por Thiago Babo

Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (NUPRI/USP); doutorando em Ciência Política pela mesma universidade.

 

Talvez Winston Churchill tenha sido um homem de grande visão. Talvez tenha entendido a importância para o Reino Unido de uma Europa integrada de uma forma que os atuais políticos de seu partido, o Conservador, ainda não foram capazes de compreender em sua totalidade – e dificilmente irão.

Churchill, que fora Primeiro Ministro do Reino Unido em duas ocasiões (de 1940 a 1945 e de 1951 a 1955), assim como inúmeros outros europeus que participaram de movimentos nacionais de resistência ao III Reich, acreditava que a saída possível para os males enfrentados de forma coletiva pela Europa estaria na criação de um ente federativo na região. Em um discurso famoso proferido na Universidade de Zurique, Suíça, em meados do ano de 1946, Churchill (2005: p. 301) declarou:

“(…) considerando tudo, há um remédio que, se fosse adotado por todos de forma espontânea, transformaria como por um milagre todo o cenário e faria, em poucos anos, com que toda a Europa, ou a sua maior parte, fosse tão livre e feliz como é hoje a Suíça. Que remédio soberano é esse? É recriar a família europeia, ou o máximo que pudermos, e lhe fornecer uma estrutura na qual esta possa viver em paz, segurança e liberdade. Precisamos construir uma espécie de Estados Unidos da Europa”.

Da mesma forma que inúmeros políticos e lideranças europeias à época, Churchill compreendeu a fragilidade da Europa após duas Guerras Mundiais. Os países europeus, as grandes potências mundiais de outrora, não tinham mais condições de reivindicar este papel no cenário internacional. Países como os Estados Unidos da América e a União Soviética passaram a exercer suas influências na política mundial à revelia dos interesses e das vontades dos países europeus. O espírito, tão comum na mente de grandes políticos da época, que depois fora incorporada pela União Europeia, poderia ser resumido na frase ‘juntos somos mais fortes’.

Talvez este espírito tenha se perdido.

 

Let us ride to European Union! … On second thought, let’s not go to European Union. It is a silly place!

Na última quinta-feira, em consulta popular realizada em todo território britânico, 52% dos votantes, cerca de 17.410.742 indivíduos, indicaram seu interesse pela retirada de seu país da União Europeia – movimento que fora popularmente denominado de ‘Brexit’, uma abreviação para ‘British Exit’. A realização de um plebiscito (e não um referendo, algo importante de ser ressaltado) sobre a manutenção ou saída do Reino Unido da União Europeia fora uma proposta ‘abraçada’ durante a campanha de reeleição do atual Primeiro-Ministro do país, David Cameron, do Partido Conservador, que, embora contrário ao ‘Brexit’, utilizou-se dos anseios britânicos em relação à Europa para se manter no cargo (caberia mencionar que após a confirmação da vitória do lado que quer se desvincular da União Europeia, Cameron anunciou sua demissão do cargo de chefe de Governo).

As consequências desta ação, do ‘Brexit’, estão ocupando a mente de inúmeros acadêmicos e analistas políticos, sem falar das páginas de jornais e dos mais diversos meios de comunicação. Por ora, gostaria de me preocupar mais com as causas.

Embora o Reino Unido tenha ingressado na Comunidade Europeia (atualmente denominada de União Europeia) em seu primeiro alargamento, em 1973, juntamente com o Reino da Dinamarca e a República da Irlanda, um sentimento dúbio e receoso em relação à integração europeia sempre estivera presente no país, desde as primeiras conversas realizadas no início do ano de 1950. Um sentimento que persiste.

Em suas memórias, Jean Monnet, político francês considerado o grande ‘arquiteto’ da integração europeia, relata que em sua primeira conversa com os britânicos, referente ao projeto de construção de uma Europa unida, estes se recusaram a dar continuidade às negociações “sem conhecer antecipadamente todas as consequências práticas” deste novo projeto político, o que para Monnet (1986, p. 270) seria “o próprio objeto e o resultado da negociação”. Em outras palavras, os britânicos sempre buscaram referendar toda e qualquer proposta sobre uma Europa integrada, mas nunca se empenharam em construir de forma conjunta com os demais países europeus um projeto para uma Europa unida.

O que persiste, aparentemente, é a incapacidade do Reino Unido em compreender sua capacidade de trabalhar de forma conjunta com os demais países europeus para modificar e melhorar o projeto europeu. Ao invés, persevera a posição dicotômica de ou ‘estou dentro’, ou ‘estou fora’. Ou seja, os britânicos nunca se entenderam como parte constitutiva do processo político e social de construção de uma comunidade europeia, apenas buscaram referendar as propostas postas ‘à mesa’. Algo que se repete, hoje, com o plebiscito sobre o ‘Brexit’.

Talvez uma anedota possa nos ajudar a compreender os motivos pelos quais os britânicos nunca se enxergaram como parte constitutiva deste processo europeu.

Há alguns (poucos) anos, ao se deparar com uma forte neblina na região do Canal da Mancha, um canal televisivo britânico noticiou que o “continente” estaria “isolado”. Para além de uma simples distinção geográfica, física, aquelas e aqueles que perceberam a sutileza da proposição irão compreender um recorrente sentimento presente no Reino Unido – eles não fazem parte da Europa.

Ao menos desde o século XVI, as palavras ‘Europa’ e ‘europeu’ foram utilizadas para se referirem ao que seria externo à atual região do Reino Unido (além da República da Irlanda). O ‘europeu’, a ‘Europa’, serviu de alteridade para o fortalecimento de ideias e narrativas sobre o ‘inglês’, o ‘britânico’. Seguindo a reflexão de um dos grandes sociólogos que conhecemos, Norbert Elias, todo processo de socialização é um processo de individualização. Isto é, toda relação social (entre ao menos duas partes) é fundamental para a constituição do ‘eu’. E este processo de socialização entre o ‘britânico’ e o ‘europeu’ influenciou em muito, e ainda influencia, a relação social existente entre o Reino Unido e a integração europeia. Uma vez que a ideia de ‘Europa’, de ‘europeu’, tenha servido como o ‘outro’ necessário para a constituição do ‘eu’ ‘inglês’, do eu ‘britânico’, não é de se espantar que são os britânicos, entre todos os demais membros da integração europeia, que possuem a maior percepção da União Europeia como uma ameaça à identidade nacional (European Commission, 2001). O ‘outro’ é sempre ameaçador.

Além disso, subjugar-se a uma união entre os países europeus pelo espírito de que ‘juntos somos mais fortes’ e de que dessa forma poderemos buscar nossos interesses e objetivos num cenário internacional mais competitivo, acarretaria um entendimento de que os britânicos, principalmente os ingleses, ainda não estão preparados para, num divã, assumir. Antes disso, estes resistiriam e esbravejariam: ‘o Império ainda vive!’. Uma narrativa um tanto quanto romantizada, certamente, do Império britânico enquanto grande potencial global, fortemente caracterizada pela sua superioridade cultural e civilizacional, ainda persiste na cabeça de muitos britânicos. E a alternativa pelo Império, bem representado pela ideia de Commonwealth, é um caminho mais sedutor do que aquele da Europa integrada.

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Buscar uma explicação monocausal para entender fenômenos sociais seria, certamente, uma empreitada fadada ao insucesso. A questão identitária é somente um dos fatores sociais que nos ajudariam a explicar o por que de 52% das e dos eleitores terem votado pelo ‘Brexit’. Mas é um fator que não podemos ignorar na compreensão deste processo social que culminou no resultado da última quinta-feira.

Por fim, caberia algumas reflexões sobre o que nos espera para os próximos episódios desta novela.

O Parlamento Britânico terá em suas mãos uma difícil situação social e política para resolver. Por um lado, poderia se utilizar da prerrogativa constitutiva de uma consulta popular, de um plebiscito, ou seja, seu resultado não precisa, obrigatoriamente, ser implementado. Favorecendo esta posição, estaria a pequena margem de diferença entre àqueles que votaram pela permanência e àqueles que escolheram o ‘Brexit’ – uma diferença de 1.269.501 eleitores. Caberia, neste cenário, compreender os custos políticos de tal ação. Ademais, seria necessário esperar pela formação do novo Governo britânico, após o pedido de demissão de David Cameron. Os Conservadores ainda estarão no poder, mas teremos que aguardar para ver se o Primeiro-Ministro e seu Gabinete será composto pela ala do Partido Conservador favorável ao ‘Brexit’, ou pela ala contrária.

Do outro lado, o Parlamento Britânico poderia acatar a decisão ‘soberana’ da consulta popular e iniciar as negociações com ‘Bruxelas’ pela retirada de seu país da União Europeia, previsto no Artigo 50 do Tratado de Lisboa. As consequências de um efetivo ‘Brexit’ são um tanto quanto incalculáveis. Mas valeria a pena enumerar algumas.

Em termos econômicos, mais difíceis de serem calculadas, o desafio seria em duas frentes. Primeiramente, o Reino Unido teria que garantir uma negociação favorável com a União Europeia para manter os benefícios do Mercado Comum Europeu, caso contrário as trocas comerciais entre o país britânico e os 27 Estados-membros da União Europeia teriam custos mais altos, devidos aos impostos alfandegários. Num segundo ‘flanco’, o Reino Unido teria que garantir uma posição favorável com um dos seus principais parceiros comerciais, os Estados Unidos da América, através do acordo transatlântico. Vale ressaltar que o atual Presidente Barack Obama já declarou que apoia a permanência do Reino Unido na União Europeia e que caso o ‘Brexit’ fosse exitoso, daria prioridade às negociações com o mercado comum europeu. Isto sem falar na questão da mobilidade das e dos trabalhadores.

 

Englishness is no longer the equivalent of Britishness

Uma outra consequência grave do ‘Brexit’ estaria no processo de desintegração, não da Europa, mas do próprio Reino Unido. Em 2014, a Escócia realizou um referendo nacional referente a sua independência ao Reino Unido. Cerca de 55% das e dos eleitores escoceses escolheram a permanência no reino britânico. O que as pesquisas de opinião demonstraram, contudo, fora a influência da permanência (ou não) do Reino Unido na União Europeia. Por um lado, inúmeros eleitores que votaram pela permanência da Escócia no Reino Unido declararam que caso o ‘Brexit’ fosse vitorioso, mudariam de voto. Do outro lado, muitas e muitos escoceses votaram pela permanência de seu país com o medo de que uma Escócia independente não fosse capaz de adentrar à União Europeia (tal sentimento se dava pelo fato de que todo Estado que busca tornar-se membro da União Europeia necessita de aprovação de todos os Estados-membros do bloco; se o Reino Unido – sem a Escócia – aprovaria tal ação, sempre fora uma incógnita).

Na sexta-feira, após a vitória do ‘Brexit’, a Primeira-Ministra da Escócia, Nicola Ferguson Sturgeon, anunciou que seu Governo está se programando para realizar um segunda referendo sobre a independência da Escócia – ao mesmo tempo que iniciou conversas com Bruxelas para garantir a permanência de seu país na União Europeia.

Um outro aspecto que não pode ser ignorado do cálculo político está relacionado às políticas de segurança na Europa. O atual Secretário Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, declarou que a permanência do Reino Unido na União Europeia é condição necessária para a estabilidade da região. “O que eu posso dizer é o que importa para a OTAN; e que um Reino Unido forte dentro de uma União Europeia forte é bom, tanto para o Reino Unido, como para a OTAN, uma vez que estamos enfrentando desafios à segurança sem precedentes, com o terrorismo, a instabilidade e um ambiente imprevisível de segurança. Uma Europa fragmentada irá contribuir para a instabilidade e a imprevisibilidade”.

Além destas, o ‘Brexit’ teria grandes consequências para o próprio sistema partidário e, principalmente, para o futuro do processo de integração da Europa. Vamos deixar essas consequências para um outro momento, devido à extensão (já excessiva) deste texto.

O Império não é o mesmo. O mundo não é o mesmo. Se isso não for compreendido, as consequências de uma saída do Reino Unido da União Europeia poderão ser catastróficas, principalmente para o primeiro. Há ainda inúmeras incertezas sobre os próximos passos. Qualquer alternativa possível está acompanhada dos mais diversos custos políticos e sociais. Caso o ‘Brexit’ não seja levado até a suas últimas consequências – ou seja, a saída de fato do Reino Unido – ao menos uma mensagem bem clara fora deixada pelos britânicos: ‘Fuck You, European Union”.

 

Referências:

O título do texto faz referência ao ‘Brexit Song’, sketch criada pelo programa humorístico Last Week Tonight, apresentado pelo comediante britânico John Oliver.

Churchill, Winston (2005) Jamais Ceder! Os Melhores Discursos de Winston Churchill. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

European Commission (2001) Perceptions de l’Union Européenne: Attitudes et Attentes a Son Egard. Brussels: European Commission.

Monnet, Jean (1986) Memórias: A Construção da União Europeia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.