Entrevista concedida ao jornalista italiano Davide Casati, em Bruxelas,e publicada no jornal Corriere della Sera (http://goo.gl/7kGoam) e no portal Social Europe (https://goo.gl/CDF6if) em 25 e 27 de julho de 2016.

Tradução de Marco Aurélio Nogueira.


Estamos assistindo, com força expressiva nas últimas semanas, ao desenrolar de uma época marcada pelo medo e pela incerteza. A tese, que tem sido sistematicamente reiterada pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman, faz com que ele não alimente fáceis ilusões: “os demônios que nos perseguem não irão evaporar”, pois eles nascem e se alimentam dos próprios elementos que constituem nosso modo de vida e nossas sociedades.

Nessa entrevista, o pensador polonês explora sua visão do mundo e suas teses. Ele fala pensando sobretudo na Europa, mas as considerações que faz abarcam o conjunto do mundo contemporâneo.

Diante da cadeia de ataques que atingiram a Europa nas últimas semanas, o continente está tentando fazer as contas com um abismo de medo e insegurança. Que respostas podem ser alcançadas?

As raízes da insegurança são muito profundas. São existenciais: penetram fundo em nosso modo de viver, nascem e renascem diariamente da substituição em curso da solidariedade humana pela desconfiança mútua e pela concorrência desenfreada, são impulsionadas pelo enfraquecimento dos laços interpessoais, da dissolução das comunidades, da tendência de confiar a indivíduos providenciais a resolução de problemas de relevância mais ampla, social.  O medo gerado por essa situação, em um mundo submetido aos caprichos de poderes econômicos desregulamentados e fora de controles políticos, aumenta e se difunde sobre todos os aspectos de nossas vidas.  E faz com que se passe a buscar em vão um alvo, um objetivo sobre o qual se concentrar – um alvo palpável, visível e ao alcance das mãos.

Um objetivo que muitos visualizam no fluxo de refugiados e migrantes.

Muitos desses provêm de uma situação em que estavam seguros da própria posição na sociedade, do seu trabalho, da sua educação. De repente, tornam-se refugiados, perderam tudo. No momento da chegada, entram em contato com a parte mais precária das nossas sociedades, que neles veem a realizações de seus pesadelos mais profundos.

Diante desse desafio, crescem os pedidos de certas forças políticas para que se construam novos muros. Trata-se de uma resposta sensata?

Creio que se deve estudar, memorizar e aplicar a análise que papa Francisco, em seu discurso de agradecimento pelo prêmio Carlos Magno, dedicou aos perigos mortais do “aparecimento de novos muros na Europa”. Muros erguidos – de modo paradoxal e com má-fé – com a intenção e a esperança de que se possa ficar ao abrigo do tumulto de um mundo pleno de riscos, armadilhas e ameaças. O Pontífice observa, com profunda preocupação, que se os pais fundadores da Europa, “mensageiros de paz e profetas do futuro”, nos inspiraram “a criar pontes e a derrubar muros”, agora a família de nações que foram por eles impulsionadas parecem estar “sempre menos à vontade na casa comum. O desejo novo e celebrado de criar unidade parece esvaziar; nós, herdeiros daquele sonho, estamos tentando nos basear somente em nossos interesses egoístas, criando barreiras”.

Em seus estudos, o senhor indicou como valores fundadores das nossas sociedades a liberdade e a segurança: depois de uma época em que, para fazer com que a primeira crescesse, renunciamos gradativamente à segunda, agora o pêndulo se inverteu. Que reflexos políticos derivam disso?

Temos diante de nós desafios de uma complexidade que parece insuportável. E por isso aumenta o desejo de que se consiga reduzir essa complexidade a medidas simples, instantâneas. Com isso, expandiu-se o fascínio de “homens fortes”, que prometem – de modo irresponsável, enganoso e bombástico – encontrar aquelas medidas e resolver a complexidade. “Deixem comigo, confiem em mim”, dizem, e “resolverei tudo”. Em troca, pedem uma obediência incondicional.

