Gessica Carmo, Marcela Franzoni e Vanessa Capistrano

Pesquisadoras NEAI

[Cartoon de Leen Boer]

 

No dia 23 de junho de 2016, a população do Reino Unido decidiu em plebiscito se separar da União Europeia. Foi um dia histórico, visto que o Reino Unido é um Estado de peso no sistema internacional e a União Europeia, conforme a literatura especializada, é o projeto mais acabado de integração regional. Desde o início do processo de integração, o Reino Unido se mostrou cético quanto à união com os demais Estados por acreditar ter economia superior, por não confiar no sucesso conjunto e pela proximidade estratégica com os Estados Unidos. Desse modo, não quis participar das negociações. Depois, diante do sucesso econômico europeu nos anos de 1950/1960, o Reino Unido fez de sua entrada no bloco seu objetivo principal. A França de De Gaulle, porém, não foi favorável, respondendo com dois vetos. O Reino Unido finalmente ingressou em 1973 e, a partir de então, consagrou-se como um ator regional importante, principalmente no que diz respeito à contribuição orçamentária.

O orçamento é, inclusive, um dos principais motivos pelos quais o Reino Unido problematizou sua permanência no bloco europeu. Também foram utilizados como argumentos pró-saída a necessidade do país de recuperar soberania, especialmente no que se refere à capacidade decisória e de negociação de acordos bi e multilaterais. O ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, ativo militante do “Exit”, até chegou a afirmar que ser membro da União Europeia é incompatível com a soberania parlamentar. Ademais, a crise econômica de 2008 e a atual crise humanitária, com a chegada de milhares de imigrantes ao continente, foram ainda fatores catalisadores, tendo a questão migratória ocupado papel central, segundo pesquisas.

Do outro lado, diversas personalidades políticas, culturais e intelectuais advogaram pela permanência do Reino Unido na EU, inclusive o premiê britânico, David Cameron, apesar de ser membro do Partido Conservador, pró-saída da UE. Todos os defensores partiram da premissa de que o Reino Unido é mais forte como integrante da União Europeia. Barack Obama, inclusive, chegou a afirmar, em abril de 2016, que apesar de provável um acordo comercial entre o Reino Unido e os EUA, ele não acontecerá em breve, já que a prioridade do país é negociar o mega-acordo comercial com a UE, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos. Agora, com o resultado do referendo, não se sabe como fica a participação do Reino Unido, já que sua saída do bloco será negociada nos próximos meses.

Hoje, quando os líderes europeus se manifestaram sobre o resultado do referendo, muitos pediram cautela, já que o futuro ainda é bastante incerto. De qualquer forma, o Reino Unido terá que negociar um acordo com o bloco, agora como país externo, além de estabelecer relações de cooperação com outros parceiros, o que não deixa de ser um desafio. Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, afirmou antes do referendo que caso o Reino Unido votasse pela saída do bloco, a vida comunitária não seria mais como antes e o país teria que aceitar ser considerado um terceiro Estado. Do ponto de vista interno, agências de rating, economistas e instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, alertaram para o risco de recessão econômica caso a saída do Reino Unido se confirmasse. Ademais, para o processo de integração europeu em si, que grande parte dos analistas acreditava ser irreversível, a saída de um Estado pode desencadear um efeito dominó de retirada regional, como já ocorre em menções de plebiscito na França e em outros países, por exemplo.

A decisão da maioria britânica de sair da União Europeia revelou também um sentimento de desilusão com o establishment político europeu. A vitória do Brexit levou a uma forte instabilidade nos mercados europeus e asiáticos, com a consequente queda histórica da libra frente ao dólar. Como resultado do aumento das pressões políticas internas, David Cameron renunciou tão logo os resultados foram proclamados. A posição favorável à permanência do Reino Unido no bloco, apresentada pelo primeiro-ministro, é o que justificaria a sua incompatibilidade, segundo as perspectivas da ala mais conservadora, para gerir as negociações futuras. Além dos desafios já mencionados que o país terá pela frente, o resultado do referendo também pode ser interpretado como uma grave crise de liderança política, com o evidente fracasso dos líderes europeus em administrar problemas cruciais de longo prazo.

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The Economist já havia resumido o problema enfrentado pelo Reino Unido ao mencionar, em 2014, que o Palácio de Westminster, onde está a sede do Parlamento, “simplesmente parou de fazer as coisas”. O fato é que com o acirramento da recessão econômica, o aumento das disparidades entre o norte e o sul, os crescentes fluxos migratórios, o alto índice de desemprego, a ameaça constante da deflação e, principalmente, o esvaziamento do processo político e dos discursos políticos britânicos, conduziram de forma ampla a uma tendência de “antipolítica” no bojo da sociedade inglesa. A “fragmentação” e o “isolamento” passaram a se constituir elementos-chave dos “partidos de protesto”, seja no Reino Unido ou no restante da Europa.

Exemplos desse esgotamento da “velha política” aparecem no aumento drástico do apoio popular aos partidos e movimentos de extrema-direita. As convulsões político-sociais abrem caminhos para a maior aceitabilidade de diretrizes que vão desde a defesa do Estado forte, nacionalista e anti-migração, até questões mais espinhosas e antidemocráticas, como a busca por uma identidade-autocentrada no ideal de pureza e a suspensão legal de garantias e direitos conquistados historicamente. Muitos analistas consideram que, desde 1981, a ascensão da extrema-direita foi expressiva e continuada, sendo um fenômeno amplamente difundido não apenas no Reino Unido, mas em toda a Europa. A lista é extensa, englobando, no Reino Unido, o British National party (BNP) e o UK Independence Party (UKIP). Os partidos direitistas transformaram-se em agentes críveis para muitos cidadãos, que buscam equacionar as inconsistências de um projeto que fracassa em seu ideal de prosperidade econômica, social e política. A sedução oferecida por soluções aparentemente simples para problemas profundos ganha destaque em tempos tortuosos, e mais do que nunca, a saída do Reino Unido da União Europeia, o controle da imigração e o protecionismo econômico conquistam mentes e corações de cidadãos que procuram uma saída para a falta de confiabilidade em suas instituições de representação.

Assim, o tão sonhado “espírito europeu” sucumbe frente aos nacionalismos crescentes, sob as sombras de um fascismo silencioso, que esconde a falta do establishment político, a rejeição da “velha política”, a falta de credibilidade popular em seus governantes e uma democracia cada vez mais esvaziada.

O resultado do referendo, portanto, não traz apenas incertezas para o futuro do Reino Unido, mas também para o processo de integração, a dinâmica doméstica dos outros Estados e as relações internacionais, com o aumento do apoio popular aos partidos de extrema-direita na Europa e no mundo. Apesar das várias declarações dos líderes regionais de que a União Europeia seguirá unida, os debates em torno do referendo já questionavam enormemente a capacidade do bloco em atender demandas dos cidadãos, o que se torna mais manifesto agora com o resultado. Neste contexto, é certo que as discussões nacionais em torno dos benefícios de se fazer parte do bloco seguirão ascendentes e ganharão força caso a União Europeia não consiga responder satisfatoriamente aos grandes desafios sistêmicos que lhe são impostos.