A ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA trouxe consigo uma postura antiglobalização. O caso torna-se particularmente emblemático considerando-se a relevância dos EUA no cenário internacional e o papel que este país cumpriu, sobretudo a partir da 2ª metade do século XX.

Hoje, em um quadro bastante distinto, alguns fatos, como o Brexit na União Europeia, apontam para a abertura de uma fase cada vez mais protecionista das relações internacionais, demonstrando outra face de um processo social e econômico emblemático, carregado de nuances contraditórias e cujos alicerces econômicos ultrapassam os limites físicos do Estado-Nação.

Olhando em retrospectiva, o capitalismo, ao se industrializar a partir do final do século XVIII, promoveu forte dissolução da vida comunitária tradicional, que oferecia segurança e estabilidade e punha em movimento outra lógica de produção da subjetividade. Tais mudanças são denominadas por alguns sociólogos, como Giddens e Beck (1997), de “primeira modernidade”. Nelas havia um padrão de sociabilidade específico, com sociedades de Estado nacional, em que o status dos indivíduos era mensurado pelo trabalho produtivo, definido pelo mercado.

De umas décadas para cá, esta “primeira modernidade” se encontra em flagrante dissolução. Como observa Ulrich Beck, uma “segunda modernidade” resulta, justamente, da radicalização das mudanças inseridas pela Primeira Modernidade e impacta profundamente o modus operandi da sociabilidade atual.

É como se o moderno se modernizasse em um movimento que se volta contra si próprio, criando-se uma atmosfera de descontrole.

Ao falar em “modernidade líquida”, Bauman (2002) destaca a efemeridade como condição das relações sociais. Nela, são dissolvidos os pressupostos de um telos na história, que tenderia a levar a humanidade a patamares superiores de convivência. A expectativa de um “gradual colapso e uma lenta decadência da ilusão moderna contemporânea, na crença de que o caminho que transitamos possui um final” (2002, p. 34), é anulada, juntamente com a “desregulação e privatização das tarefas e possibilidades da modernização”. Atribuiu-se então ao indivíduo a responsabilidade pelo “moderno”, cada vez mais atomizando as tarefas de mudança social, esvaziando os aspectos coletivos de força social em contraposição ao fortalecimento das expectativas individuais.

Neste universo cada vez mais refratário ao coletivo, busca-se a autenticidade dissociada de instituições que já cumpriram papel central na regulação da conduta humana. Assim, elementos como classe, religião, nação e família, são solapados gradualmente pelo individual. A liquidez da vida moderna está relacionada com a homogeneização das relações capitalistas e a lógica intrínseca que o acompanha que é a de transformar tudo em mercadoria, inclusive as relações sociais.

Neste sentido, com a transformação da própria identidade em mercadoria, demonstra-se a volatidade que demarca a modernidade líquida. Assim, do ponto de vista da subjetividade, os processos de individualização adquirem um caráter que cada vez mais exclui o antigo, de modo a colocar no centro de gravidade o indivíduo, pautado no esforço de construção de uma biografia própria.

Tais processos de “modernização da modernidade” se desdobram na esteira das mudanças societárias demarcada pelo pós-2ª Guerra. A inserção do componente tecnológico e as mudanças no processo de acumulação com a predominância do capital financeiro e a divisão internacional do trabalho dão tessitura à intensificação dos processos de globalização, que se aceleram expressivamente.

O conceito de globalização incorpora uma série de discussões no seio da sociologia e da teoria das relações internacionais. Para Giddens, a globalização é apreendida como “a intensificação das relações sociais em escala mundial”, de modo a globalizar a própria percepção da modernidade, já que “a modernidade é inerentemente globalizante” (1991). O sociólogo inglês chama a atenção para o caráter dialético da globalização. Com efeito, há cenários mais catastróficos que veem a globalização como expressão do avanço do capitalismo (Arrighi, Stiglitz) em níveis mundializados, entendendo que a política e a democracia tornaram-se vítimas deste processo, como faz por exemplo o sociólogo alemão Claus Offe (2012). O economista François Chesnais denuncia inclusive o tom apologético do termo, para quem a globalização é na verdade, a mundialização do capital. Para eles, o ponto de partida central é que o capitalismo radicaliza sua condição de sistema mundial e aprofunda sua crise como modo de produção, ao mesmo tempo em que difunde relações de subordinação entre os Estados no âmbito internacional, criando um sistema hierarquizado de relações de dependência e submissão às econômicas centrais.

Há, também, o lado de defesa da globalização, de cunho liberal, que vê no fenômeno aspectos unicamente positivos, como faz George Soros, defensor do “fundamentalismo do livre mercado”(free-market fundamentalism), para quem o livre mercado seria capaz de sanar todos problemas sociais.

A distinção feita por Beck entre “globalização” e “globalismo” indica as ressalvas do sociólogo acerca do aspecto ambíguo do termo. Ele utiliza o primeiro termo para se referir aos aspectos políticos, econômicos e culturais da globalização, ao passo que o segundo é tratado como uma “ditadura neoliberal do mercado”. A globalização somente pode ser apreendida por sua ambiguidade: se por um lado, há benefícios, por outro eles são construídos em detrimento de outros fatores, em uma atmosfera de imprevisibilidade.

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A intensificação da globalização impulsionou uma nova forma de sociabilidade, que insere o indivíduo em uma espiral socializante associada diretamente às instituições sociais, dentre as quais a educação, o mercado de trabalho e a mobilidade exerceriam as condições institucionais fundamentais , que por sua vez, teriam como “ponto de orientação não o coletivo, mas o indivíduo.”(BECK, 2003, p.68).

Os conflitos oriundos da globalização, consubstanciados nos padrões societários constitutivos da modernidade reflexiva, aparecem sob a forma de risco, criando uma atmosfera de insegurança e instabilidade nas dimensões micro e macro das relações sociais no plano nacional e internacional. Instabilidade, incerteza e a ansiedade dominam, portanto, os cenários das relações sociais. Esta é a sociedade de risco de Beck.

Transposta para o nível das relações internacionais, a análise dos riscos traduz o cenário cada vez mais turbulento da modernidade. Ao se transnacionalizarem, os conflitos sociais acabam por esbarrar em temas que envolvem a questão da identidade cultural, como por exemplo, o conflito deflagrado com a proibição da utilização das burcas na França, durante o governo de Sarkozy, em 2011.

Diante do mundo social formatado pelas mudanças da globalização, o Estado Nacional e a própria política encontram-se colapsados. Até os anos sessenta e setenta do século passado, os Estados atuavam numa órbita mais fechada. Com as mudanças oriundas da expansão do capitalismo, as fronteiras nacionais tornam-se mais porosas e suscetíveis ao externo, afetando o interno. O contato entre pessoas, culturas, mercados e ideias se intensifica a ponto de criar desníveis e forças de adaptação. Se por um lado, as pressões externas ameaçam a estabilidade interna, o interno reage, muitas vezes sob a forma política, fechando-se a fim de se proteger das vulnerabilidades externas. Esta tensão, propiciada pela intensificação da globalização, acentua a percepção de risco e a vulnerabilidade, em uma relação reverberante que não pode ser compreendida isoladamente.

Os impactos da globalização sobre os Estados nacionais acabam funcionando como uma espécie de mola propulsora que despeja o mundo inteiro no interior das sociedades nacionais, muitas das quais são pegas de surpresa e ficam comprimidas. Como consequência, os fluxos internacionais passam a concorrer com as decisões nacionais; os governos começam a falhar, não satisfazendo as necessidades das sociedades em suas várias dimensões, o que, em última instância, significa dizer que o mundo torna-se desgovernado.

A própria política é esvaziada, na medida em que perde substância e capacidade resolutiva, simultaneamente a uma economia que se torna mundializada e tende cada vez mais a se mundializar, já que a dinâmica de acumulação do capital não se dá necessariamente dentro dos limites das fronteiras de um Estado-Nação.

O fato de existir uma sociedade mundial sem que haja um Estado mundial torna os processos políticos cada vez mais fragilizados. Organizando-se, historicamente, nos limites do próprio Estado-Nação, as políticas nacionais foram gestadas e emolduradas no limiar das disputas entre capital, trabalho e Estado. Com a mundialização do capital, as limitações operacionais do Estado-Nação e assim, a própria política, veem-se cada vez mais fragilizadas diante dos limites impostos pela dinâmica econômica do capitalismo globalizado, em que “a economia adquiriu uma espécie de poder de subtração” (BECK, 2003, p.43). Como efeito deste processo, a assertiva da prevalência do mercado sobre o Estado faz com que muitos indivíduos passem a ter uma percepção negativa da política.

A assertiva é fundamental, e dialoga necessariamente com a resposta de Donald Trump à realidade caótica que os processos de globalização impuseram aos Estados e à política, portanto. Combinado com o legado histórico que ampara às tradições políticas estadunidenses no ideário excepcionalista do “Destino Manifesto”, a ascensão de Trump responde, a rigor, de maneira reacionária, às mudanças do mundo globalizado, na medida em que busca recriar um mundo que não mais responde às necessidades, inclusive, do próprio modo de acumulação capitalista. É quase um grito do Estado-Nação contra as desventuras e contradições sentidas na maior nação capitalista às mudanças impetradas pelos profundos impactos da própria globalização.


Referências bibliográficas.

BAUMAN, Zigmunt. (2002) Modernidad Liquida. Ed. Fondo de Cultura Económica.
_____________BORDONI, Carlo. (2014) Estado de Crisis.
BECK, Ulrich. (1998) La sociedade del riesgo. Ed. Paidós.
__________ (2003) Liberdade ou Capitalismo. Ed. Unesp.
GIDDENS, Anthony. (1991) As Consequências da Modernidade. São Paulo. Ed. Unesp.
OFFE, Claus. (2012) Democracy in crisis: two and a half theories about the operation of democratic capitalism. Open Democracy.