A imagem de Aylan Kurdi, o menino sírio-curdo de três anos, cuja morte por afogamento durante a viagem da Turquia para a Grécia se transformou em um símbolo  da crise humanitária que se alastra pela Europa. Como declarou a ONG Save The Children, “deu um rosto à tragédia”.

Apesar dos recentes esforços do Conselho Europeu para o acolhimento urgente de pelo menos 100 mil refugiados pelos Estados-membros da União – por intermédio do estabelecimento de cotas de distribuição –, a Hungria, por exemplo, continua a erigir um muro de quatro metros de altura e cercas de arame farpado na fronteira com a Sérvia, com o objetivo de garantir sua “segurança fronteiriça” e sua “ordem social”. Países como Dinamarca, Irlanda, Inglaterra, República Tcheca e Eslováquia continuam a se opor às cotas de distribuição.

Uma análise apressada poderia nos levar, quase que imediatamente, a uma condenação moralista seja da postura húngara pelo estabelecimento das fortificações seja da oposição de alguns países europeus às cotas. Somos muitas vezes movidos pela preocupação com o destino dos seres humanos e pela busca por “culpados”. E nem sempre conseguimos avaliar bem o impacto que certos dramas humanos causam nas sociedades, especialmente quando se trata, como no caso, de sociedades que recebem de modo continuado massas de milhares de refugiados. Tudo nelas se desloca e sai do lugar. Os ânimos se acirram, consensos se desorganizam, a rede institucional de apoio e proteção fica fragilizada, as soluções tornam-se mais difíceis.

Gostaria de propor uma reflexão mais substancial sobre o tema.

O problema da efetividade e da universalidade dos direitos humanos é algo tão recente assim? Com uma breve regressão temporal e sem correr o risco de anacronismos, vale lembrar que a acepção de que todos os seres humanos possuem direitos por serem essencialmente iguais “como seres dotados de liberdade e razão” emergiu com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Essa nova constelação de valores passou a se estender para além das fronteiras territoriais dos Estados europeus e da própria história cristã. Muitos filósofos do Iluminismo, como Voltaire, Rousseau, Diderot, Grotius, Kant, Locke e Montesquieu, construíram uma base transcendental para a criação de uma nova comunidade política humana. Contudo, apesar de seus elementos-chave sustentarem o universalismo do exercício dos direitos, da proteção substantiva, das garantias, da preservação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana, um novo modelo de privilégios foi instituído. Estabeleceram-se no interior das comunidades políticas ocidentais relações de igualdade entre aqueles que estavam incluídos, excluindo-se concomitantemente a maior parte da população: nenhum camponês, plebeu, escravo, mulher ou indígena teriam a “educação” ou a “liberdade” necessárias para serem incluídos como “iguais”.

A dualidade existente entre os direitos humanos universais de abrangência irrestrita e os direitos de cidadania ancorados em marcadores estáticos e oposições binárias – tais como o nós/eles, nacionais/estrangeiros, cidadãos/não cidadãos – passou a moldar grande parte dos debates políticos e sociais acerca do sistema moderno de direitos. As ênfases nas virtudes cívicas e culturais passaram a auxiliar a produção legal de novas e mais radicais distinções no interior das sociedades. Como argumenta Boaventura de Sousa Santos (2012), para cada novo direito instituído se perpetuava estruturalmente a exclusão e o sistema moderno de direitos mostrava “os lastros de violações e decadências das suas próprias perspectivas de universalidade e inclusão”.

Em As Origens do totalitarismo, Hannah Arendt argumentou que a partir do século XIX a convicção na superioridade da raça e em suas respectivas ideologias discriminatórias (etnocêntricas) começou a servir como recursos de legitimação das políticas imperialistas de nações seletas, atingindo seu ápice durante o século XX com a implementação de doutrinas totalitárias (bolchevismo, nazismo e fascismo). Criaram-se “direitos” convenientes para uns, mas não para todos, jogando por terra os direitos do homem. Logo, as funções legais e jurídicas do Estado moderno transformaram-se em instrumentos de dominação e subjugação de povos inteiros: quando os europeus os massacravam, de certa forma não sentiam que estivessem cometendo um crime contra homens” (ARENDT, 2011, p.223).