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Isso parece ser o que está propondo o candidato republicano às eleições norte-americanas, Donald Trump, cujas posições sobre segurança e imigração foram recentemente indicadas pelo presidente húngaro Viktor Orban como modelos até mesmo para a Europa…

Estamos assistindo a uma tendência preocupante: instâncias de tipo social, como precisamente a integração e o acolhimento, são apontadas como problemas a serem transferidos para órgãos de polícia e segurança. Isso significa que o espírito fundador da União Europeia não está em boas condições de saúde, porque a característica decisiva da inspiração que está na base da EU é a visão de uma Europa em que as medidas militares e de segurança deveriam ir se convertendo – gradual, mas constantemente – em coisas supérfluas.

O Islã é apontado por algumas forças políticas – por exemplo, a alemã Pegida (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) – como uma fé intrinsecamente violenta, incompatível com os valores ocidentais. O que o senhor pensa a respeito?

É preciso evitar categoricamente o erro, perigoso, de tirar conclusões para o longo curso a partir da fixação de algumas coisas. Como disse o grande sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), no fundo da nossa atual confusão está o fato de já estarmos vivendo em uma situação “cosmopolita”, que nos obrigará a coabitar de modo permanente com culturas, modos de vida e fés diversas, sem que tenhamos desenvolvido de forma plena a capacidade de compreender suas lógicas e seus requisitos: sem termos, portanto, uma “consciência cosmopolita”. E é verdade que o preenchimento da distância entre a realidade em que vivemos e as nossas capacidades de compreensão não é um objetivo que se possa alcançar rapidamente. O choque está somente no início.

Estamos portanto destinados a viver em sociedades na quais o sentimento dominante será o do medo?

Trata-se de uma perspectiva sombria e perturbadora, mas atenção: a situação de sociedades dominadas pelo medo não é de modo algum um destino predeterminado, nem inevitável. As promessas dos demagogos podem se afirmar, mas também têm, por sorte, vida breve. Uma vez que novos muros vierem a ser erguidos e mais forças armadas forem dispostas nos aeroportos e nos espaços públicos; uma vez que se recusem os pedidos de asilo de quem procura fugir de guerras e destruições e que mais migrantes sejam repatriados, ficará evidente que tudo isso é irrelevante para resolver as causas reais da incerteza. Os demônios que nos perseguem – o medo de perder nossa posição na sociedade, a fragilidade das metas que definimos – não irão evaporar, não desaparecerão. Nesse ponto, poderemos despertar e desenvolver os anticorpos contra as sereias dos demagogos e dos bufões agitadores que tentam conquistar capital político com o medo, jogando-nos fora da estrada. O temor é que, antes que esses anticorpos sejam desenvolvidos, muitos vejam as próprias vidas serem destruídas.

O senhor tem defendido que as possibilidades de hospitalidade não são ilimitadas, mas que também não o é nem sequer a capacidade humana de suportar sofrimento e rejeição. Diálogo, integração e empatia, porém, exigem tempos longos…

Respondo citando mais uma vez papa Francisco: “sonho com uma Europa em que ser um migrante não seja um crime, uma Europa que promova e proteja os direitos de todos sem esquecer os deveres perante todos. O que se passou com você, Europa, local destacado de direitos humanos, democracia, liberdade, terra mãe de homens e mulheres que arriscaram e perderam a própria vida para defender a dignidade dos próprios irmãos?”.  Tais perguntas se dirigem a todos nós; a nós que, enquanto seres humanos, somos plasmados pela história que contribuímos a plasmar, conscientemente ou não. Cabe a nós encontrarmos respostas a essas perguntas e as exprimirmos em fatos e palavras. O maior obstáculo para que encontremos essas respostas é a nossa lentidão em procurá-las.