Onze candidatos disputaram o voto de 47 milhões de eleitores franceses no primeiro turno das eleições presidenciais, ocorrido dia 23 de abril. O aspecto mais relevante do processo, no entanto, não foi essa fragmentação, mas sim a forte polarização que marcou a disputa entre os quatro candidatos principais: Marine Le Pen (Frente Nacional, extrema-direita), de 48 anos; François Fillon (Os Republicanos, direita), de 63 anos; Emmanuel Macron (Em Marcha!, centro), de 39 anos; Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa, esquerda radical), de 65 anos. Os quatro formaram o pelotão da frente, deixando para trás o socialista Benoît Hamon, de 49 anos.

Apurados os votos, e dada a não obtenção de maioria absoluta por nenhum candidato, irão ao segundo turno Macron (com 24,01%) e Marine Le Pen (com 21,3%), nomes que mantiveram a liderança em todas as sondagens eleitorais. O pleito ocorrerá em 7 de maio.

Algumas constatações podem ser feitas depois das urnas. A mais importante tem a ver com a dissolução do bipartidarismo de fato que prevalecia na França desde 1981. Socialistas e republicanos, que dominaram a cena política sem grandes contestações, foram eliminados de forma clara e mergulharam em nova fase, na qual esforços de recriação e reorganização se farão indispensáveis.

O PS, em particular, com a obtenção de 6,36% dos votos, foi pulverizado pela própria crise interna e pela impopularidade do presidente atual, François Hollande. O resultado medíocre foi recebido com preocupação pelos socialistas. Benoît Hamon, seu candidato, declarou logo após as eleições que o desempenho representa uma “derrota moral” da esquerda. Não há como saber que reação terá o partido no médio prazo, em que prazo conseguirá cauterizar suas feridas e se repor como força política de expressão.

A situação foi reconhecida em editorial do Le Monde: “O terremoto político que representa a passagem de Emmanuel Macron e Marine Le Pen para o segundo turno merecerá um lugar especial na vida política francesa. A espera do julgamento da História, podemos afirmar desde já com certeza que o primeiro lugar arrancado por Macron permanecerá como uma das façanhas eleitorais mais espetaculares da V República. A aceleração do tempo político quase faz esquecer que o candidato, omnipresente na cena mediática de alguns meses para cá, era um desconhecido do grande público há três anos”. Macron poderá, assim, realizar um sonho acalentado por muitos franceses, qual seja, o de promover a “emergência de uma oferta alternativa aos dois grandes partidos tradicionais”. Além disso, numa eleição marcada pelo elevado número de candidatos eurocéticos, Macron assumiu clara posição pró-europeia, comprometendo-se a lutar contra a ascensão de discursos anti-Europa e a apoiar a realização de conferências cívicas dedicadas a propor um “novo projeto europeu”.

Logo após a divulgação dos resultados, várias figuras do PS e dos Republicanos (Fillon, Hamon, Juppé e Cazeneuve, por exemplo) declaram apoio a Macron numa frente unida contra Le Pen. O candidato socialista pediu uma votação expressiva para derrotar a Frente Nacional, embora afirmando que Macron “não pertence à esquerda e não tem vocação para representá-la no futuro”. O projeto de Le Pen foi visto de modo generalizado como funesto para a França e promotor da divisão dos franceses. François Fillon, dos Republicanos, foi taxativo: “Devemos escolher o que é preferível para o nosso país. A abstenção não está nos meus genes, sobretudo quando um partido extremista se aproxima do poder. A Frente Nacional é conhecida pela sua violência e a sua intolerância. O seu programa levará o nosso país ao fracasso e ao caos europeu. Não há outra opção que não seja votar contra a extrema-direita.”

Leia mais:  No Reino Unido, o Brexit enterra os conservadores

O presidente François Hollande se manifestou na mesma direção: “O que está em jogo é a composição, a unidade, a participação da Europa e o lugar da França no mundo”. Para ele, Macron, que foi seu ministro da Economia, “é mais indicado para unir os franceses”.

Mais à esquerda, Macron também tem o aval do Partido Comunista Francês e do maior sindicato francês, a CFDF. A esquerda radical, cujo candidato Jean-Luc Mélenchon obteve quase 20% dos votos no primeiro turno, ainda não definiu como se posicionará em 7 de maio.

Já a candidatura da Frente Nacional não obteve qualquer apoio explícito e deverá seguir sem aliados para o segundo turno.

Emmanuel Macron foi certamente o grande vencedor. Conseguiu formar uma frente eficaz (En Marche!) e angariou apoios em áreas amplas da sociedade. Após a divulgação dos resultados, reiterou os pontos principais de sua proposta de governo, propondo-se a agir, caso eleito no segundo turno, como um presidente de todos os franceses, que protegerá a sociedade, incentivará os que desejam criar, empreender e inovar, mas também ajudará “os que têm menos, que são mais frágeis ou abalados pela vida, por meio da escola, da saúde, do trabalho, da solidariedade”.

Macron foge das rotulações ideológicas, mas suas propostas econômicas são liberais. Vangloria-se de estar escolhendo “o melhor da esquerda, o melhor da direita e o melhor do centro”. Costuma se apresentar como “social-liberal”, dizendo-se disposto a reformar o sistema de proteção social francês sem alterar sua generosidade. Seu programa e seu posicionamento, porém, são confusos.

Mas o posicionamento centrista de Macron, que tudo indica vencerá o segundo turno, não pode ser visto como livre de pressões e desafios. Tanto a extrema-direita de Le Pen quanto a esquerda radical de Mélenchon mostraram que interpretam e representam parte expressiva dos franceses (cerca de 40% dos votos), especialmente no que diz respeito à redefinição das relações dos Estados europeus entre si e com as estruturas institucionais e as políticas liberais e fiscalistas da União Europeia. Seus eleitores, de algum modo, votaram contra o sistema e contra a Europa, a UE e o euro. É preciso analisar tal fato com cuidado.

Tudo somado, com as eleições configurou-se de modo pleno no país uma polarização ainda mais clara entre uma França pró-globalização, mais bem sucedida e liberal, e uma França mais nacionalista, refratária à imigração e que vê o terrorismo como ameaça a ser combatida com um Estado forte.

Como afirmou o periódico português Público, a França ”apostou num duelo entre o medo e a esperança”: a disputa entre Marine Le Pen e Emmanuel Macron será “um choque de civilizações que vai ditar o futuro de todo o continente europeu durante toda a primeira metade do século XXI”.