam maior engajamento dos EUA na região. Relatório do think tank Atlantic Council publicado no final de 2017 sugere à administração em Washington auxiliar Aleksandar Vučić e Hashim Thaçi a atingir um “acordo final” entre a Sérvia e o Kosovo. De uma perspectiva regional mais ampla, o documento propõe ainda o fortalecimento da presença militar norte-americana a partir da base Camp Bondsteel, localizada no Kosovo, para elevar a capacidade de os EUA influenciarem os assuntos balcânicos. Um “rapprochement histórico” com a Sérvia, onde é forte o ressentimento com os EUA em virtude da guerra de 1999, também é levantado como fator para assegurar a estabilidade regional nos termos de Washington. Mais recentemente, recomendações nesse sentido também foram feitas por senadores norte-americanos com o intuito de conter a “influência maligna” da Rússia sobre a Sérvia. Por fim, ainda em 2017, especulou-se que Condoleezza Rice, secretária de Estado à época da declaração de independência, seria apontada para monitorar as negociações mediadas pela UE.

Os EUA apoiam e estimulam o formato de negociações mediado pela UE e atuam nos seus bastidores. Mesmo que não participem diretamente de um eventual novo formato de negociações, continuarão a fazer sentir seu peso, entre outros fatores, a partir da enorme influência que têm sobre a política do Kosovo e as lideranças albanesas. Na prática, as relações entre Washington e Pristina, em muitos sentidos, são como a de um protetorado, no qual diplomatas norte-americanos são atores cruciais nas decisões referentes aos principais temas da agenda política kosovar. Os EUA devem insistir na “normalização” definitiva, com a retirada das “estruturas paralelas” sérvias e a extensão da autoridade de Pristina a todo o território kosovar. Aos olhos norte-americanos, a partilha territorial não é atrativa, pois a plena integração da comunidade sérvia ao sistema político kosovar é interessante na medida em que criaria a fachada de uma democracia multiétnica bem-sucedida no Kosovo. Tal desfecho legitimaria, em última instância, a controvesa intervenção da OTAN em 1999 e a própria independência do Kosovo enquanto projeto eminentemente norte-americano surgido daquela ação militar.

Em contraposição à demanda albanesa pela inclusão dos EUA nas negociações, Aleksandar Vučić assegurou a prontidão da Rússia em também participar da mediação da questão do Kosovo, informação que não foi oficialmente confirmada pelo Kremlin. Em badalada visita a Moscou no final de 2017, Vučić recebeu de Vladimir Putin o apoio a “qualquer solução mutuamente aceitável que venha a ser atingida entre Belgrado e Pristina”. Trata-se, em essência, da mesma posição que a Rússia vem mantendo há anos sobre o Kosovo, inclusive nas negociações de status que precederam a declaração de independência. O vago tom sugere que o Kremlin não tem apetite acentuado para se envolver a fundo e propor novas ideias para a questão, não obstante a pauta bilateral entre Belgrado e Moscou sobre a Rússia como maior protetora da integridade territorial sérvia e a ácida retórica oficial russa contra o “quase-Estado” Kosovo, suas lideranças e a ideologia da “Grande Albânia”. No contexto de debates sobre as aspirações e o alcance da influência da Rússia nos Bálcãs, há um gritante contraste com o ativo envolvimento diplomático russo nos conflitos sírio e ucraniano, por exemplo.

De qualquer forma, no atual estado das relações da Rússia com os EUA e a UE, é improvável que Washington e Bruxelas aceitem ceder espaço para a influência de Moscou sobre uma questão aberta de uma região na qual são em larga medida dominantes política e estrategicamente. Mesmo que um novo formato com a Rússia e os EUA venha a se tornar realidade, a falta de avanços em direção a um compromisso, por parte da Sérvia e do Kosovo, tenderia a reproduzir os impasses das negociações de status anteriores a 2008. Diante de tal cenário, a própria declaração de independência, que desconsiderou procedimentos no sistema da ONU e o implícito veto russo, é ilustrativa dos limites da ajuda russa para a Sérvia. Na atualidade, a influência (geo)política favorável aos EUA e à UE nos Bálcãs certamente obstruiria, mais uma vez, a capacidade russa de extrair concessões para a Sérvia.

Enquanto se aproxima o alegado anúncio da proposta de Aleksandar Vučić, há ainda muitas dúvidas sobre qual será o conteúdo da política da Sérvia para o Kosovo. Não obstante as ambiguidades,os rumores e as críticas, Ivica Dačić afirmou repetidas vezes que o “diálogo interno” não conduzirá ao reconhecimento, o que, em suas palavras a Sérvia nunca fará. Nos bastidores diplomáticos, inclusive, parece haver uma “batalha de reconhecimentos”. No final de 2017, Suriname e Guiné-Bissau revogaram seus reconhecimentos do Kosovo, e Dačić afirma haver conversas nesse sentido com representantes de outros países. Recentemente, a mídia sérvia especulou que o Egito seria o próximo a desistir do reconhecimento, enquanto que uma série de outros países estaria negando ter estabelecido relações diplomáticas com o Kosovo no passado.

Por fim, há de se considerar que o futuro das negociações poderá ser influenciado, ainda, por episódios como o recente assassinato de Oliver Ivanović, líder político dos sérvios do norte e opositor de Vučić. A repercussão do acontecimento, assim como o caso da prisão de Ramush Haradinaj, ilustra como a complicada realidade da região pode alimentar tensões, racionalizar a intransigência e trazer reviravoltas para processos políticos em curso. Levando em conta os fatores discutidos e o histórico de dificuldades na chegada de compromissos quanto ao Kosovo, a “normalização” das relações, o que quer que signifique concretamente, certamente passará por um caminho tortuoso – seja qual for o eventual plano de Aleksandar Vučić a partir do “diálogo interno”.