Assim, a exclusão e a inferiorização observadas no período do Iluminismo, legitimadas pelas práticas imperialistas e consolidadas pelos regimes totalitários, formam grande parte das bases elementares de construção da tão aclamada “era dos direitos”, que sempre conviveu com uma massa crescente dos sem direitos, com a criação de espaços de conforto e de liberdade para os incluídos e de “barreiras” para os excluídos.

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É errônea a corriqueira noção de que a inferiorização do outro advém de uma espécie exagerada de nacionalismo. Embora, os movimentos racistas tenham assumido, ao longo da história, posições aparentemente ultranacionalistas, eles vão contra os princípios coordenadores da própria organização nacional de um povo, isto é, os princípios da igualdade e da solidariedade de todos perante a lei e o Estado, garantidos pelo reconhecimento elementar da humanidade. Apesar da ter eclodido no interior de diversas fronteiras nacionais europeias, definindo padrões linguísticos, tradições em comum e, acima de tudo, direitos e privilégios, a discriminação nega a existência político-nacional de suas respectivas pátrias. Coloca em xeque o próprio ideal de corpo político das nações.

Tal reflexão pode nos ajudar a perceber a capacidade que têm as sociedades ocidentais — vistas como a origem dos conceitos de igualdade e liberdade no âmbito do direito — de estigmatizarem o outro, anulando-os. Pois, apesar dos discursos plurais do século XXI, da defesa irrestrita dos direitos humanos sob uma ótica universal, da radicalização dos conceitos de liberdade e igualdade, não apenas as sociedades contemporâneas não superaram completamente suas concepções exclusivistas dos séculos XVIII, XIX e XX, como ainda continuam a cristalizá-las em suas respectivas instituições políticas e em seus mecanismos de proteção.

Não precisamos ir muito longe para identificar as constantes violações dos direitos humanos observadas em Guantánamo, na fratura do pensamento democrático e na inoperância do sistema moderno de direitos. Podemos verificar isso na existência de “milhões de Guantánamos” ou de “milhões de afogados”, na persistência de discriminações sexuais, raciais e étnicas (quer na esfera pública, quer na privada), na barbárie da violência nas megacidades, nos guetos, nas favelas, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal, no trabalho infantil e na exploração da prostituição.

Pode-se assim perguntar: seriam as estruturas político-jurídicas ocidentais, criadas e inspiradas nas bases político-filosóficas do Estado de direito, mecanismos que reconhecem e simultaneamente omitem os direitos humanos? Seria o suposto universalismo categórico dos direitos humanos fruto de direitos exclusivistas pautados no não reconhecimento do outro? Para refletir, podemos considerar o argumento de Giorgio Agamben, segundo o qual toda sociedade humana, independentemente de sua forma de organização política, fixa quais são seus homens sacros, isto é, os indivíduos condenados à pura existência biológica (vida nua), encarcerados em um estado de natureza permanente, marcado pela condição apolítica e pela destituição completa de quaisquer direitos. Para ele, o princípio interno da modernidade consiste em conservar determinados grupos sociais em situações de matabilidade insacrificável, pois o sistema de direitos não os pode representar, já que são considerados “exceções”, isto é, são zonas de indistinções sociais: “onde existe um povo, lá existirá vida nua” (AGAMBEN, 2004, p.186).

Devemos sim nos chocar com a grave crise humanitária que se desenrola na Europa, com a inoperância dos Estados e até mesmo com o atual descaso político-jurídico europeu, mas devemos, acima de tudo, perguntar também até que ponto isso já não foi sedimentado pela nossa própria história. Com isso, não se busca nem deixar de reconhecer que soluções políticas, práticas, são sempre difíceis, nem muito menos refutar o potencial universal dos direitos humanos, mas sim reforçar sua essencialidade global, como resposta ao inúmeros mecanismos de exclusão, procurando novas orientações para prevenir violações futuras. Caso contrário, elas irão acontecer, pois sempre acontecem.

 

Referências:

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SANTOS, B.S. A cidadania a partir dos que não são cidadãos. Coimbra, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uhhI72rKxt8