Há problemas em excesso na vitória de Donald J. Trump. A incógnita e a incerteza puxam a fila. Sua eleição causou pânico, depressão e engulhos em muita gente. Os democratas, em particular, ficaram surpresos e horrorizados, chocados com a própria incapacidade de ler os sinais e de perceber o vendaval que contra eles se armava.

Assimilado o espanto inicial, muitos passaram a lembrar que todo presidente norte-americano está submetido a controles que o obrigam a desistir de algumas de suas propostas, especialmente as mais bombásticas, ou ao menos a suavizá-las, envolvendo-se invariavelmente numa ciranda de negociações, lobbies e pressões. Ele não governa sozinho, tem de dividir o poder com o Congresso, é contrastado pelo FED e pelo complexo industrial-militar, e sempre tem pela frente uma imprensa livre e combativa, que, no caso de Trump, foi por ele hostilizada durante toda a campanha. Se já foi difícil Obama executar seus programas e políticas, dá para imaginar como será com Trump, mesmo com a maioria republicana nas duas casas legislativas.

O jornalista Lee Siegel valeu-se do sarcasmo quando escreveu que Trump, ao se encontrar com Obama um dia depois da vitória, parecia ser um “garotinho nervoso”: enquanto o atual presidente “estava relaxado e eloquente, Trump permanecia inarticulado e quase incoerente”. Mas o jornalista acertou ao dizer que o novo presidente terá de digerir os fatos duros da política norte-americana, o que provavelmente lhe travará os dentes. O “verborrágico empresário” não será páreo para as “tarimbadas criaturas maquiavélicas de Washington”. Para Siegel, a tendência é que ele se refugie em sua cobertura na Trump Tower, em Manhattan, sem ter muitas chances de disseminar o apocalipse pelo mundo. É um exagero retórico prever que “a eleição de Trump não foi a faísca de uma conflagração geral. Foi o estopim de sua iminente autodestruição”. Mas o momento pede um pouco mais de frieza analítica.

Cresce assim a tendência a relativizar sua eleição e até mesmo a vê-la como uma manifestação antissistêmica, cuja maior expressão seria o “temor” expresso pelos grandes players de Wall Street e do capitalismo financeiro. Há hoje quem diga que os mercados estão com medo de Trump porque ele, pela direita, poderia ameaçá-los com algo próximo ao antiliberalismo ou a um “nacionalismo” à moda antiga. Apoiado e incentivado por uma espécie de “revolta popular contra a globalização”.

Francis Fukuyama escreveu algo nessa direção num interessante artigo para o jornal Financial Times. Para ele, “a espantosa vitória eleitoral de Trump sobre Hillary marca um momento decisivo não só para a política dos EUA mas para toda a ordem mundial. Parecemos estar ingressando em uma nova era de nacionalismo populista, na qual a ordem liberal dominante construída dos anos 50 em diante passa a sofrer ataque da parte de maiorias democráticas raivosas e energizadas”. Nos EUA em particular, o sistema político falha porque não consegue “representar adequadamente a classe trabalhadora tradicional” e porque o Partido Democrata se tornou “o partido da política de identidade: uma coalizão entre mulheres, negros, hispânicos, ambientalistas e a comunidade LGBT, que perdeu o foco no que tange às questões econômicas”. Agora, para Fukuyama, essa busca de identidade está emergindo “na forma da direita alternativa americana, uma coleção de grupos políticos antes excluídos que promovem variedades de nacionalismo branco”.

A eleição de Trump, assim, “sinaliza que o país está deixando a ala liberal e internacionalista do espectro político e ingressando na ala populista e nacionalista”. Os EUA acompanham o que na visão de Fukuyama parece ser uma tendência mundial: a democracia liberal está sendo ameaçada não por adversários autoritários externos, mas por desafios internos. “Nos EUA, Reino Unido, UE e em diversos outros países, a parte democrática do sistema político está se sublevando contra a parte liberal, e ameaçando usar sua aparente legitimidade a fim de destruir as regras que até o momento controlavam os comportamentos e serviam de âncora a um mundo aberto e tolerante”.

O maior problema na vitória de Trump é que ela premiou uma pessoa que só tem atributos repulsivos. É racista, misógino, xenófobo, tem uma história de abusos sexuais e exploração de trabalhadores, é sonegador confesso, despreza a constituição e os imigrantes, é grosseiro e vulgar, vangloria-se de ser “politicamente incorreto” e, como se não bastasse, tem um plano louco de construção de muros e militarização. Ser republicano é mero acidente de percurso, uma pele artificial que ele vestiu para disputar as eleições.

Como disse Barack Obama ao se manifestar no dia seguinte das eleições, os americanos devem estar prontos para desejar o sucesso de Trump, cuja eleição representa um tropeço que faz parte do ziguezague da democracia. Obama foi altivo e sereno, realçou que perder é da natureza da democracia, deixando no ar a sutil lembrança de que quem perde hoje pode vencer amanhã. É um discurso que deve ser lido por todos, e que coroa um período de governo que pode ter tido seus deslizes mas que marcou uma época.

Não há como minimizar o mau passo dado pelos americanos. Ele injetou mais incerteza no mundo e pode de fato representar uma marcha para trás. Internamente, poderá liberar algumas taras reprimidas (ou nem tanto) da sociedade norte-americana, agravar tensões inter-étnicas complicadas e promover algum tipo de retrocesso em termos de direitos.

Muito mais coisas passaram a depender, agora, da força do sistema institucional e, portanto, do próprio capitalismo. Por vias transversas, o sistema será turbinado para funcionar melhor. Ficou reforçado, ainda que momentaneamente chamuscado pela expansão da insegurança. Não irá se estabilizar, porque isso não integra a lógica atual, mas não perderá o eixo. Tentará reunir todas as suas forças para suportar os ventos “populistas” que sopram à direita.

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O reverso também pode ser cogitado. A ampla e diversificada área democrática e progressista norte-americana (liberals e pessoas de esquerda) será instigada a refletir sobre si própria, a melhorar seus argumentos e buscar maior articulação, contendo suas correntes “fundamentalistas” (identitárias ou ideológicas). Terá uma oportunidade para se reposicionar. A democracia, no fundo, não está dada, terminada, nem pode ser encontrada no final do arco-íris como um pote de moedas de ouro.

Não há como suspender ou aliviar as críticas a Trump em nome de algum bom-mocismo “realista”. Como escreveu a jornalista Lúcia Guimarães, não faz sentido “normalizar a exceção” e fechar os olhos, por exemplo, para os atos de intimidação e violência contra imigrantes e negros que já estão a ocorrer e que poderão se espalhar como fogo, com maior ou menor convivência dos novos senhores do poder.

Também não dá para fazer, como algumas pessoas de “esquerda”, a leitura positiva de que o novo presidente está obrigando Wall Street a tremer por ser contrário à “globalização”, às elites e à mídia oligopolizada, que as coisas não seriam melhores com Hillary, que durante Obama o mundo só fez piorar, tragédia após tragédia. São pedaços de uma “esquerda” que já não consegue mais nem sequer se indignar, num contraponto esquizofrênico com um outro pedaço que estoura os pulmões para dizer que Trump é só o início da derrubada dos dominós, que depois dele virão Marine Le Pen, Nigel Farage e, claro, Bolsonaro, entre outras figuras carimbadas da extrema-direita. Muitos passaram a achar que há um Trump à espreita em cada esquina do mundo. O hiper-realismo quase sempre se realiza como antirrealismo.

Curiosamente (mas não de modo surpreendente), Bernie Sanders, que disputou as prévias democratas contra Hillary com uma proposta mais à esquerda, escreveu para o New York Times para dizer que milhões de americanos “votaram em protesto manifestando sua oposição a um sistema político e econômico que põe a riqueza e os interesses corporativos acima dos interesses da população”. Venceu Trump e, agora, diz Sanders, é preciso pressionar para que o novo presidente cumpra suas promessas: “temos de ter a coragem de conter a ganância e o poder de Wall Street, das empresas farmacêuticas, das seguradoras e da indústria petrolífera”.

Não deixa de ser indicativo do estado de confusão e desunião em que se encontram democratas e liberals.

Com observou a filósofa Judith Butler, a questão agora é saber como se chegou a essa situação. Quem são as pessoas que votaram em Trump? Mais ainda: “quem somos nós, que não vimos o seu poder, que não antecipamos absolutamente que isso podia acontecer, que não conseguimos imaginar que as pessoas votariam em um homem cujo discurso é racista e xenófobo e tem uma história de abusos sexuais, exploração dos trabalhadores e desprezo pela constituição? Talvez estejamos protegidos contra a verdade por efeito da insularidade do nosso pensamento liberal (liberalismo político) e de esquerda? Ou talvez tenhamos acreditado na natureza humana de modo ingênuo? Sob que condições o ódio e a militarização inconsequente foram desencadeados a ponto de influenciar o voto da maioria?”.

São perguntas que incomodam e convidam à reflexão. Trump venceu porque soube entrar em sintonia com pessoas de carne e osso, com sangue nas veias e coração. Usou certas brechas do sistema para conseguir isso. O FBI o auxiliou. Valeu-se dos milhões de norte-americanos machucados, frustrados, sem referências progressistas claras, que se deixaram levar por promessas ocas de combater os ricos (feitas por um milionário!), os bancos e as elites. Não teve escrúpulos. Ganhou porque bateu retoricamente em Wall Street e na mídia, apresentou-se como vítima de um complô, mexeu com o orgulho nacional e falou em recuperar os prejuízos provocados pela globalização, temas que são “populares” por definição. Venceu porque soube resgatar algumas coisas perdidas e certas perversões adormecidas na consciência coletiva da sociedade norte-americana.

Trump ganhou porque seus adversários não confiaram em Hillary (que, paradoxalmente, parece ter confiado demais em si própria) e não acreditaram que um milionário cheio de ódio para dar poderia dobrar o sistema. Porque os democratas não souberam se unir. Porque de algum modo abandonaram à própria sorte vastos setores da classe média e dos trabalhadores, que terminaram por convergir para quem se apresentou como capaz de representá-los simbolicamente.

Nas palavras de Butler, “ficam as questões de como a democracia parlamentar nos legou um presidente raivoso e antidemocrático”. Ela escreveu que agora os americanos devem se preparar “para ser mais bem um movimento de resistência do que um partido político”. Ela não disse, mas talvez pense que está na hora de todos passarem a olhar para os próprios pés e descobrir porque eles seguiram a estrada errada. Nos EUA e em outros países.

Já não dá mais para responsabilizar somente aqueles que nos derrotam ou de quem não gostamos. Não dá mais para dizer que a culpa é do sistema. A democracia precisa de atos e ideias melhores. As coisas estão categoricamente mais complicadas.