Quando Silvio Berlusconi surgiu na cena política em maio de 1994, houve espanto e curiosidade. Não pelo fato de um magnata vencer eleições e governar a Itália, mas porque Il Cavaliere, como era conhecido, simplesmente reunia, em sua persona, a figura do rico empresário, do bon vivant e do homem da indústria do entretenimento, condição derivada do controle que mantinha sobre a maior rede privada de comunicação do país.

Era a imagem perfeita de uma liderança política que iria se sintonizar com os tempos que então se anunciavam: tempos de dificuldades para a democracia, de crise da representação, de desorganização política e social, de redução da densidade ética e política dos estadistas. Beneficiado pelas circunstâncias, Berlusconi assumiu o governo como premiê e nele construiu uma casamata de proteção dos próprios interesses, impulsionado por um império midiático e por um movimento de novo tipo (a “Força Itália”) que erodia as bases de reprodução dos partidos políticos, devorando-os por dentro e por fora.

No arco de quase duas décadas, Berlusconi ganhou e perdeu eleições, mas permaneceu no centro da política italiana. Chegou por três vezes ao cargo de primeiro-ministro, a última das quais se encerrou em 2011. Ao todo, ocupou o cargo de primeiro-ministro durante nove anos, um tempo considerável. Saiu da cena política formal em 2013, deixando um rastro de escândalos e tramoias que ainda hoje cercam sua trajetória, fazendo dela um verdadeiro case político.

Berlusconi foi um arauto. Com ele, a democracia representativa passou a conviver com personagens que carregam consigo a utilização abusiva dos meios de comunicação, que fazem da imagem, do histrionismo cênico e do personalismo os principais canais de interpelação dos cidadãos. Com eles, a política foi “reinventada”, passando a ser praticada com ingredientes explosivos: a mentira, a centralidade da televisão e das redes, a pregação racista, a xenofobia explícita, o separatismo, a demagogia populista, a ameaça, o baixo nível generalizado, a rusticidade argumentativa, o marketing movido a rios de dinheiro.

Uma visão em grande angular da política atual mostra bem como esse novo padrão está em marcha ascendente. De Trump a Marine Le Pen, do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo na Itália ao Brexit e a Nigel Farage na Inglaterra, dos racistas holandeses e dinamarqueses à Alternativa para a Alemanha (AfD), de Frauke Petry, dos nacionalistas populistas aos vários separatismos, tudo se acomoda na ideia de que a extrema-direita encontrou uma estrada para acessar o grande palco da política, nele não só acampando como fazendo-o de forma totalitária, animada pela ideia de tomar o poder para atenuar as liberdades, repor a “ordem” e conter a democracia. Mantêm-se as instituições e as rotinas eleitorais, mas mudam-se o conteúdo e os estilos, com a infiltração na cultura democrática de valores e procedimentos que a corroem e desvirtuam.

Uns falam em “pós-democracia”, outros em morte dos ideais iluministas, outros ainda em novo irracionalismo. Todos procuram as chaves explicativas do processo em curso. Sabem que ele se associa à globalização e à reorganização do capitalismo, que estão a enfraquecer os Estados nacionais, a fragmentar as sociedades e a desestruturar as economias, levando os cidadãos à angústia da desproteção e fazendo com que o sistema representativo e seus operadores (a começar dos partidos políticos) mergulhem em uma fase de impotência e diluição. O cenário é perfeito para a multiplicação de pessoas providenciais.

Quando Berlusconi iniciou seu controle sobre a política italiana, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), um liberal-socialista então com mais de 80 anos, saiu em seu encalço. Como explicar o fato, como aceitar que um magnata do entretenimento, controlador dos principais órgãos de comunicação do país, concentrasse em suas mãos o poder político e o fizesse com aplausos entusiasmados de parte ponderável do eleitorado italiano?

Bobbio escreveu diversos artigos na imprensa diária da Itália para tentar não somente entender o fenômeno mas sobretudo alertar a opinião pública. Viu Berlusconi como um autêntico ovo da serpente, do qual nasceriam demônios difíceis de serem controlados.

Uma seleção desses artigos foi então reunida pela revista Critica Liberale no volume Contra os novos despotismos. Escritos sobre o berlusconismo, que a Editora Unesp e o Instituto Norberto Bobbio acabam de publicar no Brasil.

Os textos mostram o que Bobbio tinha de melhor: a retórica afiada e elegante, a argúcia argumentativa, sempre movimentando um pêndulo entre a realidade factual da política e as grandes elaborações teóricas e filosóficas, com as quais a política foi sendo pensada ao longo do tempo. Estão ali alguns de seus maiores achados e praticamente todas as suas obstinações: a complexidade, a indispensabilidade e as promessas fracassadas da democracia, o perigo dos totalitarismos, a importância dos partidos políticos, a força criadora do liberalismo social, a face demoníaca do poder, a relevância do cidadão politicamente educado.

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Para Bobbio, o perigo representado por Berlusconi derivava do fato de que ele reunia, em uma só pessoa, aquilo que devia ser separado: o poder econômico, o poder político e o poder cultural. Não lhe parecia razoável que alguém que detinha um quase monopólio das redes de comunicação pudesse disputar um cargo público e chegar à posição de primeiro-ministro, a partir da qual teria força não somente para defender seus próprios interesses como para burlar e desorganizar o sistema democrático, enxertando nele sementes de um novo tipo de despotismo, que, do antigo, conservava o fundamental: ser um “governo sem leis nem freios”.

Tal como tantos líderes de hoje, Berlusconi criava partidos e movimentos ad hoc, para servi-lo. Se os grandes partidos o rejeitavam, explorava suas correntes internas, de modo a extenuá-los. Conseguia, assim, ir formando partidos pessoais, obedientes às suas ordens. Como insistiria Bobbio, a “Força Itália” berlusconiana não era um partido, mas “um conjunto de comitês eleitorais difusos por todo o país”. Não se sabia quem a financiava, quem a compunha, qual o seu projeto para o país. Era, na verdade, uma “rede de grupos semiclandestinos”, uma invenção sem precedentes com a qual se imaginava fazer funcionar a democracia.

O líder dispensava o trabalho diuturno de edificação partidária para se dedicar à montagem de uma “videocracia triunfante”, na qual o poder seria exercido não mais somente por meio da palavra falada escrita ou falada, mas “por meio da imagem que entra insistentemente na casa de todos e se fixa na memória, bem mais do que um discurso”. Desta forma, transmitia-se à sociedade mensagens que valorizariam a figura providencial do “grande homem” e destilariam medos e ameaças de todo tipo, voltados sobretudo para o ataque às esquerdas e à democracia. O poder televisivo mostraria, assim, sua pior face: forneceria ao poder político a posse dos “meios essenciais para a formação do consenso”.

O novo despotismo está solto pelo mundo. Faz-se acompanhar de demagogos e populistas de variada espécie, quase todos autoritários e que se apresentam como “determinados e enérgicos”, contrários à temperança e ao que veem como “frouxidão” dos adversários. São tipicamente de direita, mas a praga, a rigor, não escolhe campo para proliferar.

Bobbio foi direto ao ponto. “Uma das características mais conhecidas e documentadas da ‘personalidade autoritária’ é a absoluta confiança em si mesmo, nas próprias possibilidades de resolver os mais difíceis problemas não apenas para si mesmo, mas também para os outros”. O líder autoritário não falha e sempre tem razão, cerca-se quase sempre de uma “missão divina” que o põe um palmo acima dos outros, sua generosidade é proverbial, apresenta-se como um serviçal do povo. É performático, estampando na face a estudada indignação de quem se julga vítima dos poderosos, dos aristocratas endinheirados de Wall Street ou dos que controlam os esquemas tradicionais da política. São invariavelmente inescrupulosos quando se trata de poder.

O filósofo se atormentava com a incapacidade que os progressistas tinham de bloquear a irrupção dos novos déspotas. “Tenho a impressão de que nesse universo globalizado continuamos a discutir sobre ideias, enquanto o que conta agora são os grandes interesses econômicos e financeiros, que passam por cima da política e não estão muito preocupados com a cultura”. (p. 81).

Olhando os dias que passam, magnatas como Berlusconi continuam atuantes na política. Talvez já não causem mais espanto, mas continuam a produzir uma sombra sobre a dinâmica democrática, especialmente quando sabem o que fazer com os meios de comunicação. Junto com eles, estão em campo populistas autoritários pouco preocupados com a institucionalidade democrática. Bobbio escreveu que, na Itália dos anos 1990, “um vento de loucura está arrastando nosso já frágil sistema político”. É um diagnóstico que permanece atual para onde quer que se olhe no mundo de hoje.


Artigo publicado na revista Época (ed. 14/12/2016) com o título “Os arautos dos tempos atuais”.