Atentados terroristas que se sucedem, Londres sob ataque, Trump barbarizando pelo Twitter, tirando os Estados Unidos do Acordo do Clima e da linha de frente do sistema internacional. Venezuela derretendo como sorvete ao sol, crise política que não cede no Brasil, dificuldades para os governos nacionais e para os processos de integração regional. Os partidos políticos perdem força, movimentos de novo tipo dialogam com as expectativas dos cidadãos, a democracia parece dominada pelo marketing e por outsiders, os extremismos estão em alta, refugiados e migrantes circulam em busca de uma proteção sempre mais distante.

As eleições transcorrem em clima de polarização, com baixa participação e ascensão de forças regressistas que conseguem de algum modo interpelar parte importante dos cidadãos.

O mundo está sem eixo, a sensação de caos se amplia. O sistema ONU persiste, mas não é acompanhado pelos Estados nacionais. O mercado se solta das regulações e faz a economia (nacional, internacional) girar em falso, ao sabor de uma concorrência cada vez mais agressiva e de uma financeirização que se reforça sem encontrar resistência. Os EUA refluem, a China se impõe, combinando inesperadamente comunismo autoritário e capitalismo selvagem.

O protecionismo cresce, contrasta a globalização e contribui para alterar seu ritmo. Na América Latina, o crescimento econômico oscila, chegando mesmo a flertar com a recessão (Brasil, Argentina, Venezuela), na medida mesma em que os Estados “desenvolvimentistas” se inviabilizam no plano fiscal e passam a enfrentar sucessivos problemas de legitimação.

A contínua e acelerada reprodução ampliada das tecnologias de informação e comunicação (TIC) modifica o modo de ser do capital, os padrões de relacionamento entre as pessoas, altera as fronteiras entre a indústria e os serviços, a economia, o mundo do trabalho, a forma do comércio, os consumos. A conectividade se alastra, ligando a humanidade por sobre as redes físicas, estatais. Por essa via, a globalização se reforça, ao mesmo tempo em que os ambientes nacionais se reconfiguram.

É uma época de crise generalizada, reflexo de uma transição imponente, que não consegue ser controlada nem decifrada. Isso dramatiza o presente e embaça o futuro.

 

Alimentações recíprocas

Há crises que se interpenetram, uma turbinando a outra, como num círculo vicioso.

Uma é a crise estrutural da modernidade capitalista, que tem revirado as sociedades do nosso tempo, alterando sua estratificação, os relacionamentos entre grupos, classes e pessoas, o modo de produção e o trabalho. A experiência associativa dos humanos do século XXI se alterou drasticamente. Mudou a estrutura das sociedades, assim como suas superestruturas políticas e jurídicas. As distintas “famílias” políticas e ideológicas perderam força e identidade e passaram a incidir com menos potência sobre a organização das decisões. As correntes de esquerda sofrem de maneira particular os efeitos desse processo, como se pode ver em diversos países. O processo de desestruturação, por si só, faz com que os pactos não consigam ser repostos, aumentando a exasperação, o desentendimento, os conflitos, as polarizações. A modernidade capitalista trepida.

Outra crise decorre do desarranjo e das contradições da economia internacional, com as respectivas assimilações nacionais. Os efeitos deste desajuste recessivo e da deterioração da economia não se manifestam somente no plano do emprego ou da atividade produtiva, mas penetram em todas as frestas do Estado e da sociedade. Causam incerteza, turbinam a insatisfação, excitam os agentes políticos e econômicos.

Uma terceira crise tem a ver com a democracia representativa e com suas dificuldades de realização. É um problema comum aos mais diferentes países, também aqui com as devidas peculiaridades. Como tendência geral, instala-se o que tem sido chamado de “pós-democracia”, em que a prevalência do marketing, a reprodução das oligarquias e o encapsulamento do debate público minam os vínculos entre Estado e sociedade e dificultam que a política e a dinâmica democrática ganhem maior qualidade.

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Tais crises se alimentam reciprocamente, aumentando o mal-estar e deixando o ambiente mais difícil de ser governado.

 

Crise que segue

Toda crise está destinada a encontrar um desfecho, em um intervalo de tempo maior ou menor.

Crises não são fenômenos que se estendam indefinidamente, sem mudar de ritmo e sem sofrer alterações. Aceitar isso seria admitir a completa morte dos atores ou o “fim da história”.

Pode-se encontrar, porém, situações em que um quadro de crise se confunde com a estrutura da vida, seja assumindo a forma de um “caos estabilizado” (Beck), seja como parte de um processo de “revolução passiva” (Gramsci): as coisas mudam, mas tem-se a impressão de que são as mesmas, até porque a correlação de forças não se altera. Mudanças moleculares, que aos poucos reconfiguram as estruturas. É como dizer que uma estrutura se alimenta de suas próprias contradições e turbulências para alcançar equilíbrio, que por isso mesmo se torna um equilíbrio permanentemente precário. Revoluções sem revolução.

O cenário das sociedades contemporâneas se aproxima bastante disso. Nele, a vida está em permanente xeque-mate e a mudança contínua, intensa, ininterrupta, se faz sem direção política. As sociedades são “forçadas” a mudar e, nessa medida, são sacudidas por transformações que não conseguem ser controladas e provocam terremotos sucessivos na dimensão existencial, ideológica, cultural e institucional. Tais terremotos abalam os equilíbrios políticos e desmontam os arranjos associativos com que se fazia política, como é o caso dos partidos políticos. Estes passam, então, a perder capacidade de orientar o processo político, com o que a crise se prolonga, mesmo que de modo atenuado e disfarçado, em suma, conseguindo ser “administrada”.

As forças econômicas dominantes e as forças mais bem organizadas controlam a situação, mas não inteiramente. Abrem-se espaços para livre-atiradores e “radicais fundamentalistas”, que tendem a se fortalecer.  Mas o sistema se mantem.

A França atual, com a vitória de Macron, o crescimento da direita nacionalista de Le Pen e da esquerda radical de Mélenchon, a derrocada do Partido Socialista e dos Republicanos, oferece um exemplo perfeito disso, mas não é o único.

Quando as forças que estão envolvidas em uma crise se articulam, podemos ter três desfechos típicos. Um desfecho virtuoso significaria a fixação de um entendimento comum sobre o day after, com o devido cálculo de ganhos e perdas de longo prazo. Ela depende de uma reposição do pacto político, devidamente requalificado e aberto para a sociedade. Um desfecho funcional, por sua vez, aconteceria quando o “acerto” entre as forças se faz de forma superficial, sem projeto, com o único propósito de manter a governabilidade do sistema e o equilíbrio de forças tal como está. Seria um desfecho conservador, paralisante, sem avanço nenhum.  Por fim, um desfecho deletério traria consigo algum tipo de retrocesso, que no limite poderia significar a suspensão da democracia e das liberdades.

O mundo não está preparado para impor desfechos virtuosos, progressistas, para a crise em que se encontra. Faltam-lhe, antes de tudo, atores, forças organizadas com uma perspectiva pós-nacional e com capacidade para agir sobre a vida global. Sem esse componente construtivo, segue de crise em crise, de abalo em abalo, tendo de se agarrar a situações temporárias de equilíbrio instável.

Não há qualquer revolução à vista, mas pequenas revoluções acontecem o tempo todo. Os desfechos são funcionais: os nichos de poder político articulam-se com os setores econômicos dominantes e mantém o sistema de pé. Em meio a tais desfechos, porém, a vida se reproduz e se renova